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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O farol brasileiro da liberdade? - Sergio Leo (VE)


O farol brasileiro
Sergio Leo
Valor Economico, 12 de Setembro de 2011 -
 
"A America foi alvo de ataque porque somos o mais brilhante farol para liberdade e oportunidade no mundo", discursava, há dez anos e um dia, em cadeia nacional de TV, um atônito George Bush, para a população dos Estados Unidos, traumatizada com o atentado terrorista que derrubou as torres do World Trade Center e matou quase três mil pessoas. O trauma e a bandeira da liberdade e democracia seriam sequestrados pelo governo Bush, em seguida, para servir a outros propósitos, como a derrubada de Saddam Hussein, no Iraque, que nada tinha a ver com o atentado às torres gêmeas. Mas há pelo menos uma importante lição de política externa para o Brasil nesse episódio.
Bush não estava apenas ensaiando uma resposta retórica. Em meio à perplexidade mundial, apelou a um importante mito de formação da sociedade americana, de contornos religiosos: a condição excepcional de farol moral para o mundo. A crença no excepcionalismo dos EUA é real, não hipocrisia em defesa de interesses inconfessáveis e bem materiais - ainda que, a pretexto da luta pela democracia, suspeitos de terrorismo tenham até sido enviados por órgãos de inteligência americanos à Líbia, para interrogatório nas masmorras de Muamar Gaddafi, como se soube após a queda do ditador africano.
Mesmo o mais duro realismo geopolítico em Washington busca nesse mito positivo as justificativas para ação. Os valores morais são uma referência para a sociedade americana julgar o sucesso de sua política externa. O povo americano apoiou a guerra no Iraque não pelos lucros que traria à Halliburton ou por considerações sobre o xadrez político da região, mas pela convicção de que estaria combatendo uma ameaça à paz e democracia no mundo.
No Brasil, as opções da diplomacia não consolidam apoio
Implicitamente, a presidente Dilma Rousseff reconheceu a força desse argumento idealista, quando cobrou dos diplomatas, em seu governo, uma ação menos ambígua do Brasil na defesa dos direitos humanos. A tentativa de dissipar ambiguidades foi atropelada, porém, pela complexidade das questões em que o Brasil se envolveu, na busca de um papel mais importante no jogo mundial de poder.
Por muito tempo, o governo brasileiro recorreu principalmente a argumentos pragmáticos quando questionado sobre sua ação internacional. O Mercosul e a aparente leniência com a hostilidade de governos vizinhos, como a Argentina protecionista, por exemplo, são defendidos com a lembrança dos crescentes saldos comerciais mantidos pelo Brasil em sua relação com os países da América do Sul. Não faz muito tempo, os mercados africanos em expansão eram apontados como uma das principais justificativas para viagens presidenciais e abertura de embaixadas na África.
Esses argumentos perderam o apelo, porém, com o incômodo revelado pelos países vizinhos em relação ao expansionismo brasileiro no continente, e com a emergências de casos exemplares de desrespeitos aos direitos humanos em países como Líbia e Síria. O Brasil não consegue se eximir de cobranças pela atuação nas Nações Unidas agitando a lembrança de que há um padrão duplo na ação dos países desenvolvidos, que fecham olhos para violações de aliados como a Arábia Saudita - onde, como lembra o ditador sírio, Bashar al-Assad, as mulheres sofrem opressão não vista na Síria mais ocidentalizada.
É evidente a ação do Planalto na vacilação do Itamaraty em condenar mais severamente o ditador Gaddafi, em queda. A falta de pronunciamentos mais veementes no caso líbio não se explica sem uma disposição explícita da presidente Dilma Rousseff em fixar limites, nesse caso, ao compromisso oficial com os direitos humanos. É de se imaginar, ainda, a influência de empresas brasileiras com interesses no país de Gadaffi.
Na busca por um papel mais ativo nas Nações Unidas, o Brasil não é o único a contrariar potências ocidentais. A Índia, por exemplo, aparentemente interessada em reatar laços com o Irã, com quem tem fortes laços comerciais, e preocupada em não perturbar sua grande população de credo muçulmano, tem se aliado a China, Rússia, Brasil e África do Sul na resistência contra a pressão para a saída de Assad, vinda de França e Estados Unidos. Já Rússia e China não precisam conquistar apoio interno para defender Assad.
O Brasil tem recorrido à tradição diplomática de respeito à soberania e à autonomia dos países. Também argumenta que a intervenção armada não garante a paz para a população; pode ser o contrário, como mostra o exemplo do Afeganistão.
A solução de conflitos pela via diplomática é outro dos discursos orientadores da ação diplomática brasileira. Diferentemente da simplicidade do mito do excepcionalismo americano, porém, nenhuma dessas narrativas tem se mostrado capaz de consolidar apoio interno para a diplomacia brasileira, criticada pela falta de atitudes mais firmes em casos tão distintos quando a crise política na Síria ou as ações de países sul-americanos contrárias a interesses privados.
Sergio Leo é repórter especial e escreve às segundas-feiras
Fonte: Valor Econômico

sábado, 10 de setembro de 2011

Nine Eleven: the View From Abroad - Claire Berlinski


The View from Abroad
What it was like to be an American in France in the aftermath of 9/11
The City Journal, vol. 21, n. 3, Summer 2011, 9 September 2011

I was in Paris, alone. My father was in Washington, D.C., with his parents. After seeing the images on television, my grandfather, already ill, collapsed. My memories of September 11 are bound up inextricably with my grandfather’s death.
My grandparents were musicians, refugees from the Nazis. They fled to Paris from their native Leipzig in 1933. From my grandfather’s memoirs:
Then came September 1, 1939, when I found myself in the uniform of the French Foreign Legion. The legion disregarded my skill as a pianist and composer and proceeded to train me to play the following instrument with more or less perfection: A Hotchkiss machine gun, model 1916. Of this instrument, one can say that one is expected to play it with deadly accuracy. And I always had some talent with instruments, musical or otherwise . . .
When we arrived in the United States in late 1941, the immigration officer looked at our documents, stamped with a dozen stamps bought with blood and tears, and said, “Welcome Home.”
My grandfather was one of the handful of survivors of his regiment. We have the official army records, yellow and weathered. In just a few days of action, the 12th Regiment went from 2,250 men to 225 men. The survivors were as a group awarded the Légion d’honneur. The Regiment still flies the emblem of the Légion d’honneur on its standard. The Hotchkiss fired something like eight rounds a minute: German machine guns fired ten times as many rounds in the same period of time. Or so he wrote.
I don’t think I’ve reviewed the e-mail I sent to friends in the wake of the attack even once in the past ten years. It occurred to me to do so while thinking about this anniversary. I wanted to know if my memories of my reaction were true. I was surprised by what I found. This is what I was really thinking, not what I remember thinking. I’ve only omitted the names and a detail or two that might identify the friends to whom I wrote.
My grandfather is at Sibley Hospital, which my father says is strangely empty—I guess all the casualties were taken to other hospitals, or maybe there are no casualties, because they’re all dead.
Paris is not quite under martial law, but it’s close, the city is on the highest possible anti-terrorist alert. There are soldiers with automatic weapons on the streets.
French people are coming up to me in the street with tears in their eyes and telling me that they love America.
*
It’s 4:24 in the morning here, and I can’t sleep. . . . I don’t know why it didn’t dawn on any of us before that crazed and demonic people might long to plough a human payload of terrified souls into a building in the heart of New York City.
*
Note from Paris: New Yorkers may have been taken aback by Chirac’s use of the word “drama” to describe the attacks and their aftermath. He probably didn’t realize the connotations of this word in English. I doubt he meant to suggest that the events were theatrical; in French the worddrame means tragedy. It’s one of those faux amis they warn you about. He’s not actually a completely insensitive, inappropriate moron. I know this because after nearly going out of my mind with rage at French newscasters for calling this a drame, I finally looked it up.
*
M—, basically I agree with you, and I think Bush will handle this fine. He’s calm, he’s in control, and he’s surrounded by the right people. I don’t think we’re leaderless, as S— said. But I also agree with S— that words and oratory count at a moment like this. It is simply grotesque to describe the perpetrators as “folks,” even if it is an unstaged first reaction, or to describe this as a “tragedy,” as if someone had been bitten by a shark. S— is right; the word he needed was “evil.” He used it, later. The word he needed was “murder,” not tragedy. Thousands of innocent men, women and children were murdered by men of unfathomable evil; no one succumbed to “tragedy” at the hands of “folks.”
Thanks everyone for the kind thoughts about my grandfather; we’re still not sure what’s wrong.
*
My phone has been ringing non-stop; all of my French friends are grief-stricken and appalled and overwhelmed, and they all wanted to talk to me because I’m American and they wanted to tell me that they love America, would enlist today if they could to avenge these murders. Today all of Europe shut down for three minutes of silence; 200,000 Germans stood outside the Brandenburg Gate; thousands stood silent in the streets of Paris, Toulouse, Rome, Warsaw . . . then the French and British leadership sang the U.S. national anthem, which was eerie and profoundly moving.Le Monde ran an editorial that said “Today we are all Americans,” and “France owes America its liberty”—two phrases I never thought I’d see in Le Monde in my lifetime. All trace of subtle anti-American sentiment seems to have disappeared. Of course, 200 French people are missing in the rubble, too.
*
What I haven’t seen in the press, what I’d like to see, is a specific discussion of the details of various military options. I’d like to see a detailed statement of our war aims, for a start: “Ridding the world of evil” is great, but it won’t happen in our lifetimes. Neither, for that matter, will “whipping terrorism”—are we going to go after the IRA, the Basque separatists, while we’re at it? I want to see a clear, intelligible formulation of plausible objectives. I cannot find one anywhere in the press.
Then I’d like to see a detailed analysis of the various military options we might employ: What would it take to occupy, say, Kabul, Baghdad and every terrorist training camp or military facility related to this attack, all facilities for the manufacture of weapons of mass destruction in Iraq, Iran, Libya, Syria, Sudan? How many carrier groups, what kind of aircraft, artillery, missiles would we need, how many ground troops, how long would it take to effectuate this kind of campaign, what kind of casualties would we take; do we have what it takes now or will we have to enter a prolonged phase of military production first? How many men do we currently have under arms, what weapons are battle ready, what would the numbers be if the whole of the NATO alliance is involved; a full-fledged international coalition? How should the battle be waged, geographically and strategically? There would be a sustained air campaign first, obviously, followed by a ground campaign—but of what kind? Where should forces be concentrated? What kind of civilian casualties would we inflict? What scenarios are more and less likely to lead to a wider Mideast war, a nuclear holocaust involving India and Pakistan?
I hear, “level Kabul,” but there’s nothing in Kabul but a few cripples and a pathetic one-eyed lion in the Kabul Zoo. We can’t bomb Kabul back to the Stone Age because it’s already there. So does it make sense to waste time, money and life eviscerating Kabul, when there are so many more targets of real strategic significance?
If you’ve seen any intelligent analysis of these questions, tell me where. The media are full of stirring calls to war and animadversions that this time, we must mean business, and God knows I agree, I just want to know exactly how we’re going to do it.
*
Things aren’t so good here; my grandfather did have a heart attack and it looks unlikely that he will live very long. I want to fly to Washington to be with him, but he and my grandmother have demanded I not get on a plane (for obvious reasons). He was 91 and in fragile health before this happened.
They’ve been side by side for 70 years. How will she cope?
My grandfather rallied briefly, then died. I did not see him. I have wished many times in the past decade that I could speak to him about what happened and what has happened since. No one I have ever known has had instincts about politics, war, and its conduct that I trust so deeply. I know what I know from reading books. He knew from experience. Ten years later, I have still not seen an answer to the questions I asked that week about our strategy.
My father told me that though my grandfather was very ill, he was quite lucid in reacting to the news of that day; he understood at once that it was a major atrocity. “They must pay for it with a city,” he said. I wish I knew exactly what he meant.

Claire Berlinski, a City Journal contributing editor, is an American journalist who lives in Istanbul.

O mundo sem o Onze de Setembro: explorando hipóteses - Paulo Roberto de Almeida


O mundo sem o Onze de Setembro: explorando hipóteses

Paulo Roberto de Almeida
Blog do Paulo Roberto de Almeida (http://www.observadorpolitico.org.br/blogs/pralmeida/) no Observador Político (10/09/2011, às 23:15; link: http://www.observadorpolitico.org.br/2011/09/o-mundo-sem-o-onze-de-setembro-explorando-hipoteses/).

Imaginemos, por um momento, que não tivesse ocorrido o Onze de Setembro. As duas torres gêmeas ainda fariam parte do skyline do sul de Manhattan e o Pentágono não teria sido renovado, continuando, portanto, a exibir sua horrível arquitetura stalinista (que, por sinal, ele ainda tem, a despeito das fachadas mais limpas e menos cinzentas). Mais importante, 3 mil pessoas não teriam sido barbaramente eliminadas – e me desculpo imediatamente por não mencionar isso em primeiro lugar – por um dos mais espetaculares (e cinematográficos) atentados jamais ocorridos na história.
Claro, outras matanças “terroristas” produziram muito mais vítimas, algumas delas até em doses concentradas (ou delongadas, como os crimes igualmente bárbaros ou genocídios perpetrados por déspotas e tiranos como Hitler, Stalin, Mao e outros candidatos menores), mas nenhuma, até aqui, frequentou tanto os espaços da mídia quanto aquela perpetrada numa bela manhã de céu azul do final do verão americano. Nenhuma dessas outras matanças – historicamente mais relevantes – foi vista ao vivo por milhões de pessoas ao redor do mundo; a repetição contínua, nos canais de TV, dos ataques às torres gêmeas ainda nos enche de horror e de estupefação (ainda que sem mais a completa surpresa daqueles momentos terríveis).
Imaginemos, então, que não tivessem ocorrido esses ataques – aliás dotados de “tecnologia” relativamente ingênua, cujos autores poderiam ter sido detectados e interceptados a caminho de seu intento criminoso – ou que, simplesmente, o cérebro que esteve por trás de seu planejamento pudesse ter continuado suas ações “normais” de terrorismo localizado, sem conceber tal tipo de ação verdadeiramente espetacular. O mundo não teria esse “marco fundador do século XXI” assim classificado por cronistas e observadores contemporâneos (e que talvez seja confirmado pelos historiadores). Não teria deixado de existir Al Qaeda e atentados terroristas, mas teríamos sido poupados do horror desse marco simbólico do terrorismo fundamentalista da era contemporânea.
Sem esses ataques o mundo teria sido muito diferente? Vejamos, por meio de um exercício de imaginação, como seria, ou como poderia ser, o mundo atual, sem o Onze de Setembro.

O Afeganistão, em primeiro lugar, seguiria por alguns anos mais – não sabemos exatamente quanto tempo mais – com o horrível regime dos talibãs, que continuaria a oprimir as suas mulheres (e os homens também), seguiria desmantelando estátuas e símbolos iconoclastas em sua concepção (como a lamentável destruição dos budas gigantes de Bamian) e continuaria, obviamente, a abrigar bases de treinamento de grupos terroristas ao estilo da Al Qaeda (que continuaria planejando ataques contra alvos americanos e ocidentais, como o do U.S.S. Cole, nas costas do Iêmen, ou das embaixadas em Nairóbi e em outros lugares). O Paquistão vizinho, em segundo lugar, continuaria abrigando grupos terroristas, que continuariam atacando alvos na Cachemira ocupada ou na própria Índia. Palestinos e israelenses continuariam se matando uns aos outros, em pequenos e grandes atentados. A teocracia iraniana também continuaria oprimindo seus dissidentes e sustentando grupos terroristas e nacionalistas da região, como os do Hamas ou do Hesbollah. A violência anticristã dos fundamentalistas islâmicos do norte da Nigéria continuaria produzindo vítimas entre os habitantes de pequenas aldeias no centro do país. As ditaduras árabes continuariam oprimindo seus povos, na indiferença geral...
Os Balcãs, com exceção do Kossovo, continuariam talvez pacificados pelas forças da OTAN, mas se encaminhariam progressivamente para a integração europeia, como já parecia inevitável. Mas os grupos antiglobalizadores continuariam, na Europa, nos EUA e em outros lugares, a perturbar as reuniões multilaterais, provando, mais uma vez, que não é difícil reunir multidões de ingênuos em torno de teses idiotas que pretendem lutar contra a globalização, como se fosse possível interromper marés, maremotos e furacões...
A Europa e talvez o mundo continuariam, por alguns anos mais, como efetivamente ocorreu, a enfrentar a doença da vaca louca, assim como a Ásia continuaria a se debater com epidemias animais que ocasionalmente ameaçam transmigrar para a espécie humana. Terremotos, maremotos e outros acidentes naturais continuariam a produzir seu lote de enormes desastres humanos nos lugares e países mais desprovidos de condições materiais para minimizar seus efeitos catastróficos. Ecologistas ingênuos e ambientalistas científicos continuariam a anunciar as catástrofes decorrentes da ação industrial do homem, dizendo que o “fim está próximo” se não nos arrependermos de nossos progressos tecnológicos e não gastarmos algumas centenas de bilhões de dólares em medidas “preventivas” de duvidoso efeito real. O bug do milênio e a paranoia que ele despertou já teriam passado, mas hackers, crackers e outros cyber-terrorists continuariam a trazer preocupações aos órgãos de defesa e de inteligência, assim como aos simples webmasters de sites oficiais de governos e de empresas...
A América Latina continuaria com o seu cortejo de miséria, de desigualdades sociais, de corrupção e, claro, com o seu lote habitual de caudilhos histriônicos e de demagogos candidatos a qualquer coisa, a dilapidar os recursos públicos e a enganar populações de pobres e dependentes. O Haiti, provavelmente, não teria conseguido evitar sua trajetória de desastres naturais e humanos, e continuaria a depender da ajuda humanitária para evitar cenários ainda mais pavorosos. A África, muito pior, continuaria seu itinerário horroroso de conflitos étnicos, guerras civis, ditadores bilionários e doenças endêmicas, com alguma recuperação aqui e ali, e muita assistência pública internacional, como tem sido o caso no último meio século. Russos e cidadãos das repúblicas da Ásia central ainda teriam remanescentes dos antigos aparatchiks comunistas no poder, sobrevivendo na “maldição do petróleo” e continuando a construir o “modo capitalista-mafioso de produção”, uma modalidade não exatamente prevista por Marx.

O mundo, enfim, não seria muito diferente do que ele foi, na década que passou desde o Onze de Setembro, e do que ele é, hoje, com seu desfile de grandezas e misérias, grandes invenções e pequenos acidentes de percurso, filmes de Hollywood (e, cada vez mais, de Bollywood), prêmios Nobel e prêmios igNobel (alguns imerecidos, numa e noutra categoria), avanços dramáticos nas ciências, nas artes e na tecnologia (certamente iPod, iPhone e iPad), outros recuos não menos dramáticos na ética pública e na gestão governamental. Ou seja, certos desenvolvimentos naturais, certos processos sociais e alguns eventos contingentes teriam sido inevitáveis, em função da flecha do tempo e da roda impessoal da História. Resta ver, então, o que o mundo NÃO seria, no sentido de poder ter sido melhor do que ele foi, efetivamente, ou, eventualmente, de ter sido mais “ameno” ou simplesmente mais tranquilo, pelo menos potencialmente, na ausência daqueles fatídicos ataques.

Bem, os EUA não teriam atacado o Afeganistão – devidamente autorizados pelo Conselho de Segurança, relembre-se – e provavelmente não teriam tido “escusas” para invadir o Iraque e derrubar Saddam Hussein – não autorizados pelo CSNU, relembre-se – e não estariam envolvidos, com alguns aliados da OTAN, em duas guerras intermináveis, que já provocaram mais vítimas inocentes do que vários atentados terroristas reunidos. Claro, George Bush talvez tivesse buscado outras escusas, e outros expedientes, para terminar a missão inconclusa de seu pai na primeira guerra do Golfo. Mas provavelmente não teria ocorrido uma revisão radical nas estratégias de segurança dos EUA, como a “doutrina Bush” e a noção de “guerra preventiva”. Guantánamo não teria sido convertida em prisão para “inimigos combatentes”, à margem das convenções multilaterais relativas à guerra e “prisioneiros” de guerra. A própria noção de “guerra ao terror” provavelmente não teria existido, continuando apenas o trabalho habitual das agências de inteligência na prevenção aos ataques terroristas, seguido de uma ou outra ação tópica, de caráter militar, no desmantelamento de bases e eliminação de agentes em alguns hotspots do planeta.
Mais importante, talvez, para os cenários econômicos da globalização capitalista, os EUA não teriam acumulado 5 ou 6 trilhões de dólares adicionais de dívida pública e não estariam em tão má postura, como atualmente, para continuar a servir de “locomotiva econômica planetária”, nos momentos de recuperação da sempre esquizofrênica economia mundial. A ciclotimia habitual do capitalismo continuaria igual, claro, e crises financeiras continuariam a ocorrer com sua regularidade habitual, e nem sequer seríamos poupados dos desastres da bolha imobiliária, da crise financeira de 2008-2009 e da atual crise do endividamento público dos países avançados, que obedecem a uma lógica própria, sem nada dever a qualquer tipo de ataque terrorista de qualquer grupo religioso ou político. O capitalismo financeiro sempre produz seus próprios desastres, com quedas espetaculares dos valores das ações, sem necessidade de derrubada física dos papéis.
O único vínculo entre a crise atual e os ataques terroristas talvez seja o excessivo endividamento americano, mas o enorme buraco provavelmente não existiria, se Bush não tivesse lançado o país, irresponsavelmente, em duas custosas guerras de nation building e de construção de democracias em países já por si problemáticos. Os EUA, que obtiveram, espontaneamente, a imediata solidariedade de todo o mundo, no imediato seguimento dos ataques – Nous sommes tous américains!, escreveu em letras garrafais o Le Monde de 12 de setembro de 2001 – e que tiveram o apoio na luta contra o terror mesmo de competidores estratégicos, passaram a ser odiados em vários quadrantes, por causa de ações arrogantes, irrefletidas, unilaterais. Obviamente que não se pode combater grupos terroristas apenas com base no diálogo, na cooperação e na coordenação multilateral – que são instâncias ineficientes, ineficazes ou inexistentes, simplesmente –, mas a escolha de uma estratégia de “enfrentamento imperial” dilapidou rapidamente o crédito de confiança que eles tinham conquistado na conjuntura dos ataques.
Não é seguro que uma estratégia de maior coordenação e consulta com aliados habituais e parceiros circunstanciais teria evitado, por exemplo, os ataques terroristas de Madrid e de Londres – para ficar apenas em dois dos mais mortíferos – mas talvez fosse possível obter um ambiente de luta clandestina, nos bastidores e por ações mais de inteligência do que pelo uso da força bruta, que evitasse o antiamericanismo militante que surgiu a partir da invasão do Iraque. Grupos militantes e outros fundamentalistas espalhados ao redor do mundo talvez não tivessem se organizado em torno do rótulo Al Quaeda para perpetrar alguns desses ataques e tentativas de ações terroristas que foram, em parte, estimuladas pela resposta imperial americana.
O próprio conceito de “guerra ao terror” e o caráter punitivo a que esse tipo de enfrentamento conduz superestimam a capacidade dos grupos terroristas e realçam um hipotético status de combatentes, no plano do direito internacional, o que eles obviamente não são, no sentido próprio da palavra. O inteiro arcabouço jurídico internacional da luta contra o terrorismo poderia ter avançado mais, na ausência de uma resposta militar dos EUA aos ataques, ou mais exatamente, na ausência da estratégia americana de “guerra preventiva”, materializada especialmente pela invasão do Iraque. Ditadores e ditaduras foram poupados em certos cenários de “cooperação” na “guerra ao terror”, e muitos deles sobreviveram e sobrevivem ainda hoje, em função das tensões acumuladas nesse ambiente unilateralista criado pelos EUA.

Em qualquer hipótese, é extremamente difícil dizer se o mundo, sem o Onze de Setembro, teria sido muito diferente do que ele foi, pois forças impessoais continuam se movimentando na mesma direção, provocando, talvez, efeitos semelhantes, ou processos similares, aos que ocorreram a partir dos ataques terroristas e das respostas imperiais. Deve-se, em todo caso, relevar a parte dos fatores contingentes, dos imponderáveis humanos no desenvolvimento que efetivamente tivemos, desde antes do Onze de Setembro. Na ausência de homens como Osama Bin Laden e de George W. Bush – este aqui cercado dos “falcões” do unilateralismo americano, pois o próprio presidente era conceitualmente muito fraco e intelectualmente débil para conceber a sua “guerra ao terror”– provavelmente não teríamos tido nem os ataques do Onze de Setembro, nem as respostas desproporcionais que se seguiram, e que marcaram indelevelmente estes dez anos como uma das mais problemáticas décadas desde o final da Segunda Guerra Mundial.
A vida continua, os impérios se sucedem, o capitalismo se renova, os governos continuam acertando e errando na construção de sociedades mais seguras e mais estáveis, a prosperidade se instala lentamente num mundo de mercados cada vez mais unificados e é este último fator, finalmente, que vai conduzir, senão à eliminação do terrorismo, pelo menos à atenuação das vocações, ao arrefecimento dos ardores militantes e à diminuição do número de candidatos a ações terroristas. Quando todos os jovens miseráveis do planeta tiverem sido alçados a uma pobreza aceitável, e passarem a desfrutar dos equivalentes dos iPhones e iPads da atualidade, todos eles devidamente conectados, podemos ter certeza de que o mundo terá menos ditadores, menos miséria e menos terrorismo. Minha visão é, sim, economicista a este respeito, pois acredito que o espaço das crenças irracionais – e o terrorismo fundamentalista é basicamente uma crença irracional – será diminuído pela educação universal. E não existe melhor antídoto contra esses fenômenos reacionários, e melhor remédio à miséria educacional, do que o processo irrestrito da globalização de mercados.
Mais um pouco e eu diria que os antiglobalizadores são os inocentes úteis do terrorismo fundamentalista, mas não vou ofender gratuitamente uma tribo de jovens ingênuos (ainda que animados por velhacos de má-fé e intelectualmente desonestos). Vou apenas torcer para que essas “crenças irracionais” da globalização – aliás animadas pelas próprias ferramentas da globalização – sejam rapidamente revertidas e colocadas a serviço do único processo que vai diminuir, progressivamente, os fervores terroristas.

Brasília, 10 setembro 2011
Paulo Roberto de Almeida é diplomata, professor universitário e autor de Globalizando.

O Onze de Setembro visto do Brasil - Paulo Roberto de Almeida

O artigo abaixo, sobre o "recebimento" do Onze de Setembro no Brasil, foi escrito para um site de opiniões políticas (Observador Político) e aproveitou, apenas parcialmente, algumas partes deste artigo: 

Onze de Setembro, dez anos: recepção no mundo, reações no Brasil”, Revista Espaço Acadêmico, dossiê especial Onze de Setembro (ano 11, n. 124, setembro de 2011, p. 21-26; ISSN: 1519-6186, link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/14042/7731). Relação de Originais n. 2290   
mas é original em sua maior parte, senão em sua quase totalidade.
Paulo Roberto de Almeida

O Onze de Setembro visto do Brasil


Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor universitário.
Blog do Paulo Roberto de Almeida (http://www.observadorpolitico.org.br/blogs/pralmeida/) no Observador Político (10/09/2011; link: http://www.observadorpolitico.org.br/2011/09/o-onze-de-setembro-visto-do-brasil/). 

Três, basicamente, foram as atitudes dos brasileiros – cidadãos, personagens políticos e governantes – em relação aos ataques do Onze de Setembro. Todos, é claro, tomados de surpresa, ficaram chocados com a violência das imagens dos aviões, das explosões em New York e Washington e da derrubada das torres gêmeas de Manhattan.
Passada a surpresa inicial, começaram as reações públicas. Os cidadãos comuns expressaram de diversas maneiras seu horror em face de um dos mais espetaculares ataques terroristas de todos os tempos. Quantidade apreciável de brasileiros de classe média conheciam New York e muitos visitaram as torres gêmeas, marco visual e arquitetônico do sul de Manhattan: a solidariedade foi imediata, mas a estupefação dominou os sentimentos durante vários dias.
O presidente Fernando Henrique Cardoso falou imediatamente em “guerra”, curiosamente o conceito que seria retomado – equivocadamente, do ponto de vista político, tático, ou até estratégico – pelo presidente George Bush, em sua “guerra ao terror”. Seu chanceler, Celso Lafer, retomou, de seu lado, uma instituição da Guerra Fria, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (1947), para invocar, na OEA, o princípio da solidariedade hemisférica, oportunamente lembrado desse vetusto instrumento pelo presidente Vicente Fox, do México, que em visita a Washington, uma semana antes, havia pedido, simplesmente, a eliminação formal de um ato internacional que parecia desadaptado aos novos tempos de globalização e de fim do socialismo.
Os atores políticos reagiram cada qual à sua maneira, mas cabe o registro de declarações moralmente abjetas de certos militantes de esquerda que responsabilizaram os próprios Estados Unidos, e sua “política imperialista”, pelos ataques terroristas. O mais conhecido desses personagens, Aloísio Mercadante, então deputado do PT e secretário de relações internacionais do partido, depois senador, hoje ministro, desdenhou o número de vítimas, afirmando expressamente que não se deveria “exagerar na dimensão do episódio. Qualquer terremoto ou furacão na Flórida faz mais vítimas e provoca estragos muito maiores” (Jornal da Tarde, 18/09/2001). Trata-se de um tipo de afirmação – no mínimo insensível e, no limite, eticamente inaceitável – que revela um desprezo dificilmente admissível em face da perda de vidas humanas, quando elas resultam de algum tipo de “enfrentamento político” que possa colocar num dos lados da balança o alegado “opressor imperialista”.
Passado o choque dos eventos a quente, e iniciada a “guerra ao terror” do presidente Bush, o governo brasileiro atuou cautelosamente, num primeiro momento, apoiando, obviamente, a resolução do Conselho de Segurança da ONU que determinou a responsabilidade do regime talibã do Afeganistão pelo abrigo dado à rede terrorista Al Qaeda. Depois, nas “reações a frio” do governo que sucedeu à administração FHC, a atitude foi bem menos cooperativa. O governo Lula não apenas se empenhou ativamente, no plano diplomático, em obstar as iniciativas de Bush no sentido de vincular a administração iraquiana de Saddam Hussein ao fenômeno terrorista – o que poderia ser considerado como razoável, uma vez que nunca se provou a existência das famosas “armas de destruição em massa” ou os alegados vínculos – como também demonstrou pouca vontade de cooperar, no plano operacional, com a administração americana na ofensiva contra grupos terroristas eventualmente presentes na região.
Essa atitude do governo Lula pode estar fundamentada nos laços de cooperação que o PT, enquanto um dos partidos promotores do Foro de São Paulo, junto com o Partido Comunista Cubano, sempre manteve com as FARC, identificadas como grupo terrorista tanto pelo governo colombiano quanto pelo americano. Ao contrário, o assessor presidencial em temas internacionais, Marco Aurélio Garcia, um homem de confiança dos cubanos e um dos fundadores do Foro de São Paulo, ofereceu-se junto ao governo colombiano para servir de “intermediário no conflito” entre o governo de Álvaro Uribe e aquele grupo guerrilheiro, na verdade narcoterrorista, colombiano, no que foi imediatamente repudiado por nota diplomática daquele governo. Depois de dois anos, as FARC foram discretamente aconselhadas a não mais participar publicamente das reuniões do Foro de São Paulo, o que não quer dizer que elas tenham deixado de assistir informalmente a esses encontros da esquerda latino-americana anti-imperialista.
Mas o Brasil do governo Lula nunca associou-se formalmente aos esforços de definição de movimentos terroristas, como também sempre repudiou, pelo menos abertamente, as alegações dos EUA sobre a eventual ação de grupos terroristas na tríplice fronteira de Foz de Iguaçu (o que não impediu a existência de contatos informais entre os órgãos de segurança dos dois países a esse respeito). Na verdade, o governo brasileiro manteve, nas instâncias diplomáticas internacionais, uma atitude defensiva a respeito da caracterização de grupos ou ações terroristas, preferindo insistir nas causas supostamente “sociais” do fenômeno terrorista – injustiça, pobreza, dominação ocidental – e na necessidade de iniciativas “reparadoras” dessas situações por meio do diálogo e da cooperação, não por meio de ações militares ou taticamente ofensivas. De forma geral, esse tipo de atitude se mantém até hoje.
Brasília, 9/09/2011

O antiamericanismo da esquerda brasileira e o Onze de Setembro - Paulo Roberto de Almeida

O artigo abaixo, sobre o antiamericanismo da esquerda brasileira em relação ao Onze de Setembro, foi escrito há mais tempo e incorporado, apenas parcialmente, a este artigo: 


“Onze de Setembro, dez anos: recepção no mundo, reações no Brasil”, Revista Espaço Acadêmico, dossiê especial Onze de Setembro (ano 11, n. 124, setembro de 2011, p. 21-26; ISSN: 1519-6186, link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/14042/7731). Relação de Originais n. 2290 
 
publicado em formato resumido, podendo, portanto conter passagens de um e outro, mas com cortes.
Reproduzo agora essa seção de forma integral, mas que é apenas um subconjunto de um ensaio maior.



O antiamericanismo da esquerda brasileira e o Onze de Setembro

Paulo Roberto de Almeida

Como reagiu a esquerda brasileira aos atentados de onze de Setembro de 2001? Pelo menos uma parte da militância não hesitou em condenar os próprios Estados Unidos, pelo que foi identificado a uma “reação lógica” de grupos “oprimidos pelo imperialismo americano”. Vejamos alguns exemplos.
No próprio dia dos atentados, o deputado estadual Roque Grazziotin (PT-RS), disse que considerava o atentado a “consequência do processo de dominação” norte-americana no mundo (O Estado de São Paulo, 12/09/2001). Outro deputado do PT gaúcho, Edson Portilho, disse que, “por coerência”, lamentava que “milhares de vidas tenham sido ceifadas” nos Estados Unidos, mas comparou o atentado a outros episódios em que o governo norte-americano foi responsável: “São as mesmas cenas que o mundo repudiou no Vietnã e no Oriente Médio e que foram patrocinadas pelos Estados Unidos”, afirmou. Por sua vez, a então deputada estadual (depois federal) Luciana Genro (PT-RS e, posteriormente, PSOL) disse que “essa tragédia é de responsabilidade do governo norte-americano, porque os Estados Unidos promovem o terrorismo de Estado no mundo inteiro” (OESP, 12/09/2001).
O Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, filiado à CUT, distribuiu uma nota com o seguinte título: “Atentados em Nova York: trabalhadores continuarão combatendo o imperialismo”. Os sindicalistas afirmavam que, “numa consulta a lideranças políticas e sindicais”, concluíram que “a unanimidade das lideranças condena esse tipo de iniciativa, cuja grande massa de vítimas são inocentes [sic]. No entanto, também há um consenso de que a política externa dos Estados Unidos é um agente provocador de tal reação”. O presidente estadual do PT-RS, Silvino Heck, disse que respeitava “as posições dos movimentos sociais” e concordava que o episódio “nos obriga a repensar a política americana”, mas considerava “injustificável qualquer ato de terrorismo”. Ainda assim, ele condenou antecipadamente a decisão americana de retaliar o atentado, que já apontava para o papel do regime talibã no Afeganistão (OESP, 12/09/2001).
O deputado (depois senador) Aloízio Mercadante (PT-SP), então secretário de Relações Internacionais do partido, tentou minimizar os atos terroristas, afirmando que não se deveria “exagerar na dimensão do episódio. Qualquer terremoto ou furacão na Flórida faz mais vítimas e provoca estragos muito maiores” (Jornal da Tarde, 18.09.01). Trata-se de um tipo de afirmação – no mínimo insensível e, no limite, eticamente inaceitável – que revela um desprezo dificilmente admissível em face da perda de vidas humanas, quando elas resultam de algum tipo de “enfrentamento político” que possa colocar num dos lados da balança o tradicional “opressor imperialista”.
Essas reações da esquerda brasileira aos atentados de 2001 conformam o padrão típico do anti-imperialismo primário e no mais das vezes ignorante (para não dizer moralmente abjeto) que caracteriza a esquerda comunista em geral e a latino-americana em especial quando o que está em jogo é o “império”. Na ocasião elas espelhavam – e provavelmente ainda refletem – o ódio instintivo que esses grupos de “antiamericanos profissionais” mantêm em relação à grande potência imperial, capitalista e arrogante, que simboliza tudo o que esses grupos consideram negativo no plano político mundial.
Os exemplos mais frequentes, atualmente, de terrorismo político, são de extração basicamente islâmica. Ele é totalmente negativo e se situa no terreno do niilismo político e da negação de qualquer norma civilizada. Isso não parece ter sido compreendido pela esquerda, em parte porque os fundamentalistas também deblateram contra a dominação ocidental e o imperialismo americano, tradicionais demônios ideológicos da esquerda. Com isso elas acabam sendo coniventes com os piores crimes já cometidos contra civis de que se tem notícia e que não se resumem aos bárbaros atentados de setembro de 2001.
A esquerda parece ter deixado de lado imperativos morais que se colocam acima e além das conveniências políticas. Ela não parece ter refletido sobre o terrorismo especificamente islâmico e não consta que de seus meios tenha emergido uma condenação in totum desse tipo de “luta política”. Na verdade, é difícil atribuir-se a classificação de “luta política” a ações armadas cujo único objetivo é precisamente esse: infundir o terror, com base numa distinção étnica ou religiosa que nos remete aos piores momentos das guerras de religião, das cruzadas de reconquista ou do genocídio hitlerista.
A denúncia dos “crimes americanos” é atávica nesses grupos, que também passam sob silêncio os atentados aos direitos humanos que se cometem em várias ditaduras do Terceiro Mundo. No próprio Brasil, aliás, o sentimento antiamericano parece ser disseminado, na imprensa e nos meios acadêmicos em geral, por razões por vezes primárias, mas geralmente contraditórias. De fato, as mesmas pesquisas que indicam uma rejeição muito forte aos EUA e a seus dirigentes (pelo menos aos republicanos conservadores) – e que podem ou não corresponder aos estereótipos geralmente mantidos contra a potência imperial, por mais equivocados que sejam – também confirmam uma aceitação acrítica de produtos, modismos e outros símbolos culturais da sociedade americana: ainda que odiando os EUA, terroristas e esquerdistas do mundo inteiro não rejeitam os gadgets e os meios de comunicação inventados pela potência imperial.

[Brasília, 4/09/2011]
Publicado, sob o título de “Antiamericanismo primário”, no jornal Notícias do Dia (Florianópolis, ano 6, n. 1715, Fim de Semana, 10 e 11 de Setembro de 2011, p. 19; www.NDonline.com.br). Relação de Publicados n. 1051.