As Quatro Liberdades e um
Projeto para o Brasil
Leitura de dois livros
recentes
Paulo Roberto de Almeida
Como sempre fazemos quando
temos tempo e estamos pela região, para compras ou a lazer, Carmen Lícia e eu costumamos
frequentar a biblioteca pública de West Hartford, pequena, para os padrões das
bibliotecas universitárias, mas enorme, para os padrões das pequenas cidades
americanas de interior. Na verdade, ela não é bem de interior, uma vez que está
adjacente à capital de Connecticut, Hartford, e é onde mora boa parte da
comunidade afluente que trabalha nesta região: belas casas, excelentes
restaurantes, supermercados e lojas superiores à média, e esta boa biblioteca,
que leva o nome do primeiro dicionarista da língua americana (sim, ele
dicionarizou vários coloquialismos do inglês da América) e provavelmente o
segundo da língua inglesa: Noah Webster, que é, aliás, o nome de um famoso
dicionário, tradicional, mas ainda hoje vibrante e atualizado, nos mais
diversos formatos.
Não se trata de uma
biblioteca de pesquisa ou de estudo, mas daquilo que se pode tranquilamente
chamar de biblioteca comunitária, embora muito bem guarnecida dos grandes
títulos da literatura americana e universal, e podendo servir também para
pesquisas escolares. Eu costumo frequentá-la sobretudo para emprestar os novos
livros que acabam de ser lançados, e que ainda custam mais de 30 dólares no
formato hard cover, antes que a
edição brochura os torne mais acessíveis a orçamentos controlados. Pois foi com
essa intenção que lá fomos no último domingo. Saí de lá com dois livros novos
(que só podem ser emprestados por 15 dias) e com um antigo, de meio século
atrás, mas que me interessava consultar: uma edição da Modern Library contendo
as duas grandes obras políticas de Maquiavel, O Príncipe e Os Discursos
(assim, não mais, ou seja, Tito Lívio reinterpretado pelo grande pensador
florentino).
Nada de original neste
último livro, a não ser a bela introdução a Maquiavel pelo professor Max Lerner
(datada de março de 1940 e de maio de 1950), com alguma bibliografia clássica
sobre o grande patriota italiano, inclusive a recomendação, que vou buscar, de
ler a introdução ao Príncipe por Lord Acton, feita originalmente para uma
edição italiana de 1891, depois incluída no volume editado por John N. Figgis e
Reginald V Laurence, The History of
Freedom and Other Essays (London: 1907). Para este eu tenho de recorrer à
biblioteca da Universidade de Yale, onde aliás tenho de ir para devolver vários
outros livros que retirei sobre Bretton Woods. Provavelmente na próxima
terça-feira, quando vou para uma palestra sobre a Rússia e Ocidente, por um
diplomata do Department of State encarregado do setor.
Mas volto aos dois livros
novos que retirei, ambos conectados ao meu período atual de pesquisas, a
primeira metade do século XX e as relações internacionais do Brasil na primeira
república e na era Vargas. Eles são, respectivamente, os seguintes:
Harvey J. Kaye:
The Fight for the Four Freedoms: What
Made FDR and the Greatest Generation Truly Great (New York: Simon & Schuster,
2014, 292 p.).
Neill Lochery:
Brazil: The Fortunes of War, World War II
and the Making of Modern Brazil (New York: Basic Books, 2014, 314 p.)
O primeiro livro é um
exemplo evidente do chamado pensamento liberal americano, ou seja, um autor
socialdemocrata, praticamente de esquerda, em todo caso, um rooseveltiano
convencido e um new dealer engajado,
se o New Deal ainda estivesse em vigor (mas ele acredita que Obama está nessa
linha, embora não tenha feito tanto quanto deveria, contra as corporações e a
oposição reacionária). Quando eu li, logo na Introdução, que os Estados Unidos
estiveram submetidos, nos trinta anos anteriores, às corporate priorities e ao private
greed, eu pensei que o autor estivesse brincando, mas é isso mesmo: ele
acha que a grande geração de Roosevelt teve de enfrentar uma powerful conservative, reactionaire
opposition, para salvar o país da economic
ruin and political oblivion. Deve ter sido isso mesmo, mas eu não estava
acostumado com uma história em preto e branco desde algum tempo.
Em todo caso, se trata de
uma boa história, feita a partir dos papeis deixados por FDR em seus arquivos
de Hyde Park, sobre a construção dos Estados Unidos como hoje eles se
apresentam ao mundo: não mais isolacionistas, não mais voltados para si mesmos,
mas engajados no mundo, e mais igualitários (ou pelo menos deveria ser assim) e
mais democráticos. O eixo central é dado obviamente pelas quatro liberdades que
Roosevelt moldou logo ao início da guerra europeia, e que ele proclamou em sua
mensagem ao Congresso de janeiro de 1941, logo após conquistar o seu terceiro
mandato e antes, portanto, que os Estados Unidos fossem atacados e entrassem,
finalmente, na guerra (da qual eles já vinham participando pelo apoio
irresoluto concedido ao Reino Unido, praticamente sozinho no enfrentamento da
máquina de guerra de Hitler).
Os quatro grandes
conceitos foram expostos com invulgar clareza no seu State of the Union, na tarde do dia 6 de janeiro de 1941, em face
de todo o Congresso reunido para ouvi-lo. Roosevelt, que já vinha procurando
superar as resistências isolacionistas do Congresso, para converter os EUA no
“Arsenal da Democracia”, insistiu na tecla de que seria ilusório tentar
esconder-se atrás de grandes muralhas defensivas, daí a necessidade de preparar
adequadamente a nação para qualquer eventualidade. Ele então proclamou a sua
visão do mundo, os grandes princípios em torno dos quais todos os americanos
estariam unidos, não apenas para si mesmos, mas para todo o mundo:
“In the future
days, which we seek to make secure, we look forward to a world founded upon
four essential freedoms. The first is freedom of speech and expression … The
second is freedom of every person to worship God in his own way … The third is
freedom from want … The fourth is freedom from fear…” E ele acrescentou logo em
seguida: “That is no vision of a distant millennium. It is a definite basis for
a kind of world attainable in our own time and generation.” (p. 75)
Esses princípios seriam
inscritos na Carta do Atlântico, que Roosevelt assinou com Winston Churchill,
em agosto seguinte, nas costas do Canadá, e foram consagrados depois na carta
das nações unidas, no ano seguinte; eles constituíram uma espécie de “New Deal
for the world”, como afirmou a historiadora Elizabeth Borgwardt p. 88). O livro
dela (citado em nota da p. 239), é este aqui: A New Deal for the World: America’s Vision for Human Rights
(Cambridge, MA: Harvard University Press, 2005).
O Brasil viria a assinar a
carta das nações unidas logo em seguida ao seu engajamento ao lado dos Estados
Unidos no esforço de guerra, no seguimento do ataque japonês a Pearl Harbor e
da declaração de guerra pela Alemanha, o que determinou o rompimento de
relações diplomáticas do Brasil com as potências do Eixo, uma decisão que leva
sobretudo a marca de Oswaldo Aranha. Vargas e o seu chanceler de 1938 até 1944
estão justamente no centro do segundo livro aqui registrado, pelo historiador
britânico Neill Lochery, professor de Mediterranean and Middle Eastern Studies
do College University of London, já autor de um livro sobre a neutralidade de
Portugal na Segunda Guerra Mundial, mais especificamente sobre o papel de
Lisboa, enquanto centro de intrigas, espionagem e negociações durante todo o
decorrer da guerra.
A Introdução do livro já
começa destacando o famoso documento-guia que Oswaldo Aranha preparou para as
conversas de Vargas com Roosevelt, no encontro que ambos tiveram no Rio Grande
do Norte, em janeiro de 1943, uma lista de objetivos de guerra que o Brasil
declarava aos EUA, mas que também podem ser vistos como uma espécie de
planejamento estratégico feito pelo grande chanceler para assegurar uma posição
de realce para o Brasil na ordem internacional que estaria sendo desenhada
pouco mais à frente para assegurar a paz e reconstruir o mundo. Seu caráter de
lista de demandas não esconde a visão grandiosa que Oswaldo Aranha mantinha
quanto ao papel do Brasil naquele mundo em efervescência. Vale a pena citá-las,
uma por uma, e verificar, hoje, onde estamos, ou como ficamos, em relação a
cada um dos pontos. O autor cita a partir do artigo de Frank D. McCann, um
conhecido historiador brasilianista do exército brasileiro e da aliança militar
dos anos de guerra: “Brazil and World War II: The Forgotten Ally. What Did You
Do in the War, Zé Carioca?”, Estudios
Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe 6, n. 2 (Tel Aviv
University, July-December 1995, 35-70; mas o link citado à p. 309 deve ser
substituído por este aqui: http://www1.tau.ac.il/eial/index.php?option=com_content&task=view&id=741&Itemid=283).
Antes de reproduzir a lista, vale retomar os argumentos iniciais de Aranha.
Oswaldo Aranha acreditava,
pragmaticamente, que a política tradicional do Brasil, de apoiar os Estados
Unidos no mundo, em troca do seu apoio na América do Sul, deveria ser mantida “até a vitória das armas
americanas na guerra e até a vitória e a consolidação dos ideais americanos na
paz.” Os Estados Unidos iriam liderar o mundo quando a paz fosse restaurada e
seria um grave erro se o Brasil não estivesse do seu lado. Ambas nações eram
“cósmicas e universais”, com características continentais e globais. Ele tinha
plena consciência de que o Brasil era uma “nação economicamente e militarmente
fraca”, mas o seu crescimento natural, ou as migrações do pós-guerra, lhe
dariam o capital e a população que o fariam tornar-se, “inevitavelmente um dos
grandes poderes políticos do mundo”. A sua lista combinava objetivos imediatos
e de mais longo prazo, como reproduzida no artigo de McCann e no livro de
Lochery (p. xv):
1)
a better position in
world politics;
2)
consolidation of its
superiority in South America;
3)
a more secure and
intimate cooperation with the United States;
4)
greater influence over
Portugal and its possessions;
5)
development of
maritime power;
6)
development of air
power;
7)
development of heavy
industries;
8)
creation of war
industries;
9)
creation of industries
-agricultural, extractive, and light mineral- complementary to those of the
United States and essential for world reconstruction;
10) expansion of Brazil's railways and highways for
economic and strategic purposes;
11) exploration for essential combustible fuels.
Observando-se a lista de Oswaldo Aranha, com
os olhos de 2014, o que poderia ser dito dos seus objetivos de guerra, do ponto
de vista do atingimento de cada um deles em tempos de paz e nos setenta anos
decorridos desde a sua redação? Registro aqui que os argumentos dos próximos
parágrafos são meus, e não constam do livro de Lochery.
Uma melhor
posição na política mundial? Um
objetivo certamente avançado depois da democratização e da estabilização
macroeconômica, esta última iniciada sob Fernando Henrique Cardoso no governo
Itamar Franco, e consolidada nos dois governos FHC, o que foi plenamente
aproveitado pelo governo Lula para desenvolver uma diplomacia ativa,
beneficiado ainda pelo enorme impulso dado pela demanda chinesa por produtos
brasileiros de exportação para acumular alguma riqueza e projetar influência na
região e no mundo. Não é seguro que essa posição tenha sido consolidada com a
visível retração registrada no período recente, mas também por iniciativas
pouco avisadas ou altamente controversas, ainda sob Lula e mantidas por sua
sucessora, com alianças dúbias com regimes pouco recomendáveis, e uma retração
formidável na defesa da democracia e dos direitos humanos nos planos regional e
mundial. Talvez se consiga, novamente, num futuro indefinido, uma “melhor
posição na política mundial”, mas isso vai depender, seriamente, de uma melhoria
na qualidade da política externa, hoje dominada por companheiros viciados numa
visão do mundo anacrônica e distorcida quanto aos reais interesses do Brasil.
Uma
consolidação da “superioridade” brasileira na América do Sul? Trata-se bem mais de uma ilusão do que de um
objetivo, mas ele deve ser visto numa outra perspectiva, que era a de Oswaldo
Aranha, em face de uma Argentina superior nos planos econômico e militar, e que
tinha, sim, uma vocação de afirmar sua influência no entorno imediato e nas relações
com as grandes potências, a Grã-Bretanha e os próprios Estados Unidos. A
Argentina era o “inimigo principal” em qualquer cálculo que os militares
brasileiros pudessem fazem no plano estratégico e no contexto tático, e os
maiores recursos de segurança e defesa, não necessariamente ofensivos, estavam
dispostos ao longo das fronteiras meridionais. Apenas por isso Aranha colocou
esse objetivo em segundo lugar, e não necessariamente para impor uma liderança
imperial do Brasil na região; a superioridade deveria ser vista aqui apenas
como uma agregação suficiente de forças para tornar o país “inatacável” por
qualquer vizinho, a começar pelo mais “íntimo inimigo”. Essa situação está agora
completamente superada, mas só os ingênuos e os amadores em diplomacia – entre
eles vários companheiros, mas também alguns homens de negócios – falam em
liderança brasileira na região; para o Itamaraty, esse tema é tabu, embora haja
a percepção de que a consolidação de um espaço econômico integrado, baseado em
abertura de mercados e intensa cooperação em projetos de integração física,
seriam suficientes, junto com a afirmação plena dos valores da democracia e dos
direitos humanos, para assegurar essa liderança, que seria natural, e não
imposta. Mas, parece que estamos recuando em todas essas frentes, para maior
tristeza dos diplomatas profissionais e dos liberais econômicos (que são
poucos, mas ainda existem em nosso país).
Uma
cooperação mais íntima e mais segura com os Estados Unidos? Difícil dizer em quais termos, pois impérios
universais não mantém relações de igual para igual nem mesmo com seus mais
“íntimos” aliados. O Brasil sempre manteve desconfiança em relação ao gigante
do norte, mesmo nos anos de aliança não escrita dos tempos do Barão, e naqueles
de aliança militar no imediato pós-guerra, o que só fez crescer nos anos
seguintes, com os desejos dos militares – e de vários diplomatas – de uma
rápida nuclearização do Brasil, em face dos esforços americanos de contenção da
proliferação nessa área (e não apenas como cálculo estratégico, e sim também em
função de uma visão do mundo menos belicoso, digamos assim). Essa cooperação
sempre foi difícil e não parece que tenha se tornado mais plausível no período
recente, muito pelo contrário (já que o antiamericanismo dos companheiros salta
aos olhos de qualquer neófito). Este não pode ser um objetivo em si, mas é uma
possibilidade, dentro de certas condições e circunstâncias, que provavelmente
vão exigir maior grau de capacitação brasileira para ser colocado novamente na
agenda bilateral; mas, paradoxalmente, parece que o Brasil só vai se capacitar
mais rapidamente por meio de uma “cooperação mais íntima e mais segura com os
Estados Unidos”, o que pode parecer bizarro a mais de um título.
O quarto objetivo, com respeito a Portugal e suas “possessões”, mudou de
caráter, mas essa influência é certamente maior hoje do que foi no passado
colonial, e tende a se tornar ainda mais relevante, inclusive em direção de
Portugal, embora o lento crescimento e a perda de competitividade dos últimos
anos tenham diminuído o ímpeto brasileiro na “reconquista” da antiga metrópole.
Os objetivos 5 a 11, são todos eles
instrumentais, alinhados numa época em que o Brasil era um país economicamente
atrasado, em todas as áreas, e se esperava que os Estados Unidos financiassem,
e fornecessem a tecnologia, para nossa capacitação em todas elas. Aos trancos e
barrancos fomos avançando nas décadas seguintes, tanto com os fluxos de
investimentos estrangeiros e de financiamento externo, quanto com a cooperação bilateral
nas áreas científicas e tecnológicas, um processo que continua sem cessar,
tanto na vertente pública, quanto nas diversas interfaces privadas. Em alguns
ramos industriais, e certamente em quase todo o setor agrícola, o Brasil se
tornou um país avançado, até mesmo um “killer”, em matéria de competitividade
agrícola, e isso tem tanto a ver com a cooperação externa (basicamente
americana), quanto com a construção de uma base própria de capital humano e
científico. Não se pode dizer que tenhamos nos tornado uma formidável potência
militar, mas o que existe garante um mínimo de dissuasão, quando não de
projeção externa em dimensões limitadas. Para se ter mais nessa área, seria
preciso convencer a sociedade a aceitar mais gastos militares, ou com segurança,
de modo geral, o que não parece compatível com necessidades bem mais prementes
em várias áreas sociais. Aliás, o Brasil não é mais forte militarmente não
porque invista pouco nessa área, mas porque seus recursos humanos são
deficientes de maneira geral, na inovação tecnológica em especial. Trata-se de
um resultado de políticas erradas na área educacional, que não têm nada a ver
com debilidades próprias do establishment militar.
Bem, mas o livro de Neill Lochery, Brazil: The Fortunes of War, não trata dessas questões senão em sua
introdução e conclusões, pois o essencial do livro está dedicado ao
envolvimento do Brasil na guerra, o que é feito de maneira minuciosa e
competente. No conjunto, os dois livros constituem leitura muito agradável e,
nos dois casos, altamente instrutiva quanto aos dois temas foco de cada um Kaye
é bem mais ideológico, no seu rooseveltismo radical, do que Lochery, um inglês
equilibrado e bastante objetivo em suas considerações analíticas sobre o
Brasil. Seu livro me confirmou a impressão, que já tenho desde longos anos, de
que o Brasil perdeu uma enorme oportunidade ao não ter tido uma personalidade
como Oswaldo Aranha na liderança efetiva do país, em algumas das chances em que
a história poderia ter aberto uma janela para ele: em 1934, em 1937, em 1945,
em 1950, ou mesmo em 1955; em todas elas ele poderia, hipoteticamente, estar à
frente de uma coalizão liberal para fazer do Brasil um país muito diferente do
que foi, sob a condução de políticos populistas, de líderes militares muito próximos
do corporatismo de corte fascista, ou de incompetentes manifestos, como podem
ter sido Dutra, Goulart ou mesmo alguns outros em fases subsequentes. Oswaldo
Aranha foi muito obsequioso com seu chefe e amigo, mas poderia ter continuado a
ser a “estrela da revolução”, que foi na coalizão liberal de 1930, e que depois
se perdeu no labirinto do varguismo maquiavélico. Foi uma pena para o país, uma
pena para todos nós.
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 7 de novembro de 2014
PS.: Vou programar uma nova visita ao museu Norman Rockwell onde estão expostas suas quatro grandes telas sobre as quatro liberdades, tal como feitas para apoiar Roosevelt em seu esforço didático de convencimento da nação americana a empreender uma "good war", pelas boas causas.