Atendendo a demandas repetidas ao longo dos anos, em relação a um texto meu – elaborado totalmente de forma displicente, mas que se tornou um dos mais acessados, senão o mais acessado nas várias páginas em que foi postado –, resolvi revisar as notas que eu havia feito em meio a uma viagem pelos Estados Unidos e depois ao Brasil, e acabei reescrevendo o mesmo trabalho, revisando poucas passagens, apenas enfatizando aspectos que me parecem mais relevantes atualmente:
3744. “Dez regras sensatas para a diplomacia profissional”, Brasília, 28 agosto 2020, x p. Revisão atualizada do trabalho n. 800 (2001), sobre as dez regras modernas de diplomacia para publicação em novo livro sobre A Reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira.
Dez regras sensatas para a diplomacia profissional
Paulo Roberto de Almeida
[Objetivo: revisão do trabalho n. 800; finalidade: recomendações úteis aos diplomatas]
Apreciador, como sempre fui, de velhos manuscritos relativos à história diplomática do Brasil, deparei-me certa vez, nos catálogos da Library of Congress (infalível para esse tipo de trouvaille), com um antigo opúsculo, hoje démodé, mas provavelmente um muito útil manual para os nossos antecessores do boa diplomacia portuguesa do Oitocentos. Seu autor, um diplomata do regime monárquico português da segunda metade do século XIX, Frederico Francisco de la Figanière, o intitulou modestamente Quatro regras de diplomacia (Lisboa: Livraria Ferreira, 1881, 239 p.). Servindo então na embaixada do Brasil em Washington, que possuía naqueles tempos uma modesta mais muito atrativa biblioteca, utilizei-me do sistema de empréstimos entre bibliotecas, para solicitá-lo à Biblioteca do Congresso americano; passei bons momentos na companhia desse manual feito em intenção dos diplomatas portugueses mais jovens, e devorei-o com prazer, mais de um século depois de sua publicação original (e, ao que parece, única).
O prazer me foi dado não tanto pelo enunciado, aliás pouco extensivo, das ditas quatro regras de diplomacia – manifestamente desadaptadas à diplomacia do século XXI – mas mais exatamente pelos seus saborosos anexos históricos, uma “colecção de modelos das principaes especies de escriptos diplomaticos”, entre elas cartas da época do tratado de Utrecht (1713), um protesto contra a violação de imunidades no período da Revolução francesa (o pobre enviado português à corte de Luís XVI jogado à prisão, como um reles conspirador aristocrata), além de outros “escriptos” do Congresso de Viena ou relativos ao Brasil imperial. Segundo Figanière, “Dos diversos ramos do serviço público, o diplomático é sem dúvida aquele em que ao agente é concedida maior liberdade no modus operandi” (p. 9), o que, se era correto em sua época de comunicações lentas e precárias, há muito deixou de corresponder à realidade de uma diplomacia cada vez mais enquadrada de perto, não apenas pela Secretaria de Estado – com a qual estamos em contato 24 horas do dia, praticamente –, mas seguida com atenção pela imprensa, pelos grupos de interesse e, agora também, pelas hordas de “anti-globalizadores” e “anti-globalistas”, conectados às redes de comunicação social de uma aldeia decididamente global.
Enfim, quais eram essas regras que apareciam como um imperativo moral, quase que de ordem kantiana, ao colega lusitano de mais de um século atrás? Elas eram o objeto de quatro curtos capítulos de observações e de recomendações a eventuais candidatos à carreira diplomática:
I. Agradar;
II. Ser leal;
III. Antepor a palavra à pena;
IV. Ter concisão e ordem no redigir.
Como se vê, nada de muito esclarecedor ou propriamente entusiasmante, para a prática atual, a não ser talvez a última das regras, que vinha com uma advertência ainda válida para os tempos que correm: “O estilo prolixo e difuso é um defeito que cumpre evitar nas composições diplomáticas” (p. 70). Dois pontos para nosso antecessor português, pois que ele também achava que, de todos os deveres, o primeiro era o de bem servir a pátria, algo que não custa relembrar atualmente (e de modo permanente).
Deixo de lado as regras relativas a agradar e ser leal (ao seu Real Senhor, ora pois), mais adequadas talvez à “época das cabeleiras empoadas, dos peitilhos de renda, dos passeios em cadeirinhas, (ou) da pena de pato, aparada entre boas pitadas de rapé”, nas palavras de outro antecessor meu da belle époque, José Manuel Cardoso de Oliveira (in A moderna concepção da diplomacia e do comércio, 1925). A terceira regra, a rigor, também apresenta sua utilidade, uma vez que ainda costumamos tratar oralmente de algum assunto importante, antes de oficializá-lo mediante uma nota diplomática ou um aide-mémoire.
Em todo caso, inspirado no exemplo do ilustre representante da diplomacia lusa de tão saudosa memória – ela foi, com toda a sua habilidade no navegar entre os interesses sempre divergentes dos principais poderes europeus, a base de nossa diplomacia imperial, reconhecidamente excelente para os padrões da época, mesmo em escala comparativa com outros países mais avançados economicamente –, resolvi arriscar, igualmente, formular minhas próprias regras modernas de diplomacia, esperando que elas possam ser bem recebidas por meus colegas de profissão mais jovens. Aqui vão elas, portanto, mas em formato reduzido, geralmente mais pensadas em função do ambiente multilateral, que é o comum na vida atual da diplomacia, do que para situações de relações bilaterais.
1. Servir a pátria, mais do que aos governos, conhecer profundamente os interesses permanentes da nação e do povo aos quais serve; ter absolutamente claros quais são os grandes princípios de atuação do país a serviço do qual se encontra.
O diplomata é um agente do Estado e, ainda que ele deva obediência ao governo ao qual serve, deve ter absoluta consciência de que a nação tem interesses mais permanentes e mais fundamentais do que, por vezes, orientações momentâneas de uma determinada administração, que pode estar guiada — mesmo se em política externa isto seja mais raro — por considerações “partidárias”, ou “ideológicas”, de reduzido escopo nacional. Em resumo, não seja subserviente ao poder político, que, como tudo mais, é passageiro, mas procure inserir uma determinada ação particular no contexto mais geral dos interesses nacionais.
2. Ter domínio total de cada assunto, dedicar-se com afinco ao estudo dos assuntos de que esteja encarregado, aprofundar os temas em pesquisas paralelas.
Esta é uma regra absoluta, que deve ser assumida plenamente: numa Secretaria de Estado, ou num posto no exterior, o normal é a divisão do trabalho, o que implica não apenas que o diplomata terá controle sobre os temas que lhe forem atribuídos, mas que ele redigirá, igualmente, as instruções para posições negociais sobre as quais seu conhecimento é normalmente superior do que o próprio ministro de Estado ou o chefe do posto. Ele deve, portanto, mergulhar nos dossiês, verificar antigos maços sobre o assunto (a poeira dos arquivos é extremamente benéfica ao desempenho funcional), percorrer as estantes da biblioteca para livros históricos, estudos temáticos e gerais sobre a mesma questão, formular perguntas a quem já se ocupou do tema em conferências negociadoras anteriores, manter correspondência particular com seu contraparte no posto (ou na Secretaria de Estado), enfim, preparar-se como se fosse para ser sabatinado sobre o assunto no mesmo dia.
3. Adotar uma perspectiva histórica e estrutural de cada tema, situá-lo no contexto próprio, manter independência de julgamento em relação às idéias recebidas e às “verdades reveladas”.
Em diplomacia, raramente uma questão surge do nada, de maneira inopinada. Um tema negocial vem geralmente sendo “amadurecido” há algum tempo, antes de ser inserido formalmente na agenda bilateral ou multilateral. Estude, portanto, todos os antecedentes do assunto em pauta, coloque-o no contexto de sua emergência gradual e no das circunstâncias que presidiram à sua incorporação ao processo negocial, mas tente dar uma perspectiva nova ao tema em questão. Não hesite em contestar os fundamentos da antiga posição negociadora ou duvidar de velhos conceitos e julgamentos (as idées reçues), se você dispuser de novos elementos analíticos para tanto.
4. Empregar as armas da crítica ao considerar posições que devam ser adotadas por sua delegação; praticar um ceticismo sadio sobre prós e contras de determinadas posições; analisar as posições “adversárias”, procurando colocá-las igualmente no contexto de quem as defende.
Ao receber instruções, leia-as com o olho crítico de quem já se dedicou ao estudo da questão e procure colocá-las no contexto negocial efetivo, geralmente mais complexo e matizado do que a definição de posições in abstracto, feita em ambiente destacado do foro processual, sem interação com os demais participantes do jogo diplomático. Considerar que os argumentos da parte adversa também contribuem para avaliar os fundamentos de sua própria posição, ajudando a revisar conceitos e afinar seu próprio discurso. Uma saudável atitude cética — isto é, sem negativismos inconsequentes — ajuda na melhoria constante da posição negociadora de sua chancelaria.
5. Dar preferência à substância sobre a forma, ao conteúdo sobre a roupagem, aos interesses econômicos concretos sobre disposições jurídico-abstratas.
Os puristas do direito e os partidários da “razão jurídica” hão de me perdoar a deformação “economicista”, mas os tratados internacionais devem menos aos sacrossantos princípios do direito internacional, e bem mais a considerações econômicas concretas, por vezes de reduzido conteúdo “humanitário”, mas dotadas, ao contrário, de um impacto direto sobre os ganhos imediatos de quem as formula. Como regra geral, não importa quão tortuosa (e torturada) sua linguagem, um acordo internacional representa exatamente – por vezes de forma ambígua – aquilo que as partes lograram inserir em defesa de suas posições e interesses concretos. Portanto, não lamente o estilo “catedral gótica” de um acordo específico, mas assegure-se de que ele contém elementos que contemplem os interesses do país.
6. Afastar ideologias, considerações de natureza religiosa, ou interesses político-partidários das considerações relativas à política externa do país.
A política externa tende geralmente a elevar-se acima dos partidos políticos, bem como a rejeitar considerações ideológicas, pois ela trata dos interesses mais gerais, e permanentes do país. Mas sempre somos afetados por nossas próprias atitudes mentais e algumas “afinidades eletivas” que podem revelar-se numa opção preferencial por um determinado tipo de discurso, “mais engajado”, em lugar de outro, supostamente mais “neutro”. Poucos acreditam no “caráter de classe” da diplomacia, ou em vagos “valores espirituais” como fundamentos para a defesa dos interesses nacionais, mas, eventualmente, militantes “classistas” ou defensores de certas posturas “espirituais” gostariam de ajudar na “inflexão” política ou social de determinadas posições assumidas pelo país internacionalmente, sobretudo quando os temas da agenda envolvem definição de regras que afetam agentes econômicos e expectativas de ganhos relativos para determinados setores de atividade. Deve-se buscar o equilíbrio de posições e uma definição ampla, verdadeiramente nacional, do que seja interesse público relevante. O laicismo não é uma invenção do Iluminismo para se opor ou contrariar posturas ou virtudes “conservadoras”, mas uma simples exigência de bom senso nas condições dos modernos Estados burocráticos em condições de interdependência global, na qual etnias, religiões, culturas diversificadas interagem nos grandes circuitos, nos fluxos contínuos da globalização. A introversão nos “costumes do passado” ou algum entusiasmado impulso em direção do “sentido da História”, não serve exatamente aos objetivos precípuos do jogo diplomático, sendo apenas um recuo, por vezes reacionário, ou alguma tentação “progressista” de pouca fundamentação substantiva, que interfere num julgamento abalizado sobre o processo decisório em causa.
7. Antecipar ações e reações em um processo negociador, prever caminhos de conciliação e soluções de compromisso, nunca tentar derrotar completamente ou humilhar a parte adversa.
O soldado e o diplomata, como ensinava Raymond Aron, são os dois agentes principais da política externa de um Estado, embora atualmente outras forças sociais – como as ONGs e os homens de negócio –, disputem espaço nos mecanismos decisórios burocráticos, mas, à diferença do primeiro, o segundo não está interessado em ocupar território inimigo ou destruir sua capacidade de resistência. Ainda que, em determinadas situações negociais, o interesse relevante do país possa ditar alguma instrução do tipo “vá ao plenário com todas as suas armas (argumentativas) e não faça prisioneiros”, o confronto nunca é o melhor método para lograr vitória num processo negociador complexo. A situação ideal é aquela na qual você “convence” as outras partes negociadoras de que aquela solução favorecida por seu governo é a que melhor contempla os interesses de todos os participantes e na qual as partes saem efetivamente convencidas de que fizeram o melhor negócio, ou pelo menos deram a solução possível ao problema da agenda. Isso pode exigir, igualmente, que você consulte seu governo sobre os méritos eventuais dos argumentos dos demais parceiros no processo, como forma de se chegar a uma solução de consenso, que é o melhor resultado possível numa negociação (seja ela bilateral ou multilateral).
8. Ser eficiente na representação, ser conciso e preciso na informação, ser objetivo na negociação.
Considere-se um agente público que participa de um processo decisório relevante e convença-se de que suas ações terão um impacto decisivo para sua geração e até para a história do país: isto já é um bom começo para dar dignidade à função de representação que você exerce em nome de todos os seus concidadãos. Redija com clareza seus relatórios e seja preciso nas instruções, ainda que dando uma certa latitude ao agente negocial direto; não tente fazer literatura ao redigir um anódino memorando, ainda que um mot d’esprit aqui e ali sempre ajuda a diminuir a secura burocrática dos expedientes oficiais.
Via de regra, estes devem ter um resumo inicial sintetizando o problema e antecipando a solução proposta, um corpo analítico desenvolvendo a questão e expondo os fundamentos da posição que se pretende adotar, e uma finalização contendo os objetivos negociais ou processuais desejados. Na própria Secretaria de Estado, lembre-se que os gabinetes ou o próprio chefe de Estado, nem sempre têm tempo para ler longas exposições analíticas: seja conciso e objetivo, portanto, como forma de facilitar uma rápida decisão sobre o assunto. No foro negociador, não tente esconder seus objetivos sob uma linguagem empolada, mas seja claro, direto e preciso ao expor os dados do problema e ao propor uma solução de compromisso em benefício de todas as partes.
9. Valorize a carreira diplomática sem ser carreirista, seja membro da corporação sem ser corporativo, não torne absolutas as regras hierárquicas, que não podem obstaculizar a defesa de posições bem fundamentadas.
Geralmente se entra na carreira diplomática ostentando um certo temor reverencial pelos mais graduados, normalmente tidos como mais “sábios” e mais preparados do que o iniciante. Mas, se você se preparou adequada e intensamente para o exercício de uma profissão que corresponde a seus anseios intelectuais e responde a seu desejo de servir ao país mais do que aos pares, não se deixe intimidar pelas regras da hierarquia e da disciplina, mais próprias do quartel do que de uma chancelaria. Numa reunião de formulação de posições, exponha com firmeza suas opiniões, se elas refletem efetivamente um conhecimento fundamentado do problema em pauta, mesmo se uma “autoridade superior” ostenta uma opinião diversa da sua. Trabalhe com afinco e dedicação, mas não seja carreirista ou corporativista, pois o moderno serviço público não deve aproximar-se dos antigos estamentos de mandarins ou das guildas medievais, com reservas de “espaço burocrático” mais definidas em função de um sistema de “castas” do que do próprio interesse público. A competência no exercício das funções assignadas deve ser o critério essencial do desempenho no serviço público, não o ativismo em grupos restritos de interesse puramente umbilical.
10. Não faça da diplomacia o foco exclusivo de suas atividades intelectuais e profissionais, pratique alguma outra atividade enriquecedora do espírito ou do físico, não coloque a carreira absolutamente à frente de sua família e dos amigos.
O desempenho profissional é importante, mas ele não pode ocupar todo o espaço mental do servidor, à exclusão de outras atividades igualmente valorizadas socialmente ou individualmente, seja no esporte, seja no terreno da educação e da cultura ou da arte. Uma dedicação acadêmica é a que aparentemente mais se coaduna com a profissão diplomática, mas quiçá isso represente uma deformação pessoal do autor destas linhas. Em todo caso, dedique-se potencialmente a alguma ocupação paralela, ou volte sua mente para um hobby absorvente, de maneira a não ser apenas um “burocrata alienado”, voltado exclusivamente para as lides diplomáticas. Sim, e por mais importante que seja a carreira diplomática para você, não a coloque na frente da família ou de outras pessoas próximas. Muitos se “sentem” sinceramente diplomatas, outros apenas “estão” diplomatas, mas, como no caso de qualquer outra profissão, a diplomacia não pode ser o centro exclusivo de sua vida: os seres humanos, em especial as pessoas da família, são mais importantes do que qualquer profissão ou carreira.
Paulo Roberto de Almeida
[Chicago, 22 de julho; São Paulo-Miami-Washington, 800: 11-12 de agosto de 2001; Brasília, 3744: 28/08/2020]
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3744, 27 de agosto de 2020