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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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terça-feira, 4 de maio de 2021

As novas faces do ateismo, livro de John Gray - resenha de Marcelo Marthe (Veja)

 Filósofo inglês John N. Gray examina as facetas do ateísmo em novo livro

É famosa a frase atribuída ao inglês G. K. Chesterton segundo a qual “quando um homem deixa de acreditar em Deus, ele não passa a acreditar em nada – passa a acreditar em qualquer coisa”. Em certo sentido, o mais recente livro do filósofo John N. Gray, Sete Tipos de Ateísmo (Record), é um registro interessante das coisas em que os seres humanos são capazes de acreditar no lugar da religião e de Deus. Como afirma Gray, o livro não tem o propósito de converter ninguém ao ateísmo – muito menos, de conduzir quem quer que seja a alguma fé. Trata-se, isso sim, de mais um elegante e prazeroso ensaio do autor de Cachorros de Palha(2002) e Missa Negra (2007), livros com os quais o erudito professor de Filosofia Política na Universidade de Oxford e, posteriormente, na London School of Economics tornou-se um best seller mundial, alcançando um tremendo público que seus excelentes trabalhos acadêmicos nunca teriam sido capazes de alcançar.

O livro “Sete tipos de ateísmo”, de Gray, John, publicado pela Editora Record

É nesse espírito de diálogo com o grande público que Sete Tipos de Ateísmo chega ao leitor brasileiro. Com agilidade e clareza jornalísticas, Gray apresenta os ateísmos que pretende analisar: o “novo ateísmo” militante de nomes como Richard Dawkins e Sam Harris; o “humanismo secular”; o ateísmo que transforma a ciência em religião; as religiões políticas modernas (do jacobonismo ao nazismo e comunismo); o ateísmo dos que odeiam Deus (exemplificado pelo Marquês de Sade, entre outros); o ateísmo de Joseph Conrad, que rejeita a ideia de um Deus criador; e, por fim, o ateísmo místico do pensador alemão Arthur Schopenhauer.

Ao se lançar à escrita para o grande público, saindo dos círculos mais estritos da academia, Gray levou consigo algumas importantes marcas do trabalho como filósofo político que tinha realizado durante mais de 20 anos nas prestigiadas universidades inglesas. Discípulo do grande pensador Isaiah Berlin (a respeito de quem escreveu uma excelente biografia), interlocutor muito próximo de Michael Oakeshott (de cuja obra é grande conhecedor), o autor de O Silêncio dos Animais estudou meticulosamente a política da Europa moderna, isto é, dos últimos 400 anos – em suma, a política que nos legou as democracias liberais, constitucionais e representativas, mas também as grandes ideologias totalitárias do nazi-fascismo, à direita, e do comunismo, à esquerda. E se há um elemento que Gray soube identificar na política moderna é seu caráter de sucedânea da fé em Deus e das religiões reveladas instituídas, centrais na vida espiritual, mas também na vida pública, política, da Europa até poucos séculos atrás – tema presente em inúmeros de seus livros e ensaios para a imprensa, sobretudo em Missa Negra. Sai Deus, entra o “progresso humano”.

Não por acaso, o melhor do livro Sete tipos de Ateísmo está justamente no capítulo 4, aquele em que Gray se dedica a analisar o quarto tipo de ateísmo de sua lista de sete: “As religiões políticas modernas, do jacobinismo ao liberalismo evangélico contemporâneo, passando pelo comunismo e pelo nazismo”. Reconhecendo o perfil de fanatismo crédulo e inclinado à violência em nome da doutrina que todas essas variedades de movimentos políticos compartilham, Gray vê na raiz desse modo de compreensão da política o milenarismo:

“Os movimentos revolucionários modernos são continuações do milenarismo medieval. O mito de que o mundo humano pode ser refeito em uma reviravolta cataclísmica não morreu. Mudou apenas o autor desse fim dos tempos transformador do mundo. Nos velhos tempos, era Deus. Hoje, é a humanidade”.

Da “Ordem de Enforcamento” de Lenin, de agosto de 1918, em que o revolucionário russo instruía os bolcheviques a executar por enforcamento os camponeses que resistissem à política de confisco de grãos, “para que a população possa ver e temer”, à delirante convicção do artista Kazemir Malevich, para quem “a morte de Lenin não é morte, ele está vivo e é eterno”, é difícil não reconhecer as similaridades com a religião na estrutura de pensamento e nas práticas políticas historicamente comprovadas. Entretanto, pouco do que vem nesta análise é novo, e o leitor dos livros anteriores de Gray sairá com a sensação do déjà-lu.

Entre os sete tipos de ateísmos analisados por John Gray, o que há de mais recente é também o mais banal, esquemático e superficial. Sua análise do “Novo Ateísmo” de Dawkins e Harris, por exemplo, é provocadora e suficientemente convincente ao menos para relativizar o alcance da argumentação dos novos ateus. Um exemplo: ateu ou não, o leitor certamente deverá pensar duas vezes ao deparar com as afirmações de Sam Harris, que deseja “uma ciência do bem e do mal”, uma “ética científica”. Como afirma Gray, “não é por acaso que nem ele [Sam Harris] nem qualquer dos novos ateus promovem a tolerância como valor fundamental. Se a ética pode ser uma ciência, não há necessidade de tolerância”. Gray despacha esses ateus sem voltar a eles ao longo do livro.

Algumas modalidades de ateísmo, é claro, saem-se melhor na foto tirada por John N. Gray – ele próprio um cético bastante distante de qualquer variedade de fé religiosa. Por diversas vezes o ateísmo de certas escolas filosóficas da antiguidade helenística é mencionado como exemplar em sua moderação. No geral, contudo, vale a máxima chestertoniana: como espécie, parecemos inclinados a acreditar em qualquer coisa quando deixamos de aceitar um sistema de crenças espirituais altamente ordenado como o são as religiões tradicionais.

Os exemplos divertem, mas também chocam. Entre os adeptos do Humanismo Secular, o segundo tipo de ateísmo examinado por Gray, temos Karl Marx. Esse humanismo secular deveria ter substituído os males pregressos da humanidade, entre os quais se encontrava a religião – a grande opressora! –, e conduzido o gênero humano à salvação pela História. Os males humanos, contudo, seguiram os mesmos, ou até piorados, com esses seculares salvadores da espécie como Marx, que em seu profundo “humanismo” é capaz de escrever esse trecho torpe sobre Ferdinand Lassalle, dirigente socialista judeu alemão:

“Agora está perfeitamente claro para mim, como provam a forma da sua cabeça e o crescimento do seu cabelo, que ele [Lassalle] descende de negros que se juntaram à marcha de Moisés na saída do Egito (se é que sua mãe ou sua avó não se acasalaram com um crioulo). E esta combinação de judaísmo e germanismo com uma substância básica negroide deve gerar um produto peculiar. A agressividade do sujeito também é característica de crioulos.”

Como se vê, não é só o messianismo inerente ao marxismo que envelheceu mal. E na artilharia de Gray, não há seita que escape. Veja-se, por exemplo, o que diz sobre a curiosa figura de Ayn Rand, emigrada russa, escritora e líder de uma seita que prosperou nos Estados Unidos, contando com adeptos até hoje (e mesmo no Brasil):

“O culto de Rand se destinava a governar cada aspecto da vida. Como grande fumante que era, seus seguidores eram instruídos a fumar também. (…) Não foi à toa que os ultraindividualistas que se tornaram discípulos de Rand passaram a ser conhecidos no movimento como ‘o Coletivo’. A escolha dos parceiros de casamento também era controlada. Na sua visão das coisas, seres humanos racionais não devem se associar aos que são irracionais. Não poderia haver pior exemplo disso do que duas pessoas unidas em casamento simplesmente pela emoção, e assim os oficiantes do culto tinham poderes para aproximar discípulos de Rand apenas de outros que também abraçassem a fé. Da cerimônia de casamento constava um juramento de devoção a Rand, seguido da abertura de ‘A Revolta de Atlas’ em uma página aleatória para leitura de um trecho do texto sagrado.”

Os exemplos bem o demonstram: a humanidade é capaz de acreditar em qualquer coisa. Felizmente, algumas dessas coisas são apenas aberrações patéticas, como é o caso da seita de Rand. Outras seitas já foram capazes de exterminar dezenas de milhões, como o nazismo e o comunismo.

Espantoso, mesmo, é que todas essas seitas sigam com ativos seguidores em toda parte ainda hoje.


sábado, 10 de setembro de 2011

Falando com (ou como?) os animais - John Gray


A Point of View: Behaving like animals

A cat and three dogs
Why does the human animal need contact with something other than itself, asks John Gray.
Many years ago an eminent philosopher told me he'd persuaded his cat to become a vegan. To begin with I thought he was joking. Knowing a bit about cats, I couldn't take seriously the idea that they'd give up their predatory ways.
"You must have provided the cat with some pretty powerful arguments," I said jokingly. "It wasn't as difficult as you may think," he replied rather sternly.
He never explained exactly how the transformation was achieved. Was his cat presented with other cats that had converted to veganism - feline role models, so to speak? Had he prepared special delicacies for his cat - snacks that looked like mice but were made of soya, perhaps?

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John Gray
  • A Point of View is on Fridays on Radio 4 at 20:50 BST and repeated Sundays, 08:50 BST
  • John Gray is a political philosopher and author of False Dawn: The Delusions of Global Capitalism
Beginning to suspect that the philosopher might after all be serious, I asked if the cat went out. He told me it did. That answered a part of my puzzlement. Evidently the cat was supplementing its vegan diet by hunting, natural behaviour for cats after all.
I was still a little perplexed though. Cats tend to bring their hunting trophies back home and I wondered how the philosopher had missed seeing them. Had the cat hidden them out of sight? Or were the cat's trophies prominently displayed but disregarded by the philosopher, marks of atavistic feline behaviour that would eventually disappear as the cat progressed towards a new kind of meat-free life?
The conversation tapered off and I never did get to the bottom of the mystery. The dialogue did set me thinking. Evidently the philosopher thought of the cat as a less evolved version of himself that, with a lot of help, could eventually share his values. But the idea that animals are inferior versions of humans is fundamentally misguided.
Each of the millions of species that evolution has thrown up is different and particular, and the animals with which we share the planet aren't stages on the way to something else - ourselves. There's no evolutionary hierarchy with humans perched at the top. The value of animals - or as I'd prefer to say other animals - comes from being what they are. And it's the fact that they are so different from humans that makes contact with them so valuable to us.
Human qualities
Some philosophers - not many it must be admitted - have in the past understood this. The 16th Century French essayist, Michel de Montaigne, loved cats because he knew he would never be able to enter their minds. "When I play with my cat," he asked, "how do I know she is not amusing herself with me rather than I with her?"
Montaigne didn't want his animal companions to be mirrors of himself, he wanted them to be a window from which he could look out from himself and from the human world.

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Unless it has contact with something other than itself, the human animal soon becomes stale and mad”
Never more than partly domesticated, cats are never fundamentally humanised. Montaigne found them lovable for precisely this reason, it wasn't that he was suggesting we should emulate cats. Wiser than the philosopher who believed he'd converted his cat to veganism, he understood that the good life means different things for animals with different natures. What he questioned was the idea that one kind of life, the kind humans alone can live, is always best.
It's true that cats don't have some of the capacities we associate with morality. They seem to lack empathy, the capacity of identifying with the emotions of others. This may explain what has often been described as cruelty in their behaviour, toying with captured mice for example. Attributing cruelty to cats seems a clear case of anthropomorphism - the error of projecting distinctively human qualities onto other species.
Cats are not known to display compassion, but neither do they inflict pain and death on each other in order to gratify some impulse or ideal of their own. There are no feline inquisitors or suicide bombers. Pedants will say that this is because cats lack the intellectual equipment that is required to formulate an idea of truth or justice. I prefer to think that they simply decline to be enrolled in fanaticism, another peculiarly human trait.
Dogs seem to be capable of showing human-like emotions of shame, but though they are more domesticated they still remain different from us. And I think it's their differences from us, as much as their similarities, that makes them such good companions.
Ted HughesPoet Ted Hughes wanted to escape a purely human view
Whatever you feel about cats and dogs, it seems clear that the human animal needs contact with something other than itself. For religious people this need may be satisfied by God, even if the God with whom they commune seems too often all-too-human. For many landscape gives a sense of release from the human world, even if the land has been groomed and combed by humans for generations, as it has in England.
The contemplation of field, wood and water intermingling with wind and sky still has the power to liberate the spirit from an unhealthy obsession with human affairs. Poets such as Edward Thomas and Ted Hughes have turned to the natural world in an attempt to escape a purely human view of things. Since they remained human and used human language in the attempt, it's obvious that they couldn't altogether succeed. It's also obvious that searching for a way of looking at the world that's not simply human expresses a powerful human impulse.
The most intense example of this search I know is that recorded by John Baker in his book The Peregrine. First published in 1967 and recently reissued, the book is seemingly a piece of nature writing which slowly reveals itself as the testament of someone struggling to shed the point of view of a human observer.
Renewed humanity
Baker records his pursuit of two pairs of peregrines, which had arrived to hunt in the part of East Anglia where he lived. Alone he followed the birds for over 10 years. Concentrating the decade-long quest into a single year in order to recount it in the book, he writes of the peregrine: "Wherever he goes, this winter, I will follow him. I will share the fear, and the exaltation, and the boredom of the hunting life."
He tells us that he came late to the love of birds. "For years I saw them only as a tremor on the edge of vision. They know suffering and joy in simple states not possible for us. Their lives quicken and warm to a pulse our hearts can never reach. They race to oblivion."
Peregrine FalconThe Peregrine inspired John Baker
In time the human observer seemed to be transmuted into the inhuman hawk. "In a lair of shadow," Baker writes, "the peregrine was crouching, watching me... We live, in these days in the open, the same ecstatic fearful life. We shun men."
Note how Baker switches suddenly from describing the hawk watching him to describing how "we" flee from humans. Baker found a sensation of freedom in the feeling that he and the hawk were fused into one. Sharing in the "exaltation and serenity" of the birds' life he could imagine that he'd shed his human identity, at least for a time, and could view the world through hawks' eyes.
Of course he didn't take this to be literal truth. He knew he couldn't in the end be anything other than human. Yet he still found the pursuit of the peregrine deeply rewarding, for it opened up a temporary exit from the introspective human world.
John Baker's devotion to the peregrine hadn't enabled him to see things as birds see them. What it had done was to enable him to see the world through his own eyes, but in a different way. His descriptions of the landscape of East Anglia are exact and faithful to fact. But they reveal that long-familiar countryside in a light in which it looks as strange and exotically beautiful as anything in Africa or the Himalayas. The pursuit of a bird had revitalised his human perceptions.
What birds and animals offer us is not confirmation of our sense of having an exalted place in some sort of cosmic hierarchy, it's admission into a larger scheme of things, where our minds are no longer turned in on themselves. Unless it has contact with something other than itself, the human animal soon becomes stale and mad. By giving us the freedom to see the world afresh, birds and animals renew our humanity.