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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Postura diplomatica: o contrarianista - Paulo Roberto de Almeida

Em novembro de 2005, um médico de BH me contatou; formulou uma pergunta difícil de responder, que vai reproduzida abaixo.
A questão é atemporal, e como minha resposta nunca tinha sido divulgada, permito-me fazê-lo agora, como uma pequena fotografia quanto a minhas atitudes em relação ao trabalho diplomático. 



Postura Diplomática

Paulo Roberto de Almeida
Comentário a questão colocada por
um cardiologista de BH-MG
8 de novembro de 2005
  
Questão: “Qual a situação mais difícil que você já passou na diplomacia e como lidou com ela? No momento de suas reflexões, quais recursos mentais (memória, discernimento, agressividade, paciência, estudo, etc.) você precisou utilizar?

Resposta PRA:
Em diplomacia, existem vários momentos delicados quando se está negociando em nome do País. Uma situação complicada pode se apresentar numa destas duas hipóteses: ou não se dispõe de instruções suficientes para sustentar os interesses nacionais, ou as instruções dadas são inadequadas, na situação concreta da barganha negociadora. Nesse caso, o diplomata precisa agir segundo a sua melhor percepção de quais seriam os interesses nacionais, com base num estudo acurado da situção concreta e dos interesses em jogo.
Normalmente, o negociador que está na “frente de combate”, em oposição ao “burocrata” da capital, pode acabar tendo uma visão ampla dos processos em jogo e dos diferentes aspectos do interesse nacional, segundo uma percepção de mais longo prazo. Sua visão daquele problema – eventualmente fundamentada num estudo detido da questão e colocada em perspectiva comparada com as experiências e posições de outros atores – pode eventualmente se contrapor às instruções recebidas da capital, que podem estar baseadas numa visão meramente teórica ou burocrática do processo em causa.
Nesse momento, o diplomata em causa pode ficar numa situação muito difícil, pois que dominando o tema, e conhecendo o jogo de interesses dos diversos atores participantes (países ou grupos de paises), ele pode ter um melhor julgamento de qual seria a direção mais indicada a ser seguida, do ponto de vista do interesse nacional. Mas, aqui se coloca o dilema: as instruções recebidas vão num sentido contrário ou bastante diferente daquilo que o diplomata encarregado do tema na frente negociadora percebe como sendo a melhor postura a ser adotada. Ele quer acreditar ou sabe concretamente que uma posição diferente seria melhor indicada para defender o interesse nacional (este é um conceito e uma situação sempre difusos e muito difíceis de serem definidos na prática). Em todo caso, existe aqui um problema real de consciência e de postura, já que o diplomata não poderia, teórica e praticamente, opor-se às instruções recebidas da capital, mas sabe, concretamente, que nem sempre a burocracia institucional funciona da melhor forma possivel, pois que ninguém é onisciente.
Pessoalmente, já passei por esse tipo de situação, envolvendo uma negociação internacional de um tratado sobre circuitos integrados no âmbito da OMPI. Tendo me ocupado do tema durante meses e meses, eu literalmente dominava o assunto, técnica e diplomaticamente, e as instruções formuladas em Brasília, de nítido corte tradicional, eram claramente inadequadas. Os argumentos que podem ser mobilizados em favor de suas teses, por mais racionais ou “probatórios” que sejam (com base numa análise histórica, nos dados da economia, numa visão de longo prazo), nem sempre são convincentes ou suficientes para “dobrar” o burocrata na outra ponta do processo ou até fazer com que a instituição como um todo se mova em outra direção. Esse tipo de situação pode ser terrível, pois aparentemente (ou concretamente) o diplomata em causa pode estar se colocando contra as instruções da sua instituição.
Eu não tive medo de fazê-lo, naquele momento preciso, assim como em outras circunstâncias posteriores. De certa forma, esse tipo de atitude me prejudicou, pois fiquei com fama de rebelde, de dissidente, de arrogante, de pretencioso “sabe-tudo” e outros qualificativos mais, que nem são do meu conhecimento. Se insisto em certas teses é, contudo, com base num estudo profundo das problemáticas das quais me é dado ocupar. Sou um por excelência um estudioso compulsivo, e não costumo me dobrar a nenhum argumento de autoridade, e sim à autoridade do argumento. 
Numa casa “feudal” como é o Itamaraty, isso é quase um crime de lesa-majestade.
De certa forma, ainda pago até hoje minha “ousadia”.
Paulo Roberto de Almeida
terça-feira, 8 de novembro de 2005

Alca: um comentário, logo apos a implosao encomendada

Na imediata sequência da reunião de cúpula de Mar del Plata, o presidente Lula deu uma entrevista, na qual confirmava sua postura em relação ao projeto, que ele ajudou a implodir. Li a entrevista e, reservadamente, registrei minha opinião sobre os argumentos do então presidente.
Nunca antes (com mil desculpas pelo bordão) havia revelado estas notas, que contestavam diretamente o presidente, em teoria meu chefe (mas não meu patrão, jamais meu mentor, nunca um guia).
Vão aqui reveladas pela primeira vez. (Devo ter um bocado de inéditos por aí, a menos que CIA já tenha tomado conhecimento.)
Transcrevo primeiro a matéria de referência, e depois meus comentários sobre os "argumentos" da implosão.
Paulo Roberto de Almeida 

Lula afirma que tema Alca é inoportuno no momento
Denise Chrispim Marin
Agencia Estado, 5 Novembro 2005

Mar del Plata - O presidente Lula cravou claramente a posição do seu governo em relação à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) ao afirmar que a discussão desse projeto de integração "não é oportuna" neste momento e poderá "atrapalhar" o andamento de negociações mais relevantes para o Brasil - as da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). Lula defendeu que os países sul-americanos devem negociar acordos de livre comércio com nações mais desenvolvidas (leia-se, os Estados Unidos) somente depois de fortalecerem e estabilizarem suas economias.
Conforme argumentou, as economias sul-americanas "estão crescendo", os "empregos estão aparecendo", sem as mesmas as ilusões da década de 70, quando ocorria a "entrada fácil de dinheiro de fora", e dos anos 80, quando houve o "desmonte dos Estados nacionais e as privatizações". Para Lula, atualmente há consciência na região de que o crescimento econômico depende "da capacidade de desenvolvimento, da inteligência dos governantes e do povo, da política industrial, da política exterior".
"Temos a chance de quebrar os subsídios (agrícolas), de fazer com que os países (desenvolvidos) se envolvam de forma muito forte em encontrar uma solução para o comércio, sobretudo para ajudar os países pequenos. Tentar colocar a Alca nesse meio-termo é atrapalhar a OMC, que nós achamos que é um fórum mais adequado", afirmou Lula. "Na hora que a gente estiver forte, economicamente estável, vamos poder sentar com os países mais desenvolvidos e fazer acordos que sejam saudáveis para todo mundo."
Lula chegou a defender que as discussões sobre o comércio sejam baseadas em considerações práticas, e não "ideológicas". Insistiu ainda que, nos acordos que o Mercosul firmou e negocia com outras economias em desenvolvimento, as assimetrias e sensibilidades dos "menos avançados" são sempre levadas em conta. O mesmo princípio, em seu ponto de vista, deveria reger as negociações hemisféricas.
Lula ainda insistiu que os três temas das discussões em Mar del Plata eram "emprego, emprego e emprego" e que a Alca poderia ser apenas discutida como assunto de menor importância. "Nós achamos que essa discussão de livre comércio tem de ser feita na OMC. Qualquer coisa que nós fizermos antes da OMC (da conferência de Hong Kong), nós estaremos atropelando os fatos e criando, quem sabe, um empecilho para a própria reunião da OMC", argumentou.
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A Alca Inoportuna

Paulo Roberto de Almeida
(Reservado; não citar)

     Aproveito matéria despachada pela jornalista Denise Chrispim Marin, ao término da IV Cúpula das Américas (Mar del Plata, 4 e 5 de novembro de 2005), publicada na página eletrônica do jornal O Estado de São Paulo nessa mesma data (ver link: http://www.estadao.com.br/nacional/noticias/2005/nov/05/40.htm), para formular alguns comentários às questões suscitadas nessa matéria (cujo teor vai reproduzido na íntegra, para controle e referência direta).

1) Oportunidade da Alca:
            Matéria: “O presidente Lula cravou claramente a posição do seu governo em relação à Área de Livre Comércio das Américas (Alca) ao afirmar que a discussão desse projeto de integração "não é oportuna" neste momento e poderá "atrapalhar" o andamento de negociações mais relevantes para o Brasil - as da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC).
            PRA: Negociações comerciais para fins de liberalização de acesso a mercados, de redução de entraves indevidos e de regulação competitiva das normas que presidem a esses intercâmbios são sempre oportunas, não dependendo de um timing preciso, uma vez que a possibilidade antecipada de serem barganhadas condições de acesso recíproco a novos mercados sempre contribuirá para o aumento dos fluxos de bens e serviços entre as economias, como ensina a experiência histórica. As empresas sabem disso e procuram estimular essas negociações, quaisquer que sejam os foros negociadores.
Obviamente, existem questões ditas sistêmicas ou “estruturais”, que não podem ser reguladas em âmbito geograficamente restrito, isto é, em escala unicamente regional, dependendo justamente de um foro multilateral como o da OMC, para encontrar um terreno comum de entendimento. É o caso, por exemplo, dos subsídios agrícolas (medidas de apoio interno ou subvenções às exportações), como também proteção à propriedade intelectual ou medidas de defesa comercial (antidumping ou salvaguardas). Mas nada impede que questões como tarifas e acesso a mercados de forma geral sejam discutidas nesses foros restritos, simultaneamente, paralelamente, sucessivamente ou até antecipadamente a essas negociações multilaterais.
Zonas de livre comércio em geral, como é o caso da Alca, não são condicionadas a uma harmonização plena das condições de concorrência, podendo ser implementadas em seus aspectos estritamente comerciais previamente a qualquer norma reguladora das referidas condições. No que se refere a Alca em particular, sua concepção e oferecimento em escala hemisférica precederam inclusive à entrada em vigor dos acordos da Rodada Uruguai, os estudos preliminares foram conduzidos na fase inaugural da OMC (segunda metade dos anos 1990), e o lançamento efetivo das negociações ocorreu (1999) antes mesmo da terceira reunião ministerial da OMC (Seattle, novembro de 1999) e bem antes do lançamento da atual Rodada de Doha (quarta reunião ministerial, novembro de 2001).
Nunca se disse que essas negociações da Alca estivessem atrapalhando quaisquer outras negociações regionais (Mercosul-CAN, Mercosul-UE) ou multilaterais, mesmo se determinadas questões – como as referidas acima – requeressem encaminhamento uniforme num foro mais amplo, como o da Rodada Doha, para seu equacionamento nas melhores condições possíveis. A Alca deveria ser considerada não apenas oportuna, mas complementar às negociações da OMC, uma vez que poderia resultar em acesso mais amplo aos mercados hemisféricos recíprocos, do que o eventualmente resultante de um processo mais amplo e, portanto, mais difícil, como o da Rodada Doha. Ela só poderia “atrapalhar” as negociações da OMC se os acertos hemisféricos fossem feitos em oposição e em detrimento das regras multilaterais, o que não parece ser o caso e nem seria possível ou aceitável para a maior parte dos participantes.


2) Condições prévias para a negociação de acordos comerciais
            Matéria: “Lula defendeu que os países sul-americanos devem negociar acordos de livre comércio com nações mais desenvolvidas (leia-se, os Estados Unidos) somente depois de fortalecerem e estabilizarem suas economias.
            PRA: Fortalecimento e estabilização são dois conceitos relativos, que implicam uma avaliação subjetiva das dinâmicas econômicas nacionais, uma vez que qualquer economia pode estar se fortalecendo ou se estabilizando o tempo todo, ou ao contrário, criando rigidezes e pontos de debilidade que tornariam sempre adiáveis quaisquer compromissos a serem negociados no plano internacional.
            Acordos de livre comércio, em geral, podem envolver economias muito diversificadas, em diferentes estágios de desenvolvimento e dotadas de graus diversos de estabilização macroeconômica. Os países mais “frágeis” da Europa, por exemplo, como são Portugal e Espanha, não estavam em situação brilhante ao ingressarem na então CEE em 1986, como provavelmente a Irlanda, em 1972. Sua eventual condição “frágil” não foi um impedimento absoluto à negociação e implementação da adesão.
            Se as nações hemisféricas devem fortalecer suas economias antes de negociar com os EUA, esse processo vai provavelmente requerer algumas dezenas de anos antes de ser complementado, o que poderia remeter a Alca para algum momento depois de 2050 ou mesmo mais além. Por outro lado, os EUA também precisam fortalecer sua economia, hoje enfrentando enormes déficits comerciais e orçamentários, que alcançam proporções inéditas do PIB desse país.


3) Assimetrias e ideologia
            Matéria: “Lula chegou a defender que as discussões sobre o comércio sejam baseadas em considerações práticas, e não "ideológicas". Insistiu ainda que, nos acordos que o Mercosul firmou e negocia com outras economias em desenvolvimento, as assimetrias e sensibilidades dos "menos avançados" são sempre levadas em conta. O mesmo princípio, em seu ponto de vista, deveria reger as negociações hemisféricas.
            PRA: Exatamente. A ideologia é o principal obstáculo a negociações comerciais serenas e focadas exclusivamente nos interesses comerciais dos países participantes. A noção de assimetrias impeditivas de comércio, por exemplo, é uma das principais ideologias que obstaculizam negociações de liberalização comercial. Todo e qualquer comércio, em qualquer época histórica e lugar, é sempre baseado em algum tipo de “assimetria”, do contrário ele simplesmente não existiria. Essas “assimetrias” confrontam diferentes dotações naturais de fatores produtivos, alocações diferenciadas de capitais, recursos desiguais de marketing, tamanhos e características diferentes e desiguais dos mercados consumidores, costumes e hábitos nacionais que precisam ser adaptados pelos ofertantes em mercados estrangeiros, enfim, um conjunto variado de condições naturais, estruturais e adquiridas que sempre integram aquilo que os economistas chamam de requisitos “ricardianos”, ou vantagens comparativas relativas (não absolutas, portanto).
Pretender eliminar “assimetrias” entre economias diferentes seria retirar algumas das vantagens existentes para o deslocamento de fatores produtivos – investimentos externos diretos procurando locais de produção com abundância de matérias primas ou mão-de-obra barata, por exemplo –, o que impediria, ipso facto, a exploração das vantagens comparativas pelos empresários. Como argumentado acima, a eliminação das “assimetrias” entre os EUA – uma economia de quase 13 trilhões de dólares – e as demais economias hemisféricas exigiria um período histórico superior, provavelmente, a duas gerações, para não dizer mais. Os negociadores da Alca estariam presumivelmente aposentados ou mortos quando da conclusão das negociações.

4) Empregos, livre-comércio e Alca na OMC
            Matéria: “Lula ainda insistiu que os três temas das discussões em Mar del Plata eram "emprego, emprego e emprego" e que a Alca poderia ser apenas discutida como assunto de menor importância. "Nós achamos que essa discussão de livre comércio tem de ser feita na OMC. Qualquer coisa que nós fizermos antes da OMC (da conferência de Hong Kong), nós estaremos atropelando os fatos e criando, quem sabe, um empecilho para a própria reunião da OMC", argumentou.
            PRA: Emprego, junto com educação e outros temas sociais, faz parte da agenda das cúpulas hemisféricas, mas as negociações comerciais são um de seus temas mais importantes. Não se compreende bem, em contrapartida, o que a OMC teria a ver com a Alca, uma vez que acordos regionais podem ser feitos paralelamente às negociações multilaterais, desde que respeitem os princípios básicos do sistema multilateral de comércio. Os esquemas sub-regionais têm contribuído, paradoxalmente, para o avanço das negociações multilaterais, uma vez que antecipam concessões que depois serão ampliadas ao conjunto dos parceiros do sistema multilateral.
            A criação e destruição de empregos podem se dar de diversas maneiras, tanto por razões externas, como por fatores internos. Geralmente, a criação de empregos é facilitada por um ambiente macroeconômico favorável aos investimentos e à inovação, com estabilidade de regras, uma microeconomia competitiva, boa qualidade da mão-de-obra e abertura ao comércio exterior e aos investimentos externos. Empregos também podem ser destruídos pela inversão relativa de qualquer dos fatores acima apontados e também pela competição agressiva de parceiros externos mais modernos e de alto desempenho.
A opção pelo protecionismo é geralmente a pior receita para a preservação dos empregos existentes, razão pela qual a realização de uma Alca (de qualquer tipo) pode representar uma ameaça setorial a determinados empregos, mas também deve criar oportunidades novas de agregação de valor em diversas linhas produtivas (as de maior vantagem relativa, precisamente, entre as quais se situam as indústrias labour-intensive que podem usar desse fator relativamente abundante e, portanto mais barato na América Latina (comparativamente ao fator escasso, que seria o capital). Desse ponto de vista, não teríamos o que temer da Alca (e inversamente é isso que temem os sindicatos dos EUA).
De modo geral, a experiência histórica ensina que a liberalização comercial cria mais e melhores empregos do que os destrói, em todos os casos examinados até aqui, e que os empregos assim criados, justamente por estarem vinculados ao comércio exterior, possuem uma maior agregação de valor do que aqueles ligados ao mercado interno. Uma boa recomendação para uma reunião multilateral como a cúpula das Américas seria, portanto, a de que o livre-comércio contribuiria favoravelmente para a criação de mais empregos na região, mais bem remunerados, em todo caso, do que aqueles existentes tradicionalmente.
Uma última observação caberia, nesse sentido, a todos os protestos deslanchados pela realização da IV Cúpula, em Mar del Plata: a consecução dos objetivos pleiteados pelos manifestantes seria, simplesmente, a não-Alca, ou seja, tudo isso que já está aí. Desse ponto de vista, os manifestantes são essencialmente conservadores, amantes do status quo ou mesmo reacionários, pois se opõem a que novos desafios venham obrigar os países da região a continuar na via das reformas e da melhoria dos padrões de vida.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5 de novembro de 2005


domingo, 1 de julho de 2012

Alca: uma entrevista, antes da implosao - PRA, 2005

A Alca, para os que ainda se lembram, foi um projeto americano de área de livre comércio hemisférica, que foi bombardeada de todos os lados, inclusive por aqueles que, contraditoriamente, iriam se beneficiar dela (mas não se pode impedir as pessoas de serem estúpidas, não é mesmo).
A entrevista abaixo, concedida a um jornalista de uma grande agência de comunicações, foi dada antes que Argentina, Brasil e Venezuela se concertassem para implodir a Alca, o que ocorreu, pouco depois, em novembro de 2005, na cúpula das Américas de Mar del Plata.
Eu nunca morri de amores pela Alca, mas sempre pensei que a "não-Alca" era o que já tinhamos, ou seja, aquele mundinho latino-americano feito de promessas e ilusões, de muita retórica integracionista e poucos avanços reais na liberalização comercial e na abertura econômica.
Apesar de crítico, não me considerava um inimigo da Alca: seria um grande desafio para o Brasil (e os demais países), mas que traria capitais e investimentos diretos americanos, oportunidades de emprego e renda aqui mesmo, e acesso consolidado no maior mercado consumidor do mundo, os EUA. Claro que os EUA não iriam abrir tudo, e havia uma infeliz coincidência entre seu protecionismo setorial mais renitente -- área agrícola e setores industriais labor-intensive -- e os produtos brasileiros de maior competitividade. Ou seja, não iríamos ganhar tudo, e teríamos muitos desafios pela frente, o que sempre é bom, para se modernizar e mudar essa mentalidade introvertida que sempre tivemos.
Os inimigos da Alca eram muitos, e organizados: sindicalistas de todos os lados -- eles adoram que tudo permaneça como está -- e movimentos sociais, irracionalmente contra o livre comércio, que sempre traz novas oportunidades de ganhos.
Enfim, parece que ninguém chorou uma lágrima pela Alca moribunda, mas muitos soltaram rojões de contentamento e confessaram, alegremente, que tinham, sim, implodido a Alca, atribuindo ao feito ares de missão patriótica e salvadora da pátria. 
Não vou dizer o que penso deles, inclusive porque já escrevi muito a respeito. Quem colocar o conceito "Alca" em meu site, vai encontrar muita coisa, e aí explico direitinho o que penso desse assunto agora morto. Só fico pensando como podem ser tão ingênuos, e tão desinformados tantos jovens que se deixam levar na conversa equivocada dos anti-imperialistas de sempre.
Enfim, o mundo está cheio deles.
O que vai abaixo é apenas uma parte do que tenho, ou tinha, a dizer.
Talvez alguns argumentos ainda sirvam de reflexão.
Paulo Roberto de Almeida 


Questionário sobre a Alca
Roteiro de Perguntas

Respostas de Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)
Brasília, 27 de outubro de 2005 

1) Quais são os principais desafios da Alca?
            Concluir seu mandato negociador, que já está atrasado (deveria ter sido concluído neste começo de 2005, para ser aprovado até o final de 2005, para entrar em vigor ao início de 2006), e manter o mesmo nível de ambição do que aquele concertado em Miami, em dezembro de 2004, que era o de constituir uma vasta zona de livre-comércio do Alasca à Terra do Fogo, cobrindo o essencial dos intercâmbios comerciais, inclusive serviços, e a definição de regras sobre subsídios em certas áreas produtivas (agricultura, obviamente).


2) Como fica a questão das negociações entre federações tão diversas?
            Nem todos os países são federações, mas é evidente que as dimensões, o poderio econômico e a capacidade financeira diferem muito entre os 34 parceiros engajados no processo negociador. Mas isso nunca foi obstáculo fundamental à existência de uma zona de livre-comércio, pois a União Européia, por exemplo, que desde o início se definiu como mercado comum, mobilizou países com níveis muito dispares de desenvolvimento e dimensões igualmente contrastantes. O que é importante é a decisão de integração, pois mesmo com diferenças tão importantes de peso econômico, as vantagens comparativas de tipo Ricardiano sempre exercerão seu papel na definição de ganhos relativos para os países menores e menos poderosos (que ostentam algum tipo de vantagem em alguma área por vezes não percebida como tal).


3) O senhor escreveu em um dos seus textos os problemas de uma proposta essencialmente econômica que tentam ser implementadas de forma política. Fale um pouco sobre essa perspectiva.
            A Alca é uma proposta econômica, mas que requer a vontade política para ser implementada, pois parece evidente que a aproximação comercial não se faria de maneira puramente espontânea (como podem ocorrer com alguns projetos de integração entre países próximos na América do Sul.). Nesse sentido, a Alca tem muitos obstáculos pela frente, pois as resistências a aberturas setoriais serão ponderáveis em várias áreas, em todos os países, independentemente do tamanho. Não é seguro que exista vontade política suficiente para implementá-la no curto ou mesmo médio prazo, sobretudo no Brasil e nos próprios Estados Unidos.

4) Quais são as principais falhas dos oposicionistas da Alca?
            Manter uma oposição principista, puramente ideológica, ao projeto da Alca -- atacado de maneira impiedosa, já que ele vem sendo proposto por um “país hegemônico” na região, os EUA – sem qualquer análise racional, de tipo técnico (isto é, medindo custos e oportunidades econômicas) que permita sustentar essa recusa. Há uma percepção, mas que é só percepção, de que a Alca pode ser prejudicial aos países latino-americanos, mas não existe nenhuma comprovação de que tal postura tenha embasamento na realidade.
            O mesmo tipo de oposição já se tinha manifestado, dez anos atrás, em relação ao Nafta, com ameaças absolutas agitadas em desfavor do México, quando esses temores se revelavam, como de fato se revelaram, infundados. Na verdade, o Nafta trouxe benefícios ao México, mas também trouxe problemas, o que é absolutamente normal, não sendo certo que os segundos tenham superado os primeiros. O Nafta não era exatamente uma proposta de desenvolvimento (como apregoado por seus defensores), mas tampouco era uma promessa de desastre econômico e social, como alertado por seus opositores. Ele combina aspectos negativos e positivos, que devem ser avaliados de maneira ponderada.

5) O que pode ser destacado como a hegemonia norte-americana neste cenário?
            Uma evidente primazia econômica, tecnológica e financeira, que é real, mas que não necessariamente precisar ser traduzida como sinônimo de dominação absoluta dos demais países da região pela economia dominante, uma vez que as regras da nova relação serão definidas basicamente pelos mercados, que são por definição abertos e mutáveis, e não determinados de maneira estática por apenas um dos parceiros do jogo. As regras podem ser ditadas pelos Estados membros, mas seus principais atores são as empresas: estas costumam atuar de acordo com seus interesses econômicos individuais, não em função de determinações políticas dos governos. Estratégias de dominação política não funcionam nas novas condições da globalização econômica, que tem pouco a ver, em termos de resultados finais, com os velhos imperialismos politicamente determinados do século XIX e início do XX. Os Estados Unidos desejam, basicamente, conquistar mercados para suas empresas, o que é um objetivo legítimo do ponto de vista político, mas que nem por isso se opõe absolutamente aos interesses econômicos, políticos e sociais dos países pretensamente candidatos a serem “vítimas” dessa dominação. Trata-se de uma “dominação de mercados”, não de uma colonização política. Mercados, por definição, são abertos e atomizados, e não costumam obedecer a ordens políticas.
            Em outros termos, a “hegemonia americana” é aquela que visa lucro e prosperidade, em primeiro lugar para seus próprios cidadãos, é evidente, mas nesse jogo não está dito que todas as vantagens ficarão apenas para os supostos ganhadores de novos mercados. Os países mobilizados pelo empreendimento também passam a desfrutar de novas condições de competitividade internacional, ao serem mobilizados no quadro dos novos mercados ampliados.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de outubro de 2005