O
mundo sem o Onze de Setembro: explorando hipóteses
Imaginemos, por um momento,
que não tivesse ocorrido o Onze de Setembro. As duas torres gêmeas ainda fariam
parte do skyline do sul de Manhattan
e o Pentágono não teria sido renovado, continuando, portanto, a exibir sua horrível
arquitetura stalinista (que, por sinal, ele ainda tem, a despeito das fachadas
mais limpas e menos cinzentas). Mais importante, 3 mil pessoas não teriam sido
barbaramente eliminadas – e me desculpo imediatamente por não mencionar isso em
primeiro lugar – por um dos mais espetaculares (e cinematográficos) atentados
jamais ocorridos na história.
Claro, outras matanças
“terroristas” produziram muito mais vítimas, algumas delas até em doses
concentradas (ou delongadas, como os crimes igualmente bárbaros ou genocídios perpetrados
por déspotas e tiranos como Hitler, Stalin, Mao e outros candidatos menores),
mas nenhuma, até aqui, frequentou tanto os espaços da mídia quanto aquela
perpetrada numa bela manhã de céu azul do final do verão americano. Nenhuma dessas
outras matanças – historicamente mais relevantes – foi vista ao vivo por
milhões de pessoas ao redor do mundo; a repetição contínua, nos canais de TV,
dos ataques às torres gêmeas ainda nos enche de horror e de estupefação (ainda
que sem mais a completa surpresa daqueles momentos terríveis).
Imaginemos, então, que não tivessem
ocorrido esses ataques – aliás dotados de “tecnologia” relativamente ingênua,
cujos autores poderiam ter sido detectados e interceptados a caminho de seu
intento criminoso – ou que, simplesmente, o cérebro que esteve por trás de seu
planejamento pudesse ter continuado suas ações “normais” de terrorismo
localizado, sem conceber tal tipo de ação verdadeiramente espetacular. O mundo
não teria esse “marco fundador do século XXI” assim classificado por cronistas
e observadores contemporâneos (e que talvez seja confirmado pelos
historiadores). Não teria deixado de existir Al Qaeda e atentados terroristas,
mas teríamos sido poupados do horror desse marco simbólico do terrorismo
fundamentalista da era contemporânea.
Sem esses ataques o mundo
teria sido muito diferente? Vejamos, por meio de um exercício de imaginação,
como seria, ou como poderia ser, o mundo atual, sem o Onze de Setembro.
O Afeganistão, em primeiro
lugar, seguiria por alguns anos mais – não sabemos exatamente quanto tempo mais
– com o horrível regime dos talibãs, que continuaria a oprimir as suas mulheres
(e os homens também), seguiria desmantelando estátuas e símbolos iconoclastas
em sua concepção (como a lamentável destruição dos budas gigantes de Bamian) e
continuaria, obviamente, a abrigar bases de treinamento de grupos terroristas ao
estilo da Al Qaeda (que continuaria planejando ataques contra alvos americanos
e ocidentais, como o do U.S.S. Cole, nas costas do Iêmen, ou das embaixadas em
Nairóbi e em outros lugares). O Paquistão vizinho, em segundo lugar, continuaria
abrigando grupos terroristas, que continuariam atacando alvos na Cachemira
ocupada ou na própria Índia. Palestinos e israelenses continuariam se matando uns
aos outros, em pequenos e grandes atentados. A teocracia iraniana também
continuaria oprimindo seus dissidentes e sustentando grupos terroristas e
nacionalistas da região, como os do Hamas ou do Hesbollah. A violência
anticristã dos fundamentalistas islâmicos do norte da Nigéria continuaria
produzindo vítimas entre os habitantes de pequenas aldeias no centro do país. As
ditaduras árabes continuariam oprimindo seus povos, na indiferença geral...
Os Balcãs, com exceção do
Kossovo, continuariam talvez pacificados pelas forças da OTAN, mas se
encaminhariam progressivamente para a integração europeia, como já parecia
inevitável. Mas os grupos antiglobalizadores continuariam, na Europa, nos EUA e
em outros lugares, a perturbar as reuniões multilaterais, provando, mais uma
vez, que não é difícil reunir multidões de ingênuos em torno de teses idiotas
que pretendem lutar contra a globalização, como se fosse possível interromper
marés, maremotos e furacões...
A Europa e talvez o mundo
continuariam, por alguns anos mais, como efetivamente ocorreu, a enfrentar a
doença da vaca louca, assim como a Ásia continuaria a se debater com epidemias
animais que ocasionalmente ameaçam transmigrar para a espécie humana.
Terremotos, maremotos e outros acidentes naturais continuariam a produzir seu
lote de enormes desastres humanos nos lugares e países mais desprovidos de
condições materiais para minimizar seus efeitos catastróficos. Ecologistas ingênuos
e ambientalistas científicos continuariam a anunciar as catástrofes decorrentes
da ação industrial do homem, dizendo que o “fim está próximo” se não nos
arrependermos de nossos progressos tecnológicos e não gastarmos algumas
centenas de bilhões de dólares em medidas “preventivas” de duvidoso efeito
real. O bug do milênio e a paranoia que ele despertou já teriam passado, mas hackers,
crackers e outros cyber-terrorists
continuariam a trazer preocupações aos órgãos de defesa e de inteligência,
assim como aos simples webmasters de sites oficiais de governos e de empresas...
A América Latina continuaria
com o seu cortejo de miséria, de desigualdades sociais, de corrupção e, claro,
com o seu lote habitual de caudilhos histriônicos e de demagogos candidatos a
qualquer coisa, a dilapidar os recursos públicos e a enganar populações de
pobres e dependentes. O Haiti, provavelmente, não teria conseguido evitar sua
trajetória de desastres naturais e humanos, e continuaria a depender da ajuda
humanitária para evitar cenários ainda mais pavorosos. A África, muito pior,
continuaria seu itinerário horroroso de conflitos étnicos, guerras civis,
ditadores bilionários e doenças endêmicas, com alguma recuperação aqui e ali, e
muita assistência pública internacional, como tem sido o caso no último meio século.
Russos e cidadãos das repúblicas da Ásia central ainda teriam remanescentes dos
antigos aparatchiks comunistas no
poder, sobrevivendo na “maldição do petróleo” e continuando a construir o “modo
capitalista-mafioso de produção”, uma modalidade não exatamente prevista por
Marx.
O mundo, enfim, não seria
muito diferente do que ele foi, na década que passou desde o Onze de Setembro,
e do que ele é, hoje, com seu desfile de grandezas e misérias, grandes
invenções e pequenos acidentes de percurso, filmes de Hollywood (e, cada vez
mais, de Bollywood), prêmios Nobel e prêmios igNobel (alguns imerecidos, numa e noutra categoria), avanços
dramáticos nas ciências, nas artes e na tecnologia (certamente iPod, iPhone e
iPad), outros recuos não menos dramáticos na ética pública e na gestão
governamental. Ou seja, certos desenvolvimentos naturais, certos processos
sociais e alguns eventos contingentes teriam sido inevitáveis, em função da flecha
do tempo e da roda impessoal da História. Resta ver, então, o que o mundo NÃO
seria, no sentido de poder ter sido melhor do que ele foi, efetivamente, ou,
eventualmente, de ter sido mais “ameno” ou simplesmente mais tranquilo, pelo
menos potencialmente, na ausência daqueles fatídicos ataques.
Bem, os EUA não teriam atacado
o Afeganistão – devidamente autorizados pelo Conselho de Segurança, relembre-se
– e provavelmente não teriam tido “escusas” para invadir o Iraque e derrubar
Saddam Hussein – não autorizados pelo CSNU, relembre-se – e não estariam
envolvidos, com alguns aliados da OTAN, em duas guerras intermináveis, que já
provocaram mais vítimas inocentes do que vários atentados terroristas reunidos.
Claro, George Bush talvez tivesse buscado outras escusas, e outros expedientes,
para terminar a missão inconclusa de seu pai na primeira guerra do Golfo. Mas
provavelmente não teria ocorrido uma revisão radical nas estratégias de
segurança dos EUA, como a “doutrina Bush” e a noção de “guerra preventiva”. Guantánamo
não teria sido convertida em prisão para “inimigos combatentes”, à margem das
convenções multilaterais relativas à guerra e “prisioneiros” de guerra. A
própria noção de “guerra ao terror” provavelmente não teria existido,
continuando apenas o trabalho habitual das agências de inteligência na
prevenção aos ataques terroristas, seguido de uma ou outra ação tópica, de
caráter militar, no desmantelamento de bases e eliminação de agentes em alguns hotspots do planeta.
Mais importante, talvez, para
os cenários econômicos da globalização capitalista, os EUA não teriam acumulado
5 ou 6 trilhões de dólares adicionais de dívida pública e não estariam em tão
má postura, como atualmente, para continuar a servir de “locomotiva econômica
planetária”, nos momentos de recuperação da sempre esquizofrênica economia
mundial. A ciclotimia habitual do capitalismo continuaria igual, claro, e
crises financeiras continuariam a ocorrer com sua regularidade habitual, e nem
sequer seríamos poupados dos desastres da bolha imobiliária, da crise
financeira de 2008-2009 e da atual crise do endividamento público dos países
avançados, que obedecem a uma lógica própria, sem nada dever a qualquer tipo de
ataque terrorista de qualquer grupo religioso ou político. O capitalismo financeiro
sempre produz seus próprios desastres, com quedas espetaculares dos valores das
ações, sem necessidade de derrubada física dos papéis.
O único vínculo entre a crise
atual e os ataques terroristas talvez seja o excessivo endividamento americano,
mas o enorme buraco provavelmente não existiria, se Bush não tivesse lançado o
país, irresponsavelmente, em duas custosas guerras de nation building e de construção de democracias em países já por si
problemáticos. Os EUA, que obtiveram, espontaneamente, a imediata solidariedade
de todo o mundo, no imediato seguimento dos ataques – Nous sommes tous américains!, escreveu em letras garrafais o Le Monde de 12 de setembro de 2001 – e
que tiveram o apoio na luta contra o terror mesmo de competidores estratégicos,
passaram a ser odiados em vários quadrantes, por causa de ações arrogantes,
irrefletidas, unilaterais. Obviamente que não se pode combater grupos
terroristas apenas com base no diálogo, na cooperação e na coordenação
multilateral – que são instâncias ineficientes, ineficazes ou inexistentes,
simplesmente –, mas a escolha de uma estratégia de “enfrentamento imperial”
dilapidou rapidamente o crédito de confiança que eles tinham conquistado na
conjuntura dos ataques.
Não é seguro que uma
estratégia de maior coordenação e consulta com aliados habituais e parceiros
circunstanciais teria evitado, por exemplo, os ataques terroristas de Madrid e
de Londres – para ficar apenas em dois dos mais mortíferos – mas talvez fosse
possível obter um ambiente de luta clandestina, nos bastidores e por ações mais
de inteligência do que pelo uso da força bruta, que evitasse o antiamericanismo
militante que surgiu a partir da invasão do Iraque. Grupos militantes e outros
fundamentalistas espalhados ao redor do mundo talvez não tivessem se organizado
em torno do rótulo Al Quaeda para perpetrar alguns desses ataques e tentativas
de ações terroristas que foram, em parte, estimuladas pela resposta imperial
americana.
O próprio conceito de “guerra
ao terror” e o caráter punitivo a que esse tipo de enfrentamento conduz
superestimam a capacidade dos grupos terroristas e realçam um hipotético status
de combatentes, no plano do direito internacional, o que eles obviamente não
são, no sentido próprio da palavra. O inteiro arcabouço jurídico internacional
da luta contra o terrorismo poderia ter avançado mais, na ausência de uma
resposta militar dos EUA aos ataques, ou mais exatamente, na ausência da
estratégia americana de “guerra preventiva”, materializada especialmente pela
invasão do Iraque. Ditadores e ditaduras foram poupados em certos cenários de
“cooperação” na “guerra ao terror”, e muitos deles sobreviveram e sobrevivem
ainda hoje, em função das tensões acumuladas nesse ambiente unilateralista
criado pelos EUA.
Em qualquer hipótese, é
extremamente difícil dizer se o mundo, sem o Onze de Setembro, teria sido muito
diferente do que ele foi, pois forças impessoais continuam se movimentando na
mesma direção, provocando, talvez, efeitos semelhantes, ou processos similares,
aos que ocorreram a partir dos ataques terroristas e das respostas imperiais.
Deve-se, em todo caso, relevar a parte dos fatores contingentes, dos
imponderáveis humanos no desenvolvimento que efetivamente tivemos, desde antes
do Onze de Setembro. Na ausência de homens como Osama Bin Laden e de George W.
Bush – este aqui cercado dos “falcões” do unilateralismo americano, pois o
próprio presidente era conceitualmente muito fraco e intelectualmente débil
para conceber a sua “guerra ao terror”– provavelmente não teríamos tido nem os
ataques do Onze de Setembro, nem as respostas desproporcionais que se seguiram,
e que marcaram indelevelmente estes dez anos como uma das mais problemáticas
décadas desde o final da Segunda Guerra Mundial.
A vida continua, os impérios
se sucedem, o capitalismo se renova, os governos continuam acertando e errando na
construção de sociedades mais seguras e mais estáveis, a prosperidade se
instala lentamente num mundo de mercados cada vez mais unificados e é este
último fator, finalmente, que vai conduzir, senão à eliminação do terrorismo,
pelo menos à atenuação das vocações, ao arrefecimento dos ardores militantes e
à diminuição do número de candidatos a ações terroristas. Quando todos os
jovens miseráveis do planeta tiverem sido alçados a uma pobreza aceitável, e
passarem a desfrutar dos equivalentes dos iPhones e iPads da atualidade, todos
eles devidamente conectados, podemos ter certeza de que o mundo terá menos
ditadores, menos miséria e menos terrorismo. Minha visão é, sim, economicista a
este respeito, pois acredito que o espaço das crenças irracionais – e o
terrorismo fundamentalista é basicamente uma crença irracional – será diminuído
pela educação universal. E não existe melhor antídoto contra esses fenômenos
reacionários, e melhor remédio à miséria educacional, do que o processo
irrestrito da globalização de mercados.
Mais um pouco e eu diria que
os antiglobalizadores são os inocentes úteis do terrorismo fundamentalista, mas
não vou ofender gratuitamente uma tribo de jovens ingênuos (ainda que animados
por velhacos de má-fé e intelectualmente desonestos). Vou apenas torcer para
que essas “crenças irracionais” da globalização – aliás animadas pelas próprias
ferramentas da globalização – sejam rapidamente revertidas e colocadas a
serviço do único processo que vai diminuir, progressivamente, os fervores
terroristas.
Brasília, 10 setembro 2011
Paulo Roberto de Almeida é diplomata,
professor universitário e autor de Globalizando.