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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

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terça-feira, 12 de setembro de 2023

Lula apoia tiranos por gosto, perversão ou ignorância? Deve ser antiamericanismo barato - artigo de Joel Pinheiro (FSP)

Por que Lula insiste em bajular tiranetes? Cria-se um ruído desnecessário com quem vê democracia e direitos humanos como valores centrais 

Joel Pinheiro
Folha de S. Paulo, 12/09/2023

Foi a resposta seca —alguns interpretaram como incrédula— da jornalista ao ouvir o presidente Lula, na Índia, afirmar sem meias palavras que descumpriria a decisão do Tribunal Penal Internacional que pede a prisão de Vladimir Putin. O que é claro é que a aplicação dessa decisão, caso Putin viesse ao Brasil, não seria nada trivial. Um chefe de Estado —e ainda de uma potência militar— chega para uma reunião e sai algemado? Não é o tipo de coisa que se faz assim com leveza. Mas é também, como o próprio Lula foi obrigado a reconhecer no dia seguinte, uma decisão que cabe à Justiça. Putin, por sua vez, sabe dos riscos que corre se começar a viajar por aí —e um mandado de prisão expedido por um tribunal é o menor deles. Não deve sair de casa tão facilmente. 

Ou seja, muito barulho por nada. A questão é mais profunda: o que ganhamos com esse tipo de manifestação de Lula? Essa bagunça, esse vai e volta, nos beneficia de que maneira? Criamos um clima mais amistoso com Putin e grupos que o apoiam. Ao mesmo tempo, criamos mais um ruído desnecessário, aí sim, com todo mundo que vê na democracia e nos direitos humanos como valores centrais. E talvez essa seja a pergunta que caiba fazer agora: na sua busca pela política externa "não alinhada", Lula está disposto a se desalinhar dos direitos humanos? "Temos de ter cuidado para que o discurso de direitos humanos, por mais válido que seja, transforme-se em uma arma política para aqueles que se incomodam com o fortalecimento e o crescimento econômico do mundo em desenvolvimento." Essa fala não veio do ministro da Economia ou da Agricultura, preocupados em fazer negócios. Veio do nosso ministro da Cidadania e Direitos Humanos, em entrevista para o UOL. 

 A condenação de Putin, cabe ressaltar, não é mera perseguição internacional de capangas dos EUA (que aliás não aceita o TPI); ela decorre do fato de que o governo russo cometeu crime de guerra ao deportar crianças ucranianas para a Rússia em territórios ocupados. Com sua vitória em 2022, Lula foi aclamado, celebrado pelas nações desenvolvidas do mundo democrático, que receberam sua eleição como uma lufada de esperança. Mas parece ansiar mesmo é pela amizade de qualquer tiranete subdesenvolvido que reproduza discurso da Guerra Fria. Não aprendemos nada com o vexame que foi nossa relação amistosa com o Irã em 2009 e 10? Defendemos o programa nuclear iraniano, recebemos o então presidente Ahmadinejad de braços abertos, passamos vergonha ao relativizar sua negação do Holocausto e a homofobia de seu governo, e não ganhamos nada. 

 A democracia liberal está longe de ser perfeita. Mas é também, de longe, a organização social e política que mais nos aproxima de uma sociedade mais justa, estável, solidária e próspera, especialmente os mais vulneráveis. E está sob ataque: tanto interno, com movimentos que buscam corroer suas bases, quanto externo, na forma de regimes autocráticos que se afirmam com cada vez mais desenvoltura —a guerra expansionista da Rússia é o maior exemplo disso. Buscar comércio e diplomacia com todos é um fim nobre. 

Distanciar-se dos EUA quando ele promove invasões e regimes brutais, idem. Mas tornar esse distanciamento um cacoete automático, que resvala para a defesa de ditadores toda vez que o presidente fala de improviso, é preocupante. Se forem só palavras ao vento, geram um ruído desnecessário com nossos reais aliados de quem podemos obter reais vantagens. Se indicarem um direcionamento real futuro, são prelúdio de um fracasso ético e econômico.


sábado, 17 de abril de 2021

Reflexão sobre grandes tiranos e um protótipo incompleto - Paulo Roberto de Almeida

 Frequentemente leio comparações acerca do degenerado que nos desgoverna com outros tiranos do passado e concluo que elas não se aplicam, não porque lhe falte vontade de ser déspota, mas porque não tem sequer condições de aspirar a ser um.

Mussolini e Hitler possuíam realmente projetos de nação, ainda que patológicos e demenciais. Mao Tsetung também, ao lançar o seu Grande Salto para a Frente, que produziu mais mortos do que todos os demais tiranos reunidos, incluindo Stalin, que levou adiante seu projeto de nação a ferro e a fogo, à base de uma moderna escravidão. 

Não é o caso de Bolsonaro: ele não tem qualquer projeto de nação, qualquer programa de governo, qualquer doutrina legitimadora, como tinham todos os demais monstros. 

Ele é a negação absoluta de qualquer projeto, programa ou ação pensada, ele é a pura expressão dos instintos mais primitivos, e o resultado é esse, demolição, eliminação, destruição, muitas vezes sem a intenção expressa de fazê-lo, a não ser em direção daqueles que ele vê como inimigos (e são muitos, todos os que não concordam com sua visão torpe do mundo e que não se lhe submetem). 

Ele é o niilismo no estado mais antifilosófico do termo, a extirpação de qualquer pensamento ou razão, a selvageria de alguém acometido de loucura incurável. Ele consegue reunir em si mesmo vários cavaleiros do apocalipse, mas sequer tem consciência disso. 

O Brasil foi entregue a um demente!

Gostaria de complementar o que escrevi, e postei, abaixo, dando nomes, ou pelo menos “profissões”, aos “bois” (com perdão da palavra, talvez sugestiva demais):

“Diagnóstico da situação: creio que o terreno já está mapeado e claro. Todos os sensatos já desembarcaram da nau desgarrada do capitão. Só sobraram os muito ignorantes, os fanáticos de sempre e os oportunistas de todos os matizes. O homem vai ficar desesperado, mas é o que sobrou!”

Era isso, apenas, mas vamos aos bois:

A principal base política do capitão é constituída pela segunda categoria , ou seja, o gado propriamente dito, que também pode compreender elementos bípedes da primeira e da terceira categorias. Mas não se sabe bem quantos seriam: tem muitos idiotas das três categorias que participam de marchas e manifestações, e o curralzinho do Alvorada tem ficado cada vez mais rarefeito (será que muitos já morreram, com o “kit Bolsovirus?); eles parecem muito mais numerosos nas redes sociais, pois aí tem algum trabalho dos mercenários que manipulam robôs e replicadores, o que pode dar essa impressão de quantidade (quando de fato pode ser dez ou cem vezes menor o volume do gado).

Os evangélicos se distribuem por todas as três categorias, mas a diferenciação se faz pelas faixas de renda: os pobres estão na primeira, os pastores na dos espertalhões, o que não os impede também de serem cavalgaduras completas.

Os milicos entram majoritariamente na terceira categoria, mas de suboficiais para baixo, e nas PMs, também devem entrar ignorantes e fanáticos. Uma coisa não impede a outra entre fardados, mas dificilmente oficiais que fizeram os cursos de Estado-Maior poderiam ser sinceramente bolsonaristas: seria muito difícil para gente instruída.

Capitalistas, do campo ou da cidade, se situam igualmente na terceira categoria, o que não impede empresários e ruralistas bolsonaristas de serem perfeitamente estúpidos, como ele próprio aliás.

Nem o pessoal do chamado Gabinete do Ódio é fanático: eles apenas estão fazendo o seu trabalho mercenário, e não podem ser tão estúpidos quanto os chefes da famiglia: eles precisam ser pelo menos eficientes, para abastecer as redes e alguns ministros mais idiotas.

Se contarmos que, com o mau exemplo do capitão, sua nau vai ficando sem grumetes, remadores ou marinheiros, que vão morrendo ou desistindo pelo caminho, talvez tenhamos um “navio fantasma” até o final do ano. Vai navegar a esmo pelos mares do Brasil? É provável!

Vai sobrar aquilo que Barbara Tuchman poderia chamar de marcha dos insensatos! 

Titanic já era: virou uma caravela toda estropiada, dentro em pouco um barquinho desmilinguido, a jangada de Medusa...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3893, 17 de abril de 2021


sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Muro de Berlim: a 25 anos de sua queda, milhoes ainda vivem sob tiranias comunistas - Marion Smith (WSJ)

Não se trata apenas dessas tiranias abjetas, desses despotismos ordinários, dessas ditaduras miseráveis, pois existem, também, muitos comunistas em diversos outros lugares do mundo, aliás no próprio Brasil, gente delirante, que pretende controlar, censurar, dominar, estatizar, conforme seus instintos comunistas e fascistas...
Paulo Roberto de Almeida

The Berlin Wall Fell, but Communism Didn’t
From North Korea to Cuba, millions still live under tyrannous regimes
By  Marion Smith       
Nov. 6, 2014   WALL STREET JOURNAL   

As the world marks the 25th anniversary of the fall of the Berlin Wall on Nov. 9, 1989, we should also remember the many dozens of people who died trying to get past it.

Ida Siekmann, the wall’s first casualty, died jumping out of her fourth-floor window while attempting to escape from East Berlin in August 1961. In January 1973, a young mother named Ingrid hid with her infant son in a crate in the back of a truck crossing from East to West. When the child began to cry at the East Berlin checkpoint, a desperate Ingrid covered his mouth with her hand, not realizing the child had an infection and couldn’t breathe through his nose. She made her way to freedom, but in the process suffocated her 15-month-old son. Chris Gueffroy, an East German buoyed by the ease of tensions between East and West in early 1989, believed that the shoot-on-sight order for the Berlin Wall had been lifted. He was mistaken. Gueffroy would be the last person shot attempting to flee Communist-occupied East Berlin.

But Gueffroy was far from the last victim of communism. Millions of people are still ruled by Communist regimes in places like Pyongyang, Hanoi and Havana.

As important as the fall of the Berlin Wall was, it was not the end of what John F. Kennedy called the “long, twilight struggle” against a sinister ideology. By looking at the population statistics of several nations we can estimate that 1.5 billion people still live under communism. Political prisoners continue to be rounded up, gulags still exist, millions are being starved, and untold numbers are being torn from families and friends simply because of their opposition to a totalitarian state.

Today, Communist regimes continue to brutalize and repress the  hapless men, women and children unlucky enough to be born in the wrong country.

In China, thousands of Hong Kong protesters recently took to the streets demanding the right to elect their chief executive in open and honest elections. This democratic movement—the most important protests in China since the Tiananmen Square demonstrations and massacre 25 years ago—was met with tear gas and pepper spray from a regime that does not tolerate dissent or criticism. The Communist Party routinely censors, beats and jails dissidents, and through the barbaric one-child policy has caused some 400 million abortions, according to statements by a Chinese official in 2011.

In Vietnam, every morning the unelected Communist government blasts state-sponsored propaganda over loud speakers across Hanoi, like a scene out of George Orwell ’s “1984.”

In Laos, where the Lao People’s Revolutionary Party tolerates no other political parties, the government owns all the media, restricts religious freedom, denies property rights, jails dissidents and tortures prisoners.

In Cuba, a moribund Communist junta maintains a chokehold on the island nation. Arbitrary arrests, beatings, intimidation and total  media control are among the tools of the current regime, which has never owned up to its bloody past.

The Stalinesque abuses of North Korea are among the most shocking. As South Korea’s President Park Geun-hye recently told the United Nations, “This year marks the 25th anniversary of the fall of the Berlin Wall, but the Korean Peninsula remains stifled by a wall of division.” On both sides of that wall—a 400-mile-long, 61-year-old demilitarized zone—are people with the same history, language and often family.

But whereas the capitalist South is free and prosperous, the Communist North is a prison of torture and starvation run by a family of dictators at war with freedom of religion, freedom of movement and freedom of thought. President Park is now challenging the U.N. General Assembly “to stand with us in tearing down the world’s last remaining wall of division.”

To tear down that wall will require the same moral clarity that brought down the concrete and barbed-wire barrier that divided Berlin 25 years ago. The Cold War may be over, but the battle on behalf of human freedom is still being waged every day. The triumph of liberty we celebrate on this anniversary of the Berlin Wall’s destruction must not be allowed to turn to complacency in the 21st century. Victory in the struggle again totalitarian oppression is far from inevitable, but this week we remember that it can be achieved.

Mr. Smith is executive director of the Victims of Communism Memorial Foundation in Washington, D.C.

sábado, 23 de novembro de 2013

Poder absoluto e grandes catastrofes nacionais - reflexoes de Paulo Roberto de Almeida

Reflexões ao léu: o poder absoluto e as grandes catástrofes nacionais

Paulo Roberto de Almeida

A história humana, pelo menos a história política (mas também a militar, a história social, e a econômica, a cultural, enfim, a história humana), está repleta de exemplos de desastres nacionais, por vezes verdadeiras catástrofes, que se abatem sobre todo um povo, não poupando até mesmo inocentes criaturas que não têm sequer uma vaga ideia sobre o que pode estar se passando na cabeça dos dirigentes que provocaram tais calamidades. Sim, estou me referindo a “man-made calamities”, desastres provocados pelo próprio homem, que, à diferença de certas calamidades naturais – provocadas por forças incontroláveis pela vontade humana, e até mesmo não evitáveis pela tecnologia social – não existiriam sem a intervenção de fatores contingentes que se devem inteiramente à ação humana, geralmente por parte de algum déspota (pouco) iluminado, quando não vulgarmente estúpido.
A história, a vida humana na verdade, ou toda a vida biológica, como ensinava um eminente cientista francês – Jacques Monod – é feita de acaso e de necessidade. Este, aliás, é o título de seu mais belo livro, publicado em meados dos anos 1970, se não me engano, e que constitui uma das primeiras vacinas intelectuais com que fui brindado e que ajudaram a diminuir progressivamente as altas doses de determinismo marxista que eu ainda carregava em minhas veias acadêmicas. A necessidade corresponde às forças da natureza, justamente, ou seja, os fatores imanentes, ligados à genética, à geologia, à gravidade, enfim, aos princípios darwinianos e newtonianos bem conhecidos. O acaso, por sua vez, ocorre também na natureza, pois não são raros os acidentes naturais ou genéticos que provocam irrupções vulcânicas, que conduzem às mutações de espécies, ou a uma série imensa de transformações repentinas, por vezes infinitamente lentas, que moldam a vida no planeta e até o itinerários de elementos não vivos, mas cambiantes pela ação dessas forças da natureza. O acaso, contudo, é bem mais presente na vida animal, especialmente na vida daqueles primatas que se acreditam superiores, mas que também respondem a certas pulsões que por vezes podem aproximá-los das mais terríveis bestas feras da fauna existente.
Por acaso (mas isso não tem a ver com Jacques Monod) lembrei-me agora da frase do tio do garoto que se converteu em “homem aranha”, absolutamente simples e, no entanto, cheia de sabedoria: “maior o poder, maior a responsabilidade” (ou algo aproximado a isso). Ela tem tudo a ver com estas reflexões ao léu, que me subiram à cabeça (se ouso dizer) depois de ler várias matérias, em revistas, jornais, na internet, sobre eventos totalmente corriqueiros, ou grandes episódios históricos, que se encaixam perfeitamente no título deste pequeno artigo: o poder absoluto pode conduzir a grandes catástrofes sociais, com enormes sofrimentos para os membros de uma determinada comunidade (por vezes durante mais de uma geração).
A humanidade, como se sabe, é formada por milhões de seres que foram se espalhando ao acaso pela superfície terrestre, adaptando-se ao ambiente natural, e daí construindo mecanismos de defesa contra os desafios e perigos naturais; mas eles também introduziram normas de controle social para evitar os “espíritos animais” que ainda caracterizam a espécie humana: o medo, a agressividade, o ódio, a conquista e a dominação, até instintos assassinos (nem sempre por autodefesa), ao lado de sentimentos mais nobres e altruístas, como o amor, a solidariedade, a fraternidade, o desprendimento e a caridade.
Algumas sociedade evoluíram satisfatoriamente e conseguiram criar certo equilíbrio (sempre instável, como é da natureza das coisas), com o ambiente, com as demais sociedades e até dentro da sua própria, ou seja, entre as várias categorias de seus membros; suas respostas habilitaram-nas a construir certo quantum de felicidade humana, em alguns casos até invejável. Quem desejar aprofundar seu conhecimento sobre como se deu essa evolução social e cultural, ao longo de algumas dezenas de milhares de anos, pode recorrer à leitura do livro do cientista americano Jared Diamond, Armas, Germes e Aço (recomendo comprar a edição americana na Abebooks, Guns, Germs and Steel, onde se pode achar usados em excelentes condições por UM dólar).
Nos últimos cinco ou dez mil anos, as sociedades evoluíram e aperfeiçoaram o seu desempenho na arte da guerra, nas transformações tecnológicas, na ocupação de mais territórios e na dominação de outros povos, aumentando potencialmente a capacidade de alguns deles conquistar, dominar e escravizar outros povos, o que não deixa de representar uma catástrofe para os assim submetidos. Pensemos, por exemplo, na escravidão dos judeus pelos babilônios, pelos egípcios, e no seu sofrido caminho para a autonomia, se estabelecendo num território que já tinha sido o seu, até, de novo, sua completa submissão pelos romanos, seguida de uma diáspora secular, na era cristã.
Independentemente desses percalços, que atingiram dezenas, centenas de povos ao longo da história – causando até mesmo o desaparecimento físico de alguns deles –, o fato é que a humanidade também progrediu num sentido humanístico, graças, entre outros fatores, às leis da razão, aos preceitos religiosos (como os próprios judaicos, cristãos, budistas, e vários outros) e ao simples reconhecimento prático de que a tolerância mútua e a convivência pacífica fazem muito bem à saúde humana, melhor em todo caso do que violência aberta e dominação brutal. De fato, a humanidade se tornou menos cruel, com a disseminação das religiões da fraternidade e do amor, em substituição àquelas que pregavam o sacrifício humano e a crueldade com os estranhos.
Nos dois mil anos que se seguiram ao aparecimento e expansão do cristianismo – tanto como religião “rebelde”, clandestina, quanto como religião de Estado, de um império – alguns povos progrediram enormemente, o que não quer dizer que os não cristãos também não tenham avançado na construção de instituições mais efetivas de governança e de uma prosperidade relativamente bem distribuída. A China, por exemplo, foi, muito antes do Ocidente, um Estado avançado, dotado de uma burocracia “weberiana” e de inovações científicas e de instituições sociais e políticas que só apareceriam muito mais tarde na vida do Ocidente cristão. Mas ela sempre constituiu um sistema imperial baseado na centralização absoluta do poder, um despotismo de base agrária (hídrica) que tornou a vida de milhões de súditos apenas um pouco acima da sobrevivência miserável, bem mais, em todo caso, do que no Ocidente medieval.
Progressos econômicos se traduziram em prosperidade – aumento da produtividade agrícola, desenvolvimento de atividades comerciais, financeiras e até culturais – e no incremento da capacidade militar, o que permitiu, justamente, o domínio e a subjugação de outros povos. Poderia ter sido a China, por exemplo, a dominar e escravizar o Ocidente – o que os mongóis fizeram parcialmente – mas acabou sendo os ocidentais que partiram à conquista da China e do resto do mundo, mais ou menos 500 anos atrás. Quem quiser saber mais sobre os progressos econômicos e tecnológicos da humanidade, recomendo ler os livros do historiador americano David Landes, especialmente seu A Riqueza e a Pobreza das Nações (também recomendo o site da Abebooks, onde se pode encontrar exemplares usados por até 4 dólares).

Mas eu estou me desviando de minhas reflexões, que não têm tanto a ver com a história da humanidade – e posso recomendar excelentes livros de história universal, e até sobre a história das guerras – quanto com a história nacional de alguns povos, como aliás evidenciado no título: quero falar de catástrofes “nacionais”, não de imperialismos ou de submissão de outros povos. Parto do mundo westfaliano como ele é, ou seja, composto de unidades políticas territorial e politicamente definidas e mutuamente respeitadoras da soberania alheia, pelo menos formalmente. Observo que alguns povos puderam se desenvolver de modo satisfatório, logrando prover altos patamares de prosperidade e de felicidade humana para seus integrantes, enquanto outros estagnaram ou recuaram, quando não foram vítimas de desastres incomensuráveis.
E por que isso ocorreu com esses infelizes? Aí entra o primeiro componente de minha reflexão ao léu (mas dirigida): o poder absoluto. Estou convencido de que todos os grandes desastres nacionais – ou seja, aqueles que não tenham sido provocados por agressão externa ou catástrofes naturais incontroláveis – foram essencialmente a obra de alguns tiranos malucos, déspotas obcecados por alguma fixação mental, pequenos e grandes ditadores que se alçaram ao comando de seus povos, e a partir daí cometeram tantos erros e equívocos econômicos, militares, sociais, que ocorreu seja um recuo relativo, seja um retrocesso absoluto na vida dos povos vitimados por esses loucos.
Digo “loucos” ou “malucos” no sentido metafórico, obviamente, pois alguns tiranos são perfeitamente metódicos e “racionais” em sua sanha de dominação total. A compulsão do poder absoluto representa, em todo caso, um tipo de desvio psicológico, que faz com que alguns indivíduos não se contentem em dominar um determinado povo – geralmente o seu mesmo – pelos mecanismos naturais do poder político, mas insistem em manter um controle absoluto sobre a vida de cada indivíduo e sobre o curso de toda a sociedade. Trata-se, provavelmente, de um deformação da personalidade, mas que nem sempre transparece nas primeiras fases da ascensão social de indivíduos doentios.
Rejeito terminantemente o uso de conceitos afiliados ao maquiavelismo intelectual – ou seja, uma doutrina vinculada à análise política pré-moderna – para caracterizar essas situações de domínio despótico. Maquiavel – a quem já homenageei numa releitura de sua obra mais famosa, O Moderno Príncipe (Maquiavel revisitado) – era um patriota interessado em salvar a Itália dos invasores estrangeiros, com seus exércitos de mercenários selvagens, e que por isso, contrariando seus próprios instintos republicanos, consentiu em propor uma solução despótica para assegurar a sobrevivência do Estado (na verdade, a construção de um poder legítimo, podendo introduzir a lei e a ordem, para permitir o desenvolvimento da cidadania).
Os tiranos a que me refiro, e que estão na origem de tantos desastres nacionais, são totalitários no espírito e na ação, concentrados unicamente em seu poder absoluto e que, por isso mesmo, acabam levando suas sociedades e os povos que nelas habitam a desastres incomensuráveis, quando menos a atrasos quase insuperáveis na escala civilizatória. Eles são praticamente autistas, ou seja, voltados unicamente para si mesmos, mas também costumam ser dirigentes hábeis, capazes de seduzir os incautos, atrair o apoio de muitos cidadãos ingênuos – não falo dos simplórios e dos idiotas, que estes existem em todas as partes – e até mesmo conseguem capturar a estima de muitos, já que encarnando, supostamente, aspirações nacionais (patriotismo, dignidade nacional, sentido da grandeza da nação, autoestima legítima, às vezes necessidade de afirmação). Qualquer que seja a razão, um tirano não ascende a essa posição apenas pelo exercício da força bruta, ainda que tais extremos possam ocorrer excepcionalmente.
Em qualquer hipótese, como referido na abusadíssima frase de Lord Acton, o poder absoluto corrompe absolutamente, e são muito abundantes, e infelizes, os exemplos desse tipo de situação. A comunidade dos Estados contemporâneos ainda é muito diversificada quanto à natureza, conformação e tipo de governança existente na prática, havendo sistemas bastante avançados de legitimidade democrática – não é difícil distinguir certas sociedades escandinavas e as do mundo anglo-saxão, de modo geral – e outros lamentavelmente detestáveis em seu despotismo mais evidente (em vários países da África, na Ásia central e até mesmo na América Latina). Os regimes políticos não se sustentam apenas burocraticamente, pelas instituições criadas na modernidade westfaliana (e como tais reconhecidas no direito internacional), mas também se impõem pela brutalidade pré-moderna de certas tiranias de fato e de direito.
A história, como eu dizia ao início deste pequeno texto, está repleta de exemplos de desastres nacionais, sempre provocados por tiranos, ou candidatos a tal. Não me refiro necessariamente a Napoleão, e a seu Império quase uniformemente continental, na Europa, pois o pequeno imperador, e grande estrategista militar, parecia encarnar as virtudes da administração burocrática moderna, na destruição do que era considerado como “restos feudais” nos regimes absolutistas do continente. Megalomaníaco como era – sem ser um tirano cruel ou despótico – ele também conduziu a França ao desastre, mas numa escala ainda reduzida, se pensarmos nas destruições que vieram depois dele. Afinal de contas, ele presidiu à passagem do exército de mercenários ao recrutamento obrigatório, que também foi uma escola de cidadania – quando não uma escola tout court – a milhares de camponeses que de outra forma teriam vegetado naquilo que Marx chamava de idiotice da vida rural. Os exércitos modernos ainda são napoleônicos nos seus processos de conscrição, de socialização e de formação de soldados-cidadãos.
Depois dele, o primeiro grande personagem da megalomania totalitária foi Lênin e seu projeto de criar o homem novo, eliminando burgueses, camponeses ricos, padres e intelectuais dissidentes, além de capitalistas em geral. Foi o primeiro regime despótico moderno, e teve muito a ensinar a seus êmulos na própria Rússia ou em outros países. O próprio Lênin se inspirou em Robespierre, e seu reinado de Terror, que ele admirava sinceramente, e pretendia reproduzir usando a Tcheca como seu instrumento.
Stalin, Mussolini, Hitler e Mao aprenderam com Lênin tudo o que aplicaram de perversidades totalitárias, ainda que Hitler não estivesse pronto a reconhecer essa sua dívida intelectual para com o fundados do império soviético. Os imensos desastres humanos que essa quadrilha de tiranos provocou, ao longo do século XX, se cifra na casa das dezenas de milhões de vítimas, de morte matada e de morte morrida, mas sempre por culpa de suas aventuras insanas em busca do poder absoluto. Observe-se que nenhuma ameaça externa os obrigou a empreender a eliminação maciça de seus supostos inimigos: tratou-se de uma decisão solitária, insana como soe acontecer.
Alguns deles foram metódicos na aplicação de seus propósitos tirânicos, e nisso os comunistas levaram uma imensa vantagem sobre seus colegas fascistas: eles criaram uma máquina fria de identificação e eliminação de aliados e inimigos, um sistema quase weberiano de tirania semi-racional, já que contando com uma filosofia universalista, que prometia um futuro radiante a todos os deserdados da terra (e eles eram muitos, várias dezenas de milhões). Os nazistas atuaram com base na separação das raças e num ódio irracional a determinadas categorias humanas, não conseguindo com isso emitir um discurso universalista; eles não puderam legitimar o seu poder, da mesma forma como os comunistas o fizeram (aliás até hoje, em alguns países). Todos foram tiranos absolutos, em algum momento tragados pela loucura do poder, o que os levou a cometer erros que redundaram em grandes tragédias humanas para suas próprias sociedades. Pensemos, por exemplo, em Hitler, logo após ter obtido o Anchluss da Áustria e ter absorvido boa parte da então República Tchecoslovaca: o que o obrigava a invadir a Polônia, a entrar em guerra com as potências ocidentais, e mais adiante invadir a União Soviética, que era inclusive sua aliada? O que o obrigava a declarar a guerra aos Estados Unidos, logo depois do ataque de Pearl Harbor? Insanidade completa, que se traduziu na maior tragédia de toda a história dos povos germânicos.
Numa versão mais “amena”, mas igualmente desastrosa para certos povos, tivemos alguns ditadores na Ásia e na América Latina, ainda hoje cultuados como grandes homens, até heróis, em seus países. Uma sociedade não muito distante de nós foi sequestrada por um fascista populista, e convive até hoje nessa situação bizarra, que atinge inclusive intelectuais, cuja inteligência (se existe) foi capturada por um cadáver. Uma outra na mesma região ainda atravessou recentemente a mesma experiência, e se afunda progressivamente na ditadura política e no caos econômico. Alguns outros candidatos a tiranetes pululam aqui e ali, dispostos a subir aos extremos, se o ambiente interno e externo assim lhes permitir. Num retrospecto histórico, não é difícil constatar o imenso atraso a que foram conduzidas suas respectivas sociedades: se eles não mataram como os tiranos absolutos acima referidos, eles atrasaram de modo por vezes irremediável sociedades que já foram mais ricas, e que tinham condições de conhecer patamares mais elevados de prosperidade material e de riqueza cultural.
O Brasil não conheceu esses extremos terríveis de tiranias fascistas, ou de domínio de caudilhos ridículos, ainda que tenha passado por ditaduras bastante severas na aplicação do autoritarismo “legal” a que sempre foram obedientes nossos militares de orientação positivista ou castilhista. Mas eles foram adeptos do que eu chamo de nazismo econômico e de stalinismo industrial, que ainda hoje seduzem certos espíritos simplórios numa esquerda que se caracteriza sobretudo por seu atraso mental e por sua indigência intelectual. Eles se disfarçam de keynesianos de botequim, mas se aproximam bastante do que eu chamo de fascismo corporativo.
O Brasil não retrocedeu absolutamente, ou não tanto quanto certos vizinhos e outros “aliados estratégicos” em outros continentes, mas ele se atrasou certamente, ao não perder oportunidades de perder oportunidades, como dizia Roberto Campos. Ele continua se atrasando, a julgar pelos indicadores de crescimento econômico comparado e pelo desempenho exibido nos exames internacionais de avaliação estudantil. Esse último problema é certamente uma tragédia, relativa e absolutamente, atual e potencial, e só posso lamentar que os companheiros atualmente no poder tenham conduzido nossa educação a níveis tão baixos de qualificação didática, sob qualquer perspectiva histórica que se conheça. A educação brasileira, aliás, já é um grande desastre nacional: imaginem se ainda estivéssemos vivendo sob um regime totalitário, como certamente gostariam alguns companheiros aloprados. Mas não só eles: alguns que se consideram geniais também...


Hartford, 23 de Novembro de 2013.