Constatando o óbvio sobre o atual estado de desgovernança no Brasil
Paulo Roberto de Almeida
O problema (um dos problemas) do bando de novos bárbaros que desgovernam o Brasil atualmente não é que eles sejam liberais, de direita, de extrema-direita, conservadores, reacionários, anacrônicos, ou qualquer outra coisa que se encaixe naquele terço final (à direita, evidentemente) do espectro político-ideológico que normalmente costuma dividir o leque das posturas políticas da esquerda à direita, passando obviamente pelo centro e pelas variações de uma ponta à outra do espectro (que vem da Revolução francesa, ou seja, já estava um pouquinho defasado para abrigar todos os matizes da vida política contemporânea).
Esse não é o maior problema, e se fosse só isso tampouco estariam resolvidos nossos problemas atuais de desgovernança no Brasil.
O problema é muito maior e infinitamente mais complicado de resolver ou de superar, pois consiste numa realidade mais prosaica e dificilmente reparável no curto prazo ou nestas duas gerações de novos bárbaros.
Esse problema grave consiste em que os novos bárbaros — eu me refiro à pequena tribo de aloprados que cercam o titular do cargo, familiares e poucos outros assessores mais chegados — são singularmente despreparados para os cargos que ocupam, pois são ignorantes crassos, são de uma burrice congênita, de uma estupidez tão monumental, e de uma arrogância tão fenomenal que os impedem de absorver novos insumos da realidade que os cerca, e que está inteiramente disponível nos meios de comunicação tradicionais, nessa grande mídia que eles tanto desprezam, pois que traz exatamente o oposto do que eles leem habitualmente, ou que eles próprios fabricam em suas bolhas de manipulações fraudulentas, nesse universo de deformações surreais nos quais vivem os representantes da espécie.
Esses alquimistas da ignorância não conseguem aprender com as boas leituras, com a experiência alheia, com a simples observação da realidade, pois que ficam trancados na gaiola de ferro das FakeNews, na célula hermética, inviolável, de sua própria estupidez.
Esta é a realidade. Mas tem outra, ainda mais preocupante: mais da metade, talvez a grande maioria da pequena minoria estável dos que os apoiam consiste em pessoas absolutamente iguais a eles, exatamente similares aos novos bárbaros em sua ignorância crassa e estupidez irremediável. Esta é, infelizmente, a realidade de boa parte do eleitorado brasileiro, assim como é a marca distintiva do eleitorado americano que elegeu aquele estupor de presidente.
Não seria um obstáculo insuperável para a substituição dos novos bárbaros por uma tribo um pouco mais inteligente de dirigentes, em todo caso mais aberta à absorção de novos conhecimentos, se a esquerda e o centro não estivessem tão divididos nos pequenos projetos sectários, exclusivos e excludentes, que os mantêm separados e num estado de concorrência predatória entre si.
Aparentemente, cálculos mesquinhos e experimentos individualistas no centro, na esquerda e na direita vão preservar essa fragmentação da oposição aos novos bárbaros, o que talvez leve estes últimos à conquista de mais um mandato para a desgovernança do Brasil.
Mas a divisão das oposições é apenas o obstáculo menor à recomposição de uma frente unida contra a barbárie: o principal óbice é a INCAPACIDADE DE PENSAR CLARAMENTE, a dificuldade em estabelecer um diagnóstico mais adequado da realidade e, a partir daí, formular uma estratégia de reconquista de espaços junto ao eleitorado semi-ignorante.
O fato é que as oposições não têm nada a propor ao “popolo grasso” — aos grandes capitalistas, os donos do dinheiro — e sobretudo ao “popolo minuto”, ao Zé Povinho, que constitui a maioria do eleitorado (desinformado obviamente).
Na ausência de propostas mais tentadoras, mais inteligentes, mais sedutoras, a tendência do eleitorado é a de ficar com o que já existe, com o que já é conhecido — inclusive porque massacrado por doses maciças de propaganda enganosa —, o que dificulta qualquer perspectiva de renovação.
Não sei se os marquetólogos políticos já constataram, se os especialistas em comunicações já repararam, pois fazem praticamente dois anos (talvez mais) que somos bombardeados diariamente, constantemente, incessantemente, embrutecedoramente, pela mesma descarga maciça, avassaladora, dominadora de notícias, anúncios e peças de propaganda, pela presença irritante do mesmo personagem, 24hs por dia, sete dias da semana, todos os dias do mês: não existe um dia sequer, talvez nem um mísero minuto em que estejamos livres dessa presença desagradável, desse sujeitinho asqueroso que é o protótipo mesmo dos novos bárbaros, a ignorância em pessoa, a estupidez encarnada, a burrice deslavada, o fulcro da desgovernança em formato de dirigente.
Sorry Brasil, se não trago boas notícias (e eu não trouxe todas as más notícias, por exemplo, sobre a mediocridade de certos assessores, mesmo alguns recheados de títulos) e só dispenso banhos de ducha gelada sobre essa diminuta parcela de pertencentes à reduzida bolha de acadêmicos que me leem. A realidade é dura, para o Brasil e os brasileiros, mas a grande maioria não se dedica a reflexões aprofundadas a esse respeito: o povinho miúdo só quer sobreviver, os donos do dinheiro só querem preservar o seu patrimônio — se possível ampliá-lo, a partir da estupidez e da fragilidade intrínseca dos novos bárbaros — e os meus pares estão, estamos, reduzidos à nossa bolha acadêmica tradicional.
Não seremos o primeiro, nem o último país a entrar e a se manter numa longa decadência, permeada de retrocessos pontuais, mesmo em meio a certos avanços materiais. Mario de Andrade já dizia, um século atrás, que o progresso também é uma fatalidade.
Pois bem: avançaremos na senda do progresso material, ao mesmo tempo em que estaremos recuando espiritualmente, retrocedendo mentalmente, culturalmente.
Pelo menos, enquanto os novos bárbaros estiverem no poder.
Termino, dizendo que a maior parte da culpa pela desunião das oposições — mas não vou poder argumentar agora, neste texto já muito longo — e pela nova derrota das forças democráticas que certamente virá, incumbe às esquerdas, como sempre sectárias e arrogantes. Não é o centro, pois o centro está onde sempre esteve, no centro, de modo oportunista ou até sensato. As esquerdas possuem a chave da superação dos atuais impasses brasileiros. Elas estarão à altura de suas responsabilidades? Não acredito; mas sobre isso me pronunciarei oportunamente.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 7/10/2020