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sábado, 23 de março de 2024

Livro: Relações diplomáticas entre Portugal e Marrocos entre 1774 e 1912 - Mohammed Nadir (Editora UFABC)


AS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS ENTRE PORTUGAL E MARROCOS   DO TRATADO DE PAZ (1774) AO PROTECTORADO (1912)                                                     

Mohammed Nadir

Santo André: Editora UFABC, 2023


Resumo:

 

O cerne da nossa tese partiu de uma questão: como interpretar o Tratado luso-marroquino assinado em 1774. As interpretações variaram historicamente: teria marcado algo de novo nas relações entre os dois países, isto é, se -tal como a tese historiográfica colonial quis demonstrar- as relações entre o norte e o sul do Mediterrâneo apenas se teriam pautado pela luta mortal entre dois blocos civilizacionais geneticamente inconciliáveis; teria resultado apenas de um simples pragmatismo e constituiria uma estranha inovação; teria significado a partir do século XVIII um novo clima de relações transnacionais numa dimensão planetária. 

A nossa tese é outra, as relações luso-marroquinas e por extensão euro-marroquinas não eram uma simples inovação, muito menos se definem por mero pragmatismo, isto é, circunstancial. É indubitavelmente uma renovação dum secularismo que encontra suas raízes numa herança mediterrânica e num processo histórico linear no seu aspecto quer de confronto quer de contacto. E é também uma relação com uma componente fortemente estratégica. Portugal e Marrocos, dois países da finis terrae, com uma história binacional, encarnam um aspecto belo e épico desse contacto entre o Norte e o Sul do Mediterrâneo. Durante este período cronológico de cento e quarenta anos, que vai desde a assinatura do Tratado de paz e de comércio (1774) até à instalação do protectorado francês (1912), as relações diplomáticas luso marroquinas foram pautadas por uma linha continua que oscilou entre momentos altos e/ou relativa e forçada estagnação, e na qual as conjunturas adversas vieram ainda fortalecer e consolidar. 

As características variavam em diplomacia humanitária, económica, solidaria, cordial e por vezes de incidentes sem chegar e/ou regressar ao conflito. Em todos estes aspectos, recorria-se ao argumento de secular aliança e antiga amizade para superar e aprofundar as relações bilaterais. Se por norma imediata algumas análises tendem a perspetivar as relações bilaterais pelo lado material e estatístico (decerto fundamental) há e haverá o outro lado nas relações internacionais que é de natureza histórica, sociocultural e geoestratégico.

Nesse sentido as relações luso-marroquinas congregam este lado quase transcendental que existe nas relações diplomáticas em sentido lato entre estados e nações. Mais do que nunca, a diplomacia e as relações diplomáticas na sua dimensão ampla, isto é, multissectorial, e sobretudo uma diplomacia que apela a um humanismo diplomático prático é incrivelmente se não mesmo messianicamente desejada no momento em que estruturas e valores que até há pouco eram vistas como universais e eternas, se estejam a desmoronar e com elas, todas as aquisições dos últimos cinquenta anos.

Com efeito, o grande debate que hoje em dia decorre nas altas instâncias internacionais põe a tónica na trilogia da paz no mundo, da segurança de pessoas, bens, espaços e, como estamos vivendo na era da informação tecnológica, preocupa-se com um novo elemento que é a segurança eletrónica que pode afectar tudo e todos. A terceira componente é o comércio entre as nações que se deseja seja justo, seguro e sustentável.   A trilogia da paz, segurança e comércio inclui geneticamente uma característica dialéctica, isto é, sem uma parte não funcionam as outras. 

Dito isto, há precisamente 240 anos que esta consciência pela imperiosa necessidade de estabelecer a Paz entre Portugal e Marrocos estava presente nas tomadas de decisões dos políticos da época. O objectivo era o mesmo, criar condições de segurança marítima e terrestre para que o comércio pudesse prosperar entre os dois países. Nesse sentido, as questões que se autoimpuseram como as mais pertinentes e orientadoras ao longo desta investigação são as seguintes.

O que representava Marrocos para os interesses de Lisboa da segunda metade de

Setecentos e toda a centúria oitocentista? Suscitavam ou não ao império de Marrocos

uma certa importância? Que tipo de importância? Maior ou menor? Táctica ou

estratégica? Como era seguida pelo governo português e pelos amplos sectores públicos

e com que interesse eram seguidos os acontecimentos em Marrocos e no Norte de

África? Quais os interesses políticos e económicos que estavam em jogo? Até que ponto a diplomacia funcionou ou serviu como instrumento para aprofundar e estreitar esses laços de amizade que se constatam em várias cartas,embaixadas, missões especiais trocadas entre ambas as partes? E como é que o makhzan/estado marroquino olhava e encarava a sua relação para com o vizinho Portugal? Com indiferença? Com diferenciação? São estesenigmas da política externa que oscilam entre a coerência e a ambivalência que iremos procurar descobrir ao longo deste trabalho.

De qualquer modo deve salientar dum lado que se a posição geográfica de Marrocos predestinou o país, desde a antiguidade, a ter relações comerciais com o mundo africano e europeu, sendo charneira entre dois mundos e actor activo na elaboração da civilização do mundo mediterrânico, o contexto da segunda metade de Setecentos e as novas exigências políticas e económicas forçaram uma nova aproximação. Muito mais do que uma relação táctica ou circunstancial, era urgente dar um salto estratégico e de longa duração ao novo quadro de relações com o mundo europeu, renovando as seculares relações na bacia mediterrânica.

De outro lado e sendo Portugal uma pequena metrópole com um vasto espaço ultramarino disperso por todo o Mundo e que sofreu desde o seu nascimento as ameaças externas (Castela, Inglaterra e França), até que ponto o querer defender a joia da coroa, o Brasil, dos ataques dos europeus (ingleses, holandeses, franceses) foi um elemento a ter em consideração no tratado de Paz entre Marrocos e Portugal? Se essa hipótese vier a se confirmar, teremos aqui mais do que relação de Portugal com Marrocos, mas também o fator Brasil como elemento determinante. O que apenas confirma a ideia do triangulo estratégico de Marrocos, Portugal e Brasil.


MOHAMMED NADIR, professor Visitante na Universidade Federal do ABC. Graduado em história pela Universidade Mohammed V- Rabat Marrocos, Mestrado e Doutor em História pela Universidade de Coimbra, pósgraduado em Relações Internacionais, Diplomacia pelaEscola Diplomática de MadridAtua principalmente nas áreas do Oriente Médio e Norte de África e as relações com Europa e América Latina.

É pesquisador integrado no Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra e no Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto CEAUP-UP. Dirige o Centro de Estudos Árabes e Islâmicos da UFABC.

Foi Prémio Calouste Gulbenkian pela Academia Portuguesa de História em 2008.