Mini-reflexões sobre as atuais turbulências latino-americanas
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: reflexão; finalidade: debate público]
As
manifestações ocorridas em diversos países latino-americanos, diferentes em
suas motivações e características, não possuem conexões entre si. Tampouco são
o resultado da ação do Foro de São Paulo, como pretendem jornalistas ou
militantes da extrema-direita. Elas são o reflexo de situações próprias a cada
um deles, e respondem a gatilhos diversos, alguns sistêmicos – ou seja, decorrem
de problemas estruturais, persistentes –, outros, puramente conjunturais, isto é,
motivados por iniciativas políticas nem sempre compatíveis com a racionalidade elementar
na governança que devem manter os presidentes. Vou estender-me sobre algumas dessas
manifestações, mas desde já adianto a minha conclusão, infelizmente pessimista,
ou realista, como corresponde a um observador transparente como acredito que
sou. Minha conclusão é esta:
Depois de
idas e vindas no caminho das reformas, da modernização das instituições, da racionalidade
na definição de políticas econômicas sólidas e dos ajustes necessários no
caminho da superação de sua inacreditável letargia na “normalização” de políticas
e práticas correntes, os países envolvidos nessas manifestações voltam ao “mainstream”
da política latino-americana “normal”, ou seja, o populismo nas políticas econômicas,
a demagogia nas atitudes dos governantes, o distributivismo nos mecanismos
sociais, a recusa das ferramentas baseadas no mérito e na competição, a recusa
da livre ação dos mercados, a introversão no protecionismo, nos subsídios a
determinados grupos – que não estranhamente são por vezes os mais privilegiados
– e o retraimento no enfrentamento das questões reais desses países. O Brasil
ainda não foi envolvido nesse turbilhão de manifestações, a despeito de exibir
certos traços sociais e políticos – entre eles a desigualdade social, a corrupção
política – que estiveram na origem dos distúrbios em países vizinhos; nada
impede, porém, que certos traços dos movimentos neles presentes, ou no próprio
Brasil, possam impulsionar ações futuras por parte de grupos políticos, ou até
da população como um todo, como foi o caso das manifestações aparentemente “espontâneas”
de 2013, que produziram efeitos até hoje visíveis no cenário político
brasileiro.
Vou abordar
alguns aspectos dessas manifestações, começando pela paranoia visível em
determinadas manifestações públicas do governo brasileiro, ou de sua militância
política, no sentido de ver nessas diferentes convulsões a ação organizada
dessa entidade mítica chamada “Foro de São Paulo”, o grande fantasma da extrema
direita no Brasil. Em minha opinião, não há qualquer relação entre essas
diversas manifestações com esse fantasma metafísico que se chama Foro de São
Paulo, ainda que ele exista e vou me pronunciar sobre ele neste mesmo espaço.
O FSP é uma construção
cubana, com a ajuda integral do PT no Brasil, e representa apenas uma espécie
de Cominform dos cubanos para a América Latina, ou seja, um mecanismo de
controle que os comunistas cubanos exercem sobre diversos, não todos, partidos
de esquerda na América Latina. Começou com grandes expectativas de consolidação
de governos de esquerda na região, num momento em que desaparecia o “mensalão”
soviético que sustentava o decrépito regime comunista castrista, mas nunca pode
assegurar plenamente esse papel. Os governos petistas – cujos dirigentes tinha
recebido muito apoio político e até ajuda financeira durante os anos anteriores
à conquista do poder – até que ajudaram o falido regime comunista da ilha, e os
chavistas o fizeram de forma muito mais ampla. Mas tudo isso não se manteve e
hoje os comunistas cubanos tentam apenas sobreviver.
As manifestações atuais
não são, contudo, em nada teleguiadas pelo FSP, com apenas essa particularidade
que muitos dos militantes de partidos que são membros do FSP podem estar nas
manifestações, mas esse é um nexo puramente casual e sem qualquer conexão com
algum papel diretivo do Foro na condução das manifestações. Elas surgiram num
contexto e cenário próprios a cada país, com dinâmicas totalmente distintas, e
a única coisa que as “une”, num sentido puramente formal, é o uso das redes
sociais para a mobilização de manifestantes. Se o FSP tivesse algum papel, essas
manifestações não seriam tão caóticas quanto claramente são, e, sim, exibiriam diretivas
claras, conectadas ao universo político da esquerda “oficial”, que é aquela
coordenada pelos comunistas cubanos. Estamos, em minha opinião, muito mais em
face de “anarquismo” espontâneo do que de leninismo, ou stalinismo.
Não existem, visualmente,
objetivos comuns a nenhuma dessas manifestações e os objetivos específicos a
cada uma delas estão muito mais conectados a realidades peculiares a cada
governo, ou cada ou país, do que a uma incitação imaginária impulsionada pelo
FSP. Apenas paranoicos, ou adeptos de teorias da conspiração, podem achar que o
FSP teria capacidade ou poder de determinar fenômenos, processos, eventos,
bobagens tão diversas quanto essas às quais assistimos nas últimas semanas, ou
meses, que listo a seguir:
1) aprofundamento da
crise econômica na Argentina, por incompetência, ou falta de coragem, do
governo dito “liberal” no combate à inflação, na correção dos desequilíbrios
internos e externos, o que redundou no declínio eleitoral da equipe governante
e seu recurso subsequente a medidas claramente populistas, demagógicas e
insustentáveis, em face de um peronismo multiforme sempre presente no cenário
político daquele país;
2) eliminação, de forma
abrupta e concentrada, da política de subsídios combustíveis no Equador, um país
petrolífero, eventualmente padecendo dos baixos preços dessa matéria-prima, na
sequência de medidas sociais insustentáveis adotadas pelo governo populista
anterior, quando da fase de valorização no mercado de petróleo; o presidente do
Equador pode ter cometido o mesmo erro do presidente francês Emmanuel Macron,
quando decidiu ser “politicamente correto” ao adotar novos impostos sobre
combustíveis fósseis, no mesmo momento em que o câmbio encarecia os preços
dessas mercadorias;
3) aumento de alguns
centavos nos transportes urbanos do Chile, que constituiu, aparentemente, o
gatilho das manifestações gigantescas ali ocorridas, um pouco como os “vinte
centavos” serviram de partida para as manifestações no Brasil em 2013, o que não
foi o caso, cabe afirmar claramente; num e noutro caso, a dimensão das manifestações
não se deve absolutamente a esse prosaico evento, e sim a forças políticas
diversas, diversamente motivadas, mas convergentes na sua insatisfação contra
os governantes; como geralmente ocorre, nesses casos, a evolução do movimento
se torna imprevisível, como nas ações de turbas irracionais, estimuladas por
diferentes movimentos políticos;
4) possível fraude na
apuração de votos na Bolívia, ainda que o presidente atual seja manifestamente popular
junto às grandes massas populares, e perfeitamente capaz de vencer eleições
limpas e corretamente aferidas; ocorre que o próprio presidente é um fraudador
da sua constituição e do plebiscito feito para lhe conceder mais um mandato,
recusado e, com a conivência de um tribunal eleitoral complacente, levado a um
ambiente de tensão inevitável; mas o caso boliviano é bastante distinto das
demais manifestações “populares” na região, pois ele se dá num contexto
eleitoral de divisão política do país, não de relativa convergência de forças “populares”
atuando diretamente por força de motivações “econômicas”;
5) caos político no Peru,
por razões absolutamente anódinas, de disputas partidárias latentes, sem o caráter
agudo das manifestações de rua existente nos demais países, em aguardo de novos
desenvolvimentos no cenário político-eleitoral do país andino;
6) “tremores” no México,
por causa de um cartel de narcotraficantes, prontamente “atendido” em sua
reivindicação principal – a libertação do chefe do cartel – pelo presidente de
esquerda, alegadamente para “poupar vidas” em determinada cidade, o que demonstra
a baixa capacidade do governo no enfrentamento do mais grave problema
enfrentado atualmente pelo país, o desafio da criminalidade organizada.
Não cabe ainda colocar na
mesma classificação de “manifestações de massas” a mobilização de manifestantes
ecologistas, de estudantes e diversos esquerdistas no Brasil, posicionados contra
o governo Bolsonaro e suas políticas, pois não se chegou ainda ao “ponto ótimo”
da crise, que seria a total incapacidade do governo encaminhar os grandes
problemas do Brasil atual: recessão, alto desemprego, desequilíbrios sociais,
esgotamento das finanças públicas, insegurança cidadão, degradação de políticas
setoriais no campo da justiça, das investigações contra criminosos – inclusive
nos círculos governamentais – e indefinição total em diversas áreas de governo,
inclusive em política externa. Tampouco se pode falar em outros “distúrbios” na
Venezuela, absolutamente esgotada por uma crise que se arrasta desde muitos
anos, e impasses persistentes no terreno político. Não há em comum, tampouco,
com as gigantescas manifestações de massa ocorridas na Catalunha, de origem
puramente local, de cunho nacionalista, ou em Hong Kong, onde o que está em
causa é a defesa dos valores e princípios democráticos numa “dependência” que
reluta em se integrar ao império autocrático comandado desde Beijing.
Em outras palavras, cada um
dos movimentos referidos acima é único e original, sem nada em comum, a não ser
o uso de ferramentas sociais para sua caótica organização e um descontentamento
geral pairando em todos eles. Para
concluir com o FSP, e exclui-lo de vez de qualquer papel nessas manifestações
de países latino-americanos, esse Cominform cubano é totalmente incapaz de
explorar essas manifestações em seu proveito próprio. Pode-se, assim, repetir
Shakespeare: much ado about nothing,
ou seja, muito barulho por nada...
Mas, o Brasil poderia,
teoricamente, ser igualmente tomado por manifestações desse tipo? Não sou
paranoico, nem adepto de teorias conspiratórias e não creio que eventos que se
desenvolvem em outros cenários políticos possam se desenvolver por aqui,
inclusive porque, cabe repetir, essas “ações” – que são descoordenadas,
caóticas, imprevisíveis, ingovernáveis – não possuem nada, absolutamente nada
em comum, a não ser o já referido mecanismo das redes sociais – também
amplamente explorado pelas direitas, se por acaso existem na região. Observou-se,
ademais, uma extrema violência nos casos do Equador e do Chile, o que não
parece perto de se reproduzir no Brasil. Multidões desorganizadas, jovens
marginais não possuem uma mesma identidade política ou objetivos uniformes,
apenas o desejo de se vingarem de uma suposta “injustiça social”; as razões
foram mais econômicas no caso do Equador, e mais políticas no caso do Chile.
Este último país possui uma história e uma esquerda bem mais organizada do que
em outros país – com exceção, talvez, do Uruguai –, mas os grandes partidos de
esquerda nesse país não estão por trás do movimento no Chile.
Volto ao meu diagnóstico
inicial: infelizmente, a América Latina parece voltar às suas correntes
tradicionais de populismo econômico e demagogia política, pois seus
governantes, todos eles, não encaram as reformas necessárias como missão de
estadistas, apenas como simples sobrevivência eleitoral. Vamos continuar sendo
o que sempre fomos...
Paulo Roberto de Almeida
Taubaté, 26/10/2019