O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Debate sobre a ALCA em 2002: - Paulo Roberto de Almeida bispos do Canada

Pronunciamento dos Bispos do Canadá sobre a Alca

Síntese elaborada por D. Demétrio Valentini

Comentários de Paulo Roberto de Almeida (2002)

Introdução
A Conferência dos Bispos Católicos do Canadá (CCCB-CECC), através de sua Comissão de Assuntos Sociais, publicou, com o patrocínio também do CELAM e da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos, um importante documento sobre a ALCA, tendo como titulo: “Vendendo o futuro”. 
            PRA: O título do documento já representa uma tomada de posição contra o acordo (ainda hipotético) que deve, sim, atuar no futuro, com efeitos comerciais. O título faz um apelo emocional “contra” um instrumento ainda largamente indefinido: trata-se de um acordo de livre comércio que, sim, tem objetivos essencialmente comerciais, mas que não se diferencia, no essencial, de outras dezenas de acordos de liberalização comercial que, seja no âmbito restrito de processos de integração envolvendo poucos países, seja no plano mais vasto do sistema multilateral de comércio, contribuiu, nas últimas décadas, para aumentar em taxas superiores ao aumento da produção mundial, o volume de comércio internacional, gerando empregos e desenvolvimento. O próprio dos acordos comerciais é deslocar empregos de um lado para outro, geralmente dos países mais ricos para os mais pobres, para acompanhar o diferencial de salários. Esse é o “futuro” da Alca, também, de certa forma deslocar empregos dos países mais ricos para os mais pobres, obrigando assim os EUA e o Canadá a se especializarem na produção de alto valor agregado, de maior intensidade tecnológica, o que é o padrão histórico de evolução do comércio internacional.

Nesse documento, os bispos canadenses, partindo da experiência já em andamento do Nafta, e constatando que a Alca é a proposta de extensão do mesmo tratado para toda a América, apontam claramente para as conseqüências negativas jáconstatas na aplicação do Nafta, e advertem para os perigos contidos na proposta da Alca, sobretudo porque a Alca reivindica para os investimentos uma proteção indiscriminada, tirando dos Estados a capacidade de intervir para a defesa dos interesses públicos e do meio ambiente.
                  PRA: Essas “consequências negativas” são mais afirmadas do que provadas e não há evidência de que o Nafta tenha sido tremendamente negativo para nenhuma dessas economias, ao contrário, o comércio cresceu entre os países membros e novos empregos foram produzidos. O País que mais se beneficiou do Nafta foi justamente o México, o de menor desenvolvimento relativo. O México concedeu, por vontade própria, garantias aos investidores estrangeiros, como uma contrapartida para a fixação desses investimentos no país; ele poderia não fazê-lo, mas correria o risco de receber muito menos investimentos do que recebeu.

O  documento conclama os cidadãos da América a participar desse debate, pois ele é crucial para o futuro comum de nossos povos.

1.    Síntese do documento

1.1.  A natureza do tratado -  Não é só “livre comércio”.
O  documento inicia chamando a atenção para o alcance da proposta da Alca, que não se limita a ser um tratado de “livre comércio”, mas que é sobretudo uma tentativa de proteção total dos investimentos, afetando a soberania dos Países, tirando-lhes a capacidade de proteger o meio ambiente, e negando o direito da participação democrática do povo na determinação dos rumos do seu governo.
            PRA: O “projeto” de acordo da Alca trata, sim, de investimentos, além de comércio, mas isso de nenhuma forma atenta contra a proteção ao meio ambiente; o que ele faz é retirar qualquer discriminação contra o investidor estrangeiro no tratamento a ser dado, sem que esse investidor possa descumprir normas e leis nacionais relativas ao meio ambiente. Isso não retira soberania a nenhum país e não retira participação democrática ao povo, na medida em que leis nacionais e acordos internacionais são votadas pelos Congressos nacionais, através dos representantes do povo, que saberão melhor como decidir em total soberania.

1.2.  A proteção total aos investimentos
O documento constata que a proposta da Alca pretende incluir, ao pé da letra, o capítulo 11 do Nafta, que concede direitos privilegiados aos investimentos, restringindo a capacidade de intervenção dos Estados, e estabelecendo instâncias de arbitragem internacional para dirimir os conflitos, passando por cima, desta maneira, da legislação estabelecida em cada país.
PRA: Essa proposta ainda não foi aprovadae de toda forma todos os acordos bilaterais de investimentos, assim como os acordos comerciais de maneira geral, prevêm instância resolutivas de controvérsias que fazem apelo ao método da arbitragem comercial, crescentemente utilizado e consagrado nos acordos de comércio, por ser mais rápido e eficiente do que os tradicionais métodos judiciais. Isso não passa por cima da legislação de nenhum país porque eles já assinaram acordos reconhecendo a validade dos métodos arbitrais.

Desta maneira, o Nafta estabeleceu, e a Alca quer estabelecer, o que foi rejeitado veementemente pela opinião pública mundial quando foi proposto o famoso “AMI”, o “acordo multilateral de investimentos”, que propunha para os investimentos os privilégios que agora estão contidos no capitulo II do Nafta.
            PRA: O AMI não foi rejeitado pela “opinião pública internacional” e, sim, devido a diferenças de posição entre França e EUA que divergiam sobre questões de natureza cultural, por exemplo (direito de acesso ou restrições a programas audio-visuais estrangeiros). Os “privilégios” ao capital estrangeiro são simplesmente o de introduzir o chamado princípio do “tratamento nacional”, isto é, ausência de discriminação ao capital estrangeiro em relação ao capital nacional, que tem acesso natural a seus mercados cativos.

Os bispos canadenses advertem que este é o perigo maior da Alca. Para ressaltar a gravidade da proposta, o documento cita quatro casos concretos, em decorrência do Nafta, em que companhias multinacionais exigiram indenização por “lucros cessantes”, diante de restrições que os Estados precisaram fazer, em vista de prejuízos ao meio ambiente e à saúde pública causados por indústrias.
            PRA: Os bispos canadenses, neste caso, estão servindo de “inocentes úteis” para os meios sindicais de seu país, assim como ocorre nos EUA: a preocupação básica dos meios sindicais nesses paises é a de preservar e defender empregos em seus países, o que é normal, considerando que eles têm um compromisso com  os seus afiliados sindicais. Mas, esta não deveriaser a postura dos sindicatos (e supostamente dos bispos) de países como Brasil, México e outros de menor desenvolvimento relativo. Se estes países puderem atrair empregos, via investimento estrangeiro, o que haveria de ilegítimo nessa estratégia.
            Quanto às “indenizações por lucros cessantes”, trata-se de uma falsa questão e de uma pendência jurídica complexa. Falsa questão porque nenhuma empresa, nacional ou estrangeira, se coloca acima da lei, seja ela de regulação ambiental ou laboral. A lei obriga a todos, e apenas não pode contradizer acordos internacionais anteriormente assinados pelo país, o que é normal. Não se conhece lei internacional que impeça um pais de proteger o meio ambiente ou de proteger o trabalhador.
            A controvérsia jurídica pode surgir no caso em que um determinado governo garantiu determinadas condições a um determinado investimento (construção de qualquer facilidade num terreno legalmente adquirido, por exemplo), não importa se nacional ou estrangeiro, e se depois esse governo decidir modificar as condições para a exploração desse investimento, o que redundaria numa “quase expropriação”. Nesse caso, o investidor prejudicado pode intentar uma ação contra esse governo, o que é plenamente legítimo e aceito em justiça, inclusive no caso de “lucros cessantes”. A justiça decidirá o caso em questão, ou se isso existir, um comitê arbitral que decidirá com base numa apreciação ponderada dos fatos.

1.3.  Leitura crítica dos resultados
O   documento adverte que não se pode, ingenuamente, achar que o tratado da Alca se reduz a incentivar o comércio entre os países. Nem se pode ficar só na leitura de alguns dados superficiais, que apontam para o crescimento econômico dai resultante. Pois a questão chave está no processo de empobrecimento crescente de grande parte da população, em decorrência de um processo de concentração dos ganhos nas mãos de um restrito número de grandes empresas.
            PRA: Todos os casos historicamente conhecidos de liberalização de comércio provocaram crescimento e aumento de salário, particularmente nos países mais pobres, como ocorreu na China e na Índia. Casos de concentração de empresas são normais, e absolutamente temporários, pois que novas empresas estão continuamente surgindo para explorar novas oportunidades de mercado que surgem desse processo de expansão do comercio internacional. A Microsoft não existia ha 20 anos atras, hoje é a mais poderosa empresa na área de tecnologia da informação, mas essa dominação é temporária e será erodida pela concorrência e por novos produtos que já estão surgindo nessa área. O “empobrecimento” é também muito relativo, e se restringe aos casos de perdas de emprego localizados pela não competitividade de uma determinada empresa ou determinado setor. No cômputo geral porém, a criação de empregos e o enriquecimento produzidos pela expansão do comercio internacional são superiores aos fatores negativos. 

1.4.  Os dados concretos
Para isto, cita dados concretos, tanto do Canadá como do México, e também nos Estados Unidos. No México, por exemplo, depois que entrou em vigor o Nafta, o poder aquisitivo do salário mínimo diminuiu em 50por cento. No Canadá, os dados mostram que os vinte por cento mais ricos aumentaram sua porcentagem de riqueza de 41 para 45 por cento, enquanto os 20 por cento mais pobres diminuíram sua fatia de 3,8 para 3,1. Nos Estados Unidos a entrada no Nafta produziu a perda de 760.000 postos de trabalho, pois as multinacionais deslocam sua produção para explorar os salários mais baixos em outros países, aumentando assim seus ganhos, e acentuando o processo de concentração e de empobrecimento da população.
            PRA: A diminuição do poder aquisitivo no México e no Canada se deve muito mais à desvalorização de suas moedas do que aos efeitos do Nafta, que no geral foram bastante benéficos para TODAS as economias. Ora, desvalorização ou valorização cambiais podem ocorrer em circunstâncias variadas, com e sem acordos de comercio, como mostra a evolução do euro e do iene nos últimos anos.
            Os EUA perderam alguns empregos em determinadas industrias, que foram sim “exportadas” para o México, em grande medida, o que foi excelente para o México. Outros setores criarão empregos como resultado do acordo do Nafta, e no cômputo global, em termos de emprego, seu efeito foi mínimo para a economia americana, que continuou se modernizando com esse processo, o que é altamente positivo do ponto de vista tecnológico, pois os empregos criados pagam mais do que os extintos. Não houve empobrecimento decorrente do Nafta em nenhum desses países, mas sim deslocamento de empregos, e criação de novas oportunidades.


1.5.  A missão da Igreja
Diante disto, os bispos do Canadá observam que “é evidente que a produção de maior riqueza não leva, por si mesma, a uma distribuição mais eqüitativa desta riqueza, e que a ‘nova economia’ produz maior desigualdade de uma maneira ainda mais veloz do que antes”.
Diante disto, conclui o documento, “Se, efetivamente, a globalização é de certa forma inevitável, então é claro que a Igreja tem uma missão essencial em humanizar os seus objetivos e finalidades. Com a implantação da Alca, a Igreja precisa oferecer mais ainda uma reflexão ética em torno de temas tão críticos”.

2.    Advertências dos Bispos do Canadá

2.1.  O que está em jogo
O documento inicia chamando logo a atenção para a proposta mais preocupante do Nafta e da Alca, que é a proteção indiscriminada aos investimentos, com garantia total para seus lucros, em prejuízo das finalidades públicas da economia e do poder dos Estados em intervir em favor do bem comum. Diz textualmente o documento:
             “Das preocupações que resultam do Nafta, uma de grande importância é a que decorre da capacidade atribuída a companhias particulares de demandar contra os Estados no caso de aparentes perdas de lucros. Estas demandas ou reclamações afetam, em primeiro lugar a condição soberana dos Estados, em segundo lugar, a capacidade de proteger legalmente o meio ambiente, e por último, a participação democrática do povo em seu futuro governo”.
             PRA: Não há, como já argumentado acima, essa capacidade absoluta de empresas particulares processarem estados por “aparentes perdas de lucros”. Isso não existe em nenhuma legislação internacional ou nacional. Os riscos comerciais são das empresas. Apenas nos casos em que estados garantiram determinadas condições de atividade, registradas em contrato, a certas empresas e que essas condições venham depois a ser modificadas por ação unilateral do governo, haveria a possibilidade de ação judicial ou por via arbitral, se essa possibilidade estiver prevista no contrato. A figura do “processo por lucros cessantes” é um fantasma agitado pelos opositores do Nafta, que não trazem casos concretos em evidência, mas criam alarmes indevidos em torno de supostas ameaças potenciais.

2.2.  A concentração progressiva produzida pelo tratado
Alertando que não podemos nos enganar com a apresentação de dados relativos ao crescimento econômico, os bispos constatam que o tratado do Nafta acelerou, nos três países, a distância entre ricos e pobres:
“Os que apoiam o Nafta, assinalam indicadores econômicos gerais, como prova dos benefícios do tratado. Porém debaixo destes dados se esconde um substrato de sombras. Os três países apresentam um distanciamento crescente entre ricos e pobres em suas sociedades, com o aumento nas dificuldades e incertezas sobre o futuro para a maioria dos cidadãos, enquanto um numero cada vez menor de investidores, executivos e profissionais se tornam cada vez mais ricos”.
             PRA: Concentração de renda e desigualdades em sua distribuição independem de acordos comerciais para se produzirem pois dependem de condições econômicas gerais que podem ou não se produzir em diferentes circunstâncias. O Brasil produziu ambos os fenômenos mantendo o mais estrito protecionismo durante décadas, sem nunca ter liberalizado o seu comércio. Uma melhoria relativa nas condições de vida dos mais pobres ocorreu justamente na fase de abertura da economia, quando maior concorrência externa obrigou os monopólios nacionais a reduzirem os seus preços, beneficiando com isso os mais pobres.

2.3.  A economia fora do controle da cidadania e da autoridade dos governos
A seguinte observação dos bispos do Canadá preocupa pelas conseqüências a longo prazo que a Alca poderá trazer, em termos de colocar a economia acima dos interesses das populações e do alcance dos governos. Diz o documento:
“Quem observa com preocupação o processo da ALCA, o descreve como o tratado de comércio e de investimentos mais avassalador da história. Sérios indícios deixam entrever de que forma o comércio e os investimentos poderiam se desligar de qualquer forma de controle da cidadania e da autoridade dos governos legitimamente eleitos, deixando às corporações transnacionais e aos tribunais comerciais o poder de operar de forma independente e secreta.”
              PRA: Essa visão catastrofista exagera o impacto da Alca (se existir) no hemisfério americano. Pode-se fazer o julgamento análogo: o Nafta alterou radicalmente as condições vida nos EUA e no Canadá? Obviamente que não. Onde ele teve mais efeitos, mas eles foram positivos, foi no México, com a criação de dezenas de milhares de novos empregos. A Alca deveria ter um impacto similar em nível hemisférico: criar empregos nos países mais pobres, mas sem alterar dramaticamente as condições de vida nos países mais ricos, que também se beneficiarão com as novas oportunidades de negócios assim criadas. 
              A prevenção contra a Alca é injustificada em relação a seu impacto modesto na transformação das sociedades. Ela não vai ser a alavanca fundamental que vai trazer desenvolvimento aos países mais pobres, pois acordos de comércio não tem essa virtude. Ela apenas vai criar mais oportunidades de negócios. Mas, o desenvolvimento é uma tarefa nacional, que requer muitas outras condições (educação, sobretudo), que estão fora do alcance de qualquer acordo comercial.

2.4.  A proteção total aos investimentos e a desproteção dos interesses públicos
A advertência mais séria que os bispos do Canadá fazem, se refere ao capítulo 11 do Nafta, que se pretende transcrever pura e simplesmente para a Alca, e que consiste na proteção total dos investimentos, criando-se instâncias supranacionais e secretas para dirimir eventuais conflitos com os Estados. Assim, ficam atropelados direitos estabelecidos por legislações nacionais, e fica diluída a soberania dos Estados para determinar condições, objetivos e interesses dos países na condução da ordem econômica. Diz o documento:
         PRA: Não há “instancias supranacionais e secretas” em nenhum acordo comercial. Existem procedimentos arbitrais que seguem um padrão normal nesse tipo de solução de controvérsias. No caso do Nafta, se trata de sistema “colegial” de arbitragem, com representantes de todas as partes envolvidas, que discute se o tratado do Nafta foi ou não violado em determinada questão. A parte perdedora deve encerrar sua ação que engendrou a reclamação, como ocorre em qualquer processo judicial ou em painéis arbitrais da OMC ou de acordos de integração comercial. 

“A proposta da Alca inclui, virtualmente ao pé da letra, a totalidade do texto do Nafta no que se refere aos mecanismos de relação entre o Estado e os investidores, o que permitiria às corporações estrangeiras gozar de direitos particulares na utilização de instância de arbitragem internacional a portas fechadas e não sujeitas a prestar contas de suas decisões, em lugar de utilizar as cortes domésticas, dissolvendo assim leis e regulamentos promulgados democraticamente em todas as Américas”. ... “O objetivo primordial do capítulo 11 foi de limitar a capacidade dos governos de proteger o meio ambiente, a saúde e outros valores públicos, diante dos interesses comerciais”.
             PRA: Trata-se aqui de uma incompreensão fundamental quanto ao alcance de uma decisão arbitral, que tem a mesma validade de uma decisão judicial, por LIVRE ESCOLHA das partes. As empresas entre si, ou o próprio Governo, decidem aceitar soberanamente as decisões arbitrais como correspondendo ao desejo das partes. Isso se chama Livre Arbítrio. Não há nenhuma dissolução de leis, pois a própria legislação nacional e internacional, livremente aceita, acolhe a decisão arbitral como valida e legitima. Trata-se de uma mentira afirmar que o capitulo 11 do Nafta foi feito para limitar a capacidade dos governos de legislar sobre aquelas áreas: ele apenas regula o direito de empresas acionarem os governos nas condições já discutidas acima. Não se está colocando direitos comerciais acima do interesse público, e sim criando instancias nas quais pendências comerciais possam ser solucionadas pela via arbitral. Esse princípio é aceito universalmente.

Em síntese, as multinacionais entendem que elas não precisam, nem querem, ter nenhum compromisso com o meio ambiente nem com os objetivos públicos da economia, na suposição que elas tem o direito de buscar, incondicionalmente, todos os lucros que podem auferir de seus investimentos. E a aplicação globalizada do lema do liberalismo: “Fiat questus, et pereat mundus  - Haja o lucro, e pereça o mundo!”
            PRA: Afirmação impressionista, preconceituosa e que não corresponde à realidade dos fatos. As multinacionais, como quaisquer outras empresas, se submetem à legislação nacional onde atuam ou aos acordos internacionais livremente consentidos. Alguém pode acusar o Congresso americano de atuar contra o interesse público do país, apenas para proteger um punhado de empresas multinacionais? Seriam todos os congressistas néscios, idiotas, ingênuos?


2.5.  Os casos concretos
Para não ficarem só em advertências teóricas, o documento cita quatro casos concretos de demandas de multinacionais contra os Governos, amparadas no Capítulo 11 do Nafta, entre quinze já documentadas: (Os casos são seguintes: a “ETHYL CORPORATION”, a “S.D.MYERS”, “METHANEX CORP.” e a “METALCHAD”,de que o documento dá os detalhes dos respectivos processos)
            PRA:Não conheço os casos concretamente para opinar sobre cada um deles, mas remeto ao que afirmei mais acima: as empresas devem estar processando os governos pois que começaram a atuar em determinadas condições e essas condições foram mudadas de forma unilateral. Caberia à justiça, ou aos comitês arbitrais legitimamente constituídos por acordos aceitos pelos Congressos de cada pais, decidir em cada caso. As demandas não precisam ser de multinacionais pois qualquer empresa nacional pode processar o seu governo se sentir prejudicada por medidas que afetam os seus negócios, anteriormente regidos por uma determinada legislação. Isso ocorre todos os dias no Brasil por razoes de natureza fiscal ou tributária. As perdas dos governos em geral se devem a contratos mal feitos ou advogados pouco eficientes. 


2.5.1.A “ETHYL CORPORATION”, uma companhia americana sediada no Estado da Virgínia, que exigiu do Canadá uma indenização de onze milhões de dólares porque o governo canadense denunciou que o seu produto era prejudicial à saúde. Se fosse proibida de continuar produzindo a substância, a companhia exigia uma indenização de 250 milhões de dólares. Mas como o governo canadense cedeu, e não proibiu, a companhia se contentou em cobrar os onze milhões, como advertência, e continua produzindo o produto tóxico, mas que lhe dá lucros!

2.5.2.A “S.D.MYERS”, contra o governo do Canadá, exigindo a indenização de vinte milhões de dólares porque ficou proibida de produzir, por dois anos, os transformadores contendo um tóxico prejudicial à saúde.

2.5.3.A demanda, ainda em andamento da “METITLANEX CORP.”. Esta companhia, com sede em Vancouver, está pleiteando do governo americano a quantia de 970 milhões de dólares, alegando estar tendo prejuízo com a polêmica levantada pelo Estado da Califórnia, o qual alega que o produto químico da Methanex contamina os mananciais de água, trazendo um grave risco para o meio ambiente. A questão ainda não está decidida, mas o caso revela bem o espírito decorrente das exigências dos investidores, garantidas no capítulo 11 do Nafta.

2.5.4.O caso da“METALCHAD”, contra o governo do México: é uma companhia americana, que comprou os direitos de tratamento do esgoto no município de Guadalcazar, no México. O município constatou que a empresa tinha contaminado os mananciais de água, e negou a licença para o seu funcionamento. A companhia pediu uma indenização de noventa milhões de dólares, que representam uma soma maior do que os ganhos anuais de todos os habitantes do município. A decisão do tribunal especial determinou que o governo mexicano pagasse à companhia a quantia de 16,7 milhões de dólares como indenização.

3.    Apelos finais

Os bispos do Canadá concluem o seu documento, ressaltando as conseqüências negativas da maneira como foi implantado o Nafta, e da maneira como se estão levando adiante as negociações sobre a Alca.

Quanto às conseqüências negativas, o documento enfatiza que “a busca desregrada de lucro industrial incrementa a destruição ecológica, e o continuo endividamento das nações pobres.”Destaca a pobreza crescente, afetando sobretudo mulheres e crianças, “enquanto se reduz o orçamento para programas sociais e de saúde, e os postos de trabalho são precarizados”.
PRA: Essas consequências negativas são por demais impressionistas para serem discutidas seriamente. A preservação ecológica tem feito progressos em vários países, a despeito de graves problemas que ainda persistem e que não dependem de acordos comerciais para existirem, pois a maior parte dos investimentos diretos foi feita até hoje à margem de qualquer acordo do tipo do Nafta ou da futura Alca. Endividamento crescente não tem nada a ver com acordos de comércio, que geralmente provocam aumento de negócios e portanto geram mais divisas; ele deriva de causas propriamente financeiras, que são representadas pelo desequilíbrio entre poupança externa e interna, algo que o aumento do comércio vem justamente inverter. Os países mais pobres são justamente aqueles que não participam dos fluxos de comércio, investimentos e intercâmbio tecnológico. A China tem se tornado um pouco mais rica depois que, justamente, se inseriu de forma mais ousada na globalização e ela aderiu à OMC justamente na esperança de diminuir sua pobreza via comércio crescente. O lucro é decorrência dos negócios, não um pecado do qual as empresas se devam redimir. 

Dois apelos são feitos de maneira mais direta: à cidadania, e aos líderes políticos:

3.1.  Para a cidadania: “Os cidadãos do continente precisam se mostrar capazes de contribuir mais com estes debates tão cruciais, que determinam nosso futuro comum”.
                   PRA: TOTALMENTE CORRETO: isto significa se informar devidamente sobre as consequências econômicas e comerciais desses acordos, não ficar repetindo argumentos de cidadãos de outros países (no Norte do hemisfério) que estão basicamente interessados em defender os seus empregos, supostamente (ou realmente) ameaçados pelo Nafta ou pela Alca. Os interesses dos trabalhadores brasileiros (e supostamente dos bispos preocupados com o futuro do Brasil) está justamente em trazer mais empregos para o Brasil, não contribuir para que eles fiquem amarrados no Norte, pois com a Alca algum desses empregos virão para o Sul, o que é legítimo, absolutamente normal e esperado desse tipo de acordo. 
                   Um acordo comercial não é feito para que tudo permaneça como antes, mas para que os países e as empresas explorem as vantagens comparativas de cada lugar. Não é uma maldição divina ter salários mais baixos, este é um dado socio-econômico que vai persistir por muito tempo, até que as condições de vida se tornem menos desiguais entre o Sul e o Norte das Américas. Seria um pecado para as empresas multinacionais e para os governos dos países pobres atraírem investimentos e portanto empregos para esses países? Claro que não. 
                   O que os sindicatos e ativistas do Norte estão procurando fazer é isso: congelar os empregos no Norte, algo tão ilógico e antinatural, como pretender que todos continuem utilizado hoje a roca de fiar. A tecnologia e os empregos se movem em redor do mundo em busca de melhores condições de produção. O que os ativistas do Sul deveriam fazer seria justamente contribuir para acelerar esse processo, pois ele vai trazer melhor bem estar para seus povos. 

3.2.  Para os líderes: “Os líderes são urgidos a enfrentar o impacto social e ecológico de um mercado aberto, enfatizar os direitos humanos e as estruturas democráticas, e promover um desenvolvimento que respeite a dignidade dos indivíduos e das comunidades.”
                   PRA: Não me parece que os líderes estejam traindo seus compromissos com seus próprios povos ao se engajarem em negociações comerciais. O que cada um deles está buscando fazer, naturalmente é, no caso de alguns, preservar, no caso de outros, capturar empregos que vão se abrir com a abertura prometida por um acordo de comércio. Assim como os representantes no Congresso americano estão crescentemente preocupados com esses acordos (pois eles ameaçam roubar empregos de industrias situadas em suas circunscrições eleitorais), nossos representantes deveriam supostamente estar preocupados em que esses acordos sejam exitosos, pois que eles representarão transferência de empregos para países como o Brasil, onde a mão-de-obra vai, durante bastante tempo ainda, permanecer relativamente mais barata dos que nos EUA. 

4.     O compromisso da Igreja

A observação final do documento se refere à responsabilidade da igreja:

“Se, efetivamente, a globalização é de certa forma inevitável, então é claro que a Igreja tem uma missão essencial em humanizar os seus objetivos e finalidades. Com a implantação da Alca, a Igreja precisa oferecer mais ainda uma reflexão ética em torno de temas tão críticos “.
             PRA: Correto: a Igreja tem de humanizar a Alca e os acordos comerciais, e isso pode ser obtido por melhores condições de trabalho, emprego e renda para os cidadãos. Não é certo que a Alca venha a existir, não pela oposição de líderes ou bispos latino-americanos, mas basicamente pela oposição de políticos, líderes sindicais e alguns religiosos nos EUA. Se isso ocorrer, o panorama na América Latina não vai mudar muito nos próximos anos, sendo muito parecido com o que ele é hoje. Agora, não se vislumbra nenhuma melhoria social ou econômica com a preservação das condições atuais. A Alca não é uma promessa de desenvolvimento, longe disso, mas não é o monstro que querem fazer acreditar os bispos canadenses e outros ativistas norte-americanos. Eles terão sido bem sucedidos se a Alca não existir, pois toda a sua campanha vai nesse sentido. O que sim, vai ocorrer, é que uma das poucas possibilidades de aumento de padrões trabalhistas, de melhoria das condições de vida de milhões de cidadãos da América Latina ficarão em parte comprometidas porque empresas que poderia acorrer para esses países não o farão pela ausência de abertura comercial. Se é esse o resultado que pretendem os lideres religiosos e sindicais de países como o Brasil, eles precisam estar conscientes de que estarão atuando contra os interesses de seus cidadãos. 
             Os “fantasmas” agitados pelos bispos canadenses são argumentos exagerados de ativistas anti-Alca que não podem confessar que, na verdade, estão atuando de forma egoísta contra o interesse de outros milhões de cidadãos em outros países. 
             Um acordo Alca bem negociado pode não representar nenhuma alavanca fundamental no desenvolvimento econômico e social dos países mais pobres do hemisfério, que como se disse depende basicamente de medidas internas, não de acordos comerciais. Mas, a completa ausência de qualquer tipo de acordo, representa, sim, uma garantia de que nada vai mudar no panorama da integração do continente. 
             Os bispos devem fazer uma reflexão mais aprofundada e verificar de que lado estão nesse debate.

Paulo Roberto de Almeida

3 de setembro de 2002


Lancamento de livro sobre Sergio Vieira de Mello - IRBr, 22/08, 16hs


O Instituto Rio Branco (IRBr), a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) e o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) têm o prazer de convidar para o debate e lançamento do livro "Sergio Vieira de Mello, o legado de um herói brasileiro", do jornalista e historiador Wagner Sarmento. O evento será realizado no Auditório João Augusto de Araújo Castro, do Instituto Rio Branco, no dia 22 de agosto, às 16:00hs.
Nascido no Rio de Janeiro, Sergio serviu à ONU por 34 anos e atuou nos principais conflitos da segunda metade do século 20. Liderou negociações pela paz, ajudou refugiados e pessoas afetadas por crises humanitárias e atuou na defesa dos direitos humanos. Alto comissário das Nações Unidas, morreu em atentado terrorista 15 anos atrás, em Bagdá, no Iraque, mas a herança de seu trabalho está viva no Brasil e ao redor do mundo.
Graduado em jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e em história pela Universidade de Pernambuco (UPE), Wagner Sarmento atua na TV Globo Recife desde 2014. Antes, foi repórter do Jornal do Commercio e da Folha de Pernambuco. Em 10 anos de jornalismo, conquistou importantes prêmios como o Prêmio Latinoamericano de Periodismo sobre Drogas (2011), Embratel (2014), CNT (2017), Cristina Tavares (2011 e 2014), SAE Brasil (2017) e Urbana (2018). É autor do livro "Com as próprias mãos", biografia do tetracampeão mundial de boxe Acelino Popó Freitas, lançado em 2013.

O acordo do Brasil com o FMI em 2002 - Paulo Roberto de Almeida

O Brasil e o acordo com o FMI: reflexões diplomáticas

Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)

1.         Concluído o mais recente acordo de sustentação financeira entre o Brasil e o FMI, cujas dimensões especificamente financeiras foram suficientemente ressaltadas pelos observadores econômicos, caberia fazer uma análise de seu impacto na e para a política externa bem como suas implicações diplomáticas para o Brasil, dentro e fora da região. Esta reflexão não deve ater-se tão simplesmente ao acordo concluído em 7 de agosto de 2002, mas colocar-se igualmente na perspectiva das duas experiências precedentes, em 1998 e 2001, respectivamente, uma vez que o relacionamento do Brasil com o FMI – e as demais entidades financeiras de Washington, aí incluído o Tesouro americano – tem sido caracterizado por uma certa continuidade de propósitos e por uma convergência de pontos de vista com a chamada “mainstream economics”, durante toda a administração do Presidente Fernando Henrique Cardoso.

2.         Ressalte-se, em primeiro lugar, o reconhecimento do papel do Brasil, não apenas no cenário regional, mas de certa forma também seu impacto na economia mundial, o que explica, em grande medida, que, independentemente das filosofias diversas das duas administrações americanas que se sucederam entre 1992 e 2000 e a que agora ocupa a Casa Branca, os acordos de 1998, sua adaptação em 1999, o de 2001 e agora este mais recente tenham sido concluídos após prazos mais ou menos rápidos de negociações, não tenham gerado tensões maiores no curso das conversações e tenham sido anunciados sempre em condições bastante mais satisfatórias do que o previsto na fase precedente pelos mais diversos observadores econômicos. Esse reconhecimento vem sendo dado não apenas pela administração americana e pelas principais lideranças européias, mas igualmente por representantes institucionais dos principais organismos financeiros e por grandes interlocutores e do setor privado, como o demonstra o volume relativamente importante de fluxos voluntários e de empréstimos logrados pelo País na última década.

3.         Ainda que se possa arguir, sem muita fundamentação empírica, sobre a abordagem supostamente mais restritiva da atual administração, em comparação com o que teria sido uma posição de princípio mais favorável a socorros emergenciais por parte da administração anterior, o fato é que o Brasil conseguiu se fazer reconhecer como um país chave no contexto regional, tanto em virtude de seu peso específico na conjuntura econômica da América do Sul, como em função de seu importante papel econômico em escala mais vasta, tendo em vista a massa importante de investimento direto estrangeiro já presente como estoque produtivo acumulado por centenas de empresas multinacionais na economia brasileira, como pela dimensão dos fluxos de ativos – ligados a operações comerciais ou a atividades diretamente financeiras – se movimentando entre o Brasil e as principais praças financeiras do planeta, em especial na América do Norte e na Europa ocidental. 

4.         Compare-se, por exemplo, as dificuldades traumáticas registradas em certos casos anteriores de montagem de pacotes de sustentação financeira – a exemplo de alguns países asiáticos, da própria Rússia, ou da infeliz Argentina atualmente – com a relativa tranquilidade, para não dizer facilidade, com que se logrou concluir pouco mais de três processos negociadores de acordos de empréstimo desde 1998, mesmo à época em que ainda vigia o controverso sistema de banda cambial. Isto deve-se, sem dúvida, não apenas à qualidade da gestão macroeconômica em vigor no Brasil desde 1994, com a qual está identificado o ministro Pedro Malan, mas também à comprovada capacidade de liderança política, inclusive no plano internacional, do presidente FHC. Em outros termos, ademais dos componentes propriamente técnicos no estabelecimento dos três acordos formais concluídos com o Fundo desde 1998, incluído o ajuste do primeiro no seguimento da desvalorização e da mudança de regime cambial em janeiro de 1999, pode-se mencionar a tomada em consideração de elementos políticos e mesmo de caráter diplomático na condução bem sucedida desses processos negociadores relativamente complexos, para os quais o elemento confiança parece ter desempenhado um importante papel.

5.         Assim, mesmo o approach “caso a caso”, supostamente privilegiado na atual administração, contribuiu para destacar o Brasil dos demais casos de montagem de programas emergências em casos de turbulências financeiras, como os que estamos assistindo desde meados da década passada, a começar pelo caso do México. Ressalte-se, em primeiro lugar, que à diferença de todos aqueles casos, na própria região, na Ásia ou na Europa, nenhum dos pacotes concluídos com o Brasil foi ex-post, ou seja, montado para restabelecer uma situação de desequilíbrio grave de balanço de pagamentos em virtude de uma crise financeira de proporções dramáticas. Todos os acordos do Brasil feitos com o Fundo o foram de maneira preventiva, justamente para remediar uma ameaça de desequilíbrio que poderia precipitar uma crise de dimensões mais graves. Em 1998, o Brasil inagurou, assim, a utilização do novo mecanismo de saque criado no âmbito do FMI, a Supplemental Reserve Facility, assim como ele pode dispor, em cada uma das oportunidades, de recursos em montantes tão generosos a ponto de se permitir utilizar a metade, se tanto, de cada uma das linhas de crédito estendidas. 

6.         Dessa forma, mesmo na ausência de um relacionamento político e pessoal mais íntimo entre as lideranças máximas do Brasil e dos EUA, como existia anteriormente, as duas administrações econômicas puderam criar laços de diálogo direto e canais de entendimento que redundaram, agora, num pacote preventivo de dimensões respeitáveis, mesmo em termos da história recente do FMI (recorde-se a propósito que o pacote de apoio ao México tinha muitos recursos de governos nacionais, a começar pelos EUA e que o da Coréia se deu no seguimento de uma ruptura dramática das atividades bancárias e mesmo industriais daquele país). Deve-se portanto evidenciar desse fato – economistas sublinharam o caráter inédito desse “biggest IMF loan in history” – que os EUA reconhecem no Brasil um ator político e econômico de importância especial no cenário regional e mesmo mundial, a partir inclusive da constatação de que a presença de suas empresas em nosso mercado adquiriu uma dimensão tal que justifica o tratamento de certa forma favorável quando comparado a outros parceiros fora do núcleo central da economia capitalista avançada. 

7.         Esse aspecto — o do impacto de eventuais turbulências no Brasil não apenas sobre o setor financeiro dos EUA, mas sobre sua economia real e nas demais economias da região – adquiriu preeminência sobre todas as outras considerações de ordem política ou ideológica, como evidenciado numa certa luta de editoriais e artigos de opinião entre os dois principais jornais nacionais americanos (o Washington Poste o New York Times) e mesmo o tradicionalmente circunspecto Financial Times, por um lado, e o arqui-conservador The Wall Street Journal, recomendando, obtusamente, a maneira dura contra o Brasil. Esse fato deverá contribuir para a melhoria de certa forma “psicológica” que poderá ser observada a partir daqui no tratamento a ser concedido pelos analistas da mesma Wall Street em relação à situação econômica do Brasil, cujos prognósticos pessimistas de algumas semanas atrás foram agraciados com o epíteto de “terrorismo econômico” por representantes da oposição política no Brasil. O elemento destoante, mas por razões independentes do julgamento político da administração americana, tem sido representado pelo Secretário do Tesouro ele mesmo, Paul O’Neill, cujas declarações recolhem a unanimidade dentro e fora dos EUA quanto à inoportunidade econômica e sua inconveniência política, o que tem sido compensado, amplamente, pelas boas relações pessoais mantidas entre o presidente do Banco Central Arminio Fraga e o secretário de relações internacionais do Tesouro John Taylor. 

8.         Não se trata apenas de inserir o Brasil, dadas as suas dimensões próprias e seu impacto no entorno regional, naquela categoria conhecida como “too big to fail”, uma vez que a Rússia era igualmente grande – além de nuclearmente armada – e falhou rotundamente em 1998, mas de reconhecer que a seriedade e competência reconhecidas do atual governo e da diplomacia econômica do Brasil, desde muito, permitiram ao País desfrutar de uma situação invejável de apoio político nas três ou quatro circunstâncias que redundaram em acordos formais de sustentação financeira com os principais organismos econômicos internacionais – compreendidos aqui não apenas o FMI e os bancos multilaterais de desenvolvimento, mas igualmente o BIS e um número apreciável de países membros deste último, a começar pelos próprios EUA. Configura-se, assim, uma situação de credibilidade política e diplomática que pode e deve contribuir para uma transição política interna relativamente mais tranquila entre o terço final de 2002 e o início de 2003, qualquer que seja a orientação política vencedora nas eleições de outubro. 

9.         Passam, assim, a adquirir dimensão menor, no novo cenário político-diplomático que se abre a partir de agora, os elementos associados à especulação financeira, às turbulências econômicas vinculadas às incertezas do quadro eleitoral e ao estado de certa forma lamentável de nossos vizinhos imediatos do Cone Sul. Ao ganhar o Brasil, por repetidas vezes desde o início da atual fase de crises financeiras globais, atestados passados pelo Fundo e pela própria administração americana comprovando nossas “sound economic policies” ao longo de todo o período, configura-se um novo quadro de diálogo no plano internacional que contrasta notavelmente com o ambiente conhecido nos anos 80 – da crise da dívida e da moratória – e no inicio dos 90 – ameaças de hiperinflação e de descontrole monetário. Trata-se de uma janela de oportunidade que deveria ser, ao lado de nossa já tradicionalmente reconhecida capacidade de intelocução diplomática no plano das políticas comerciais, habilmente explorada neste final de administração FHC pelas principais lideranças políticas brasileiras para deixar as bases de uma acrescida presença internacional do Brasil, nos planos regional, hemisférico e multilateral.

10.       Ao assumir agora a presidência pro-tempore do Mercosul e proximamente a co-presidência do processo de negociações hemisféricas no âmbito da Alca, pode o Brasil demonstrar não apenas a solidez de seus fundamentos macroeconômicos, mas também sua capacidade de liderança, seu espírito inovador e sua habilidade diplomática nestas próximas etapas da agenda negociadora externa. A primeira definição de natureza política deve ser dada, justamente, em torno do Mercosul, cuja paralisia ameaça gerar uma crise de credibilidade diplomática cujas conseqüências não podem ainda ser bem avaliadas, mas cujo impacto se exercerá com certeza em detrimento de nossos interesses nos planos da Alca e das negociações UE-Mercosul, ademais de outras esferas. O segundo desafio é representado pelo início da co-presidência brasileiro-americana do processo da Alca, que terá lugar precisamente no momento da transição política para uma nova administração no Brasil. Aqui, o diálogo intenso com o administração americana no curso dos próximos meses é não apenas indicado, como desejável e mesmo necessário.

11.       Caberá, assim, ao Itamaraty, como um dos principais guardiões da continuidade política da presença mundial brasileira ao longo do tempo, mobilizar seus recursos intelectuais – já que financeiros ou econômicos não os há – para preservar o capital de credibilidade política e diplomática amealhado ao longo dos últimos oito ou nove anos de presença continuada de algumas personalidades da administração FHC à cabeça do País, a começar pelo próprio presidente, mas também pelo ministro Pedro Malan. A próxima administração, nos palácios do Planalto e do Itamaraty, deverá conduzir a bom termo, se tal for possível, complexas negociações regionais e multilaterais que vão determinar, em certa medida, aspectos decisivos de nossa inserção internacional nas próximas décadas, assim como alguns dos elementos constitutivos das próprias características da economia nacional no futuro de médio prazo. 

12.       À administração que sai conviria deixar um roteiro de bordo o mais possível completo para um bom itinerário por parte do próximo governo. Tranquilizado o cenário na frente financeira, graças ao recente acordo com o Fundo Monetário, pode o Itamaraty assegurar que a presença do Brasil nos cenários regional e mundial continue a gozar do prestígio externo logrado pelo titular da economia e pelo próprio presidente da República.

Washington, 932: 9 de agosto de 2002

Comparacoes entre as diplomacias de Geisel e de FHC - Paulo Roberto de Almeida

breves considerações sobre rupturas e continuidades

Paulo Roberto de Almeida
Depoimento prestado em 11 de Julho de 2002 para
Grupo de alunos da Faculdade Casper Líbero ,
na qualidade de colaborador intelectual do projeto de livro-reportagem:
“O Brasil diante das escolhas e os desafios da Multipolarização:
rupturas e continuidades do governo Geisel (1974-1979)”
Divulgado anteriormente no blog Diplomatizzando (22/10/2017; link: https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/10/politica-externa-do-governo-geisel.html)

Temática geral da obra: a influência da política externa desenvolvida pelo presidente Ernesto Geisel, nas relações regionais e multilaterais que o Brasil mantém hoje.

Perguntas formuladas a Paulo Roberto de Almeida (PRA): 

1.   Podemos fazer uma relação entre a política externa desenvolvida por Geisel (diversificação de parcerias bilaterais, utilização da diplomacia presidencial para obtenção de novos investimentos e parceiros, dentre outras características) com a política de diversificação de parcerias bilaterais realizada hoje com o atual governo?

PRA:Existe uma certa convergência de orientações políticas, de ênfases bem como de métodos entre a política externa praticada durante o Governo Geisel (1975-1979) e aquela seguida durante as duas administrações FHC (1995-2002), muito embora elas pertençam a dois universos políticos distintos e respondam a preocupações diferentes quanto aos objetivos finais.
Comecemos pelas convergências. Em ambos os casos, houve forte ênfase na diplomacia presidencial, assim como no objetivo da diversificação de parcerias, na construção de certas alianças privilegiadas e na busca de um diálogo de qualidade com interlocutores importantes do cenário internacional, tanto no horizonte tradicional das potências ocidentais, quanto no cenário menos comum de parceiros do mundo dos países em desenvolvimento. Em ambos os casos, igualmente, se buscou valorizar os diversos planos de trabalho diplomático, tanto o cenário regional, estrito senso, como o âmbito dos esquemas plurilaterais e, sobretudo, o sistema multilateral. Existe convergência similar na busca de diálogo privilegiado com as grandes potências econômicas (EUA, Alemanha, Japão, uma tríade dominante no cenário financeiro), assim como na busca de parcerias tecnológicas e industriais que capacitassem o Brasil a elevar-se na escala de desenvolvimento tecnológico e e de equipamento militar. 
No plano das divergências contudo, os elementos seguintes devem ser destacados. As condições econômicas, políticas, geopolíticas e de ordem doméstica nas quais foram exercidas as políticas externas respectivas de Geisel e de FHC foram sensivelmente diferentes, com ênfase nas condições domésticas, mas também no cenário internacional. Neste último plano, com efeito, vivia-se então, ainda, sob o impacto da Guerra Fria, muito embora a Administração Nixon (1968-1974) e seu Conselheiro de Segurança Nacional e depois Secretário de Estado, Henry Kissinger, tivessem se esforçado para ampliar os espaços de détente, com diversos acordos de redução de armas estratégicas negociados (SALT I, ABM), início das negociações para a conclusão da guerra do Vietnã (e do Camboja) e iniciativas nos planos multilateral e regional (confidence-building measuresna Europa), por exemplo). Mas a União Soviética ainda mostrava uma face agressiva no cenário internacional, com um forte programa de armamentismo nuclear (mísseis, equipamentos convencionais e projeção naval) e um apoio incontido a diversos regimes “progressistas” em diversas partes do mundo em desenvolvimento (África, sobretudo, mas também América Latina e Ásia), ademais da preservação da chamada “Doutrina Brejnev” que “autorizava” intervenções unilaterais em países de sua órbita em caso de “ameaças” ao poder socialista (casos da Tchecoslováquia, Polônia, RDA). 
No plano interno, mais espetacularmente, o País vivia uma situação ditatorial de repressão a grupos de oposição, censura prévia à imprensa e sentimentos anticomunistas fortemente disseminados em todo o establishment militar. O alinhamento ideológico com as teses mais conservadoras em política externa comandava ausência quase completa (ou apenas formais) de relações diplomáticas com países comunistas como China e Cuba e fortes restrições aos demais da órbita soviética. O Governo Geisel, precisamente, inovou tremendamente ao “normalizar” relações diplomáticas com vários desses países (como o reconhecimento da China comunista e de Angola “marxista”, mas não de Cuba), mesmo ao preço de fortes tensões com determinadas cúpulas do sistema militar (o próprio ministro do Exército, Silvio Frota, era virulentamente contrário a tal tipo de política). O chanceler escolhido por Geisel, Antonio Francisco Azeredo da Silveira, vinha de uma tradição “desenvolvimentista” e nacionalista, no Itamaraty, além de ter assistido a diversos episódios de engajamento do Brasil em esforços de cooperação com outros países em desenvolvimento no quadro do Grupo dos 77, da UNCTAD, dos movimentos em prol da descolonização e do rompimento da dependência econômica desses países em relação às potências ocidentais (UNCTAD). Ele deu início a uma forte reorientação da política externa em direção do chamado “Terceiro Mundo” e das teses pregando o estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional nos foros multilaterais. 
O próprio Geisel envolveu-se diretamente na formulação e execução dessa nova diplomacia desenvolvimentista, assim como buscou parcerias privilegiadas entre os principais parceiros avançados, com o objetivo de obter financiamento e tecnologia (inclusive nuclear) para conformar o projeto do “Brasil grande potência” (política mais praticada do que verdadeiramente afirmada). Tendo encontrado fortes resistências nos EUA (que se preocupavam com a proliferação nuclear), Geisel busca uma aliança privilegiada com a Alemanha, de que resulta o acordo de cooperação nuclear (supostamente de orientação basicamente energética e com características apenas “civis”), implementado apenas parcialmente e a custos altíssimos para a sociedade. 
O cenário externo não foi contudo favorável ao desenvolvimento dessas estratégias de atuação formuladas conjuntamente por Geisel e “Silveirinha”. Depois do primeiro choque do petróleo em 1974, o mundo viveu o recrudescimento da pressão inflacionária e o aumento das taxas de juros, até que o segundo choque do petróleo, em 1979, consumasse um cenário externo de “estagflação”. No plano regional, igualmente, os conflitos com a Argentina em torno do aproveitamento dos recursos hídricos da bacia do Paraná (depois do acordo concluído com o Paraguai, em 1975, para a construção de uma grande barragem hidroelétrica nas proximidades da fronteira tripartite de Iguaçu) recrudesceram ao ponto de se temer a ruptura em um conflito aberto, num cenário geopolítico já caracterizado pela competição militar entre os dois países e pela possível pressão para a aquisição da arma nuclear pelos establishments militares respectivos. 
Na era FHC, esse cenário se encontra radicalmente transformado: fim do socialismo e da bipolaridade, pacificação, cooperação e integração nas relações com a Argentina e mudanças na matriz energética do País, com a diminuição da dependência em relação ao Oriente Médio. Mas, não resta dúvida que a orientação em prol da diversificação de parcerias, sobretudo no plano econômico e tecnológico, aproxima a administração atual da era Geisel, inclusive em seus aspectos eventualmente negativos, como seria a confiança exagerada no crescimento econômico do País e a dependência ampliada em relação aos capitais de empréstimo e ao financiamento externo de modo geral. 
Também se repete a forte política de atração de investimentos diretos externos, mas neste caso cabe destacar a forte ênfase dada no Governo Geisel a grandes projetos nacionais (e sobretudo estatais) de infraestrutura e indústrias básicas, ao passo que FHC deu continuidade ao processo iniciado por Collor de privatizações e de desengajamento do estado das atividades diretamente produtivas na esfera econômica. Este encontrou um País basicamente industrializado (daí ter caracterizado o Brasil não como um país “subdesenvolvido”, mas como um país “injusto”), processo que tinha sido completado, justamente, na administração Geisel. Ambos deixaram dívidas interna e externa maiores do que as encontraram ao iniciar seus governos respectivos, muito embora tenham procurado controlar o processo inflacionário interno (com mais sucesso no caso FHC, mas descontando-se a pressão inflacionária representada pelo petróleo na era Geisel). 
Em todo caso, há talvez semelhanças de forma, como de objetivos, entre as duas fases do Brasil contemporâneo, mas com cenários interno e externo bastante diverso e portanto com ênfases especiais no plano diplomático divergentes no que respeita objetivos básicos da construção do Brasil enquanto nação inserida no contexto mundial: Geisel gostaria de ver um Brasil menos dependente do exterior, totalmente autônomo tecnologicamente e capacitado militarmente, enquanto FHC trabalha basicamente nos quadros da interdependência, da globalização (que ele aceita como um dado da realidade) e da regionalização (conceitos de América do Sul e construção do Mercosul) e não tem a pretensão de construir uma potência militar, e sim uma nação econômica e socialmente desenvolvida (ou pelo menos mais “justa”), com aceitação das realidades geopolíticas atuais. 

2.   Poderíamos dizer que o governo atual retomou esta política de diversificação de parcerias e a valorização da diplomacia presidencial exercida no governo Geisel (que representou o fim do alinhamento do governo militar aos EUA) depois de uma política de “alinhamento” aos EUA exercida também (de certa forma) pelo presidente Fernando Collor? Podemos dizer, então, que entre o governo Geisel e o governo FHC tivemos uma política externa “morna” sem grande valorização da diplomacia brasileira?

PRA:FHC praticou uma diplomacia presidencial em toda a sua extensão, inclusive porque não tinha os constrangimentos de Geisel (direitos humanos, ditadura, repressão política etc.) e, de certa forma, ele foi o seu próprio “chanceler”, ao passo que o papel de Silveirinha na gestão Geisel foi bem mais destacado do que o de Lampreia na era FHC. A diversificação de parcerias era um método, não um fim em si mesmo, ainda que a busca de novos parceiros para compensar a presença predominante dos EUA tenha figurado como objetivo importante na era Geisel (que já tinha assistido a uma relativa deterioração das relações com os EUA na gestão anterior, de Costa e Silva e Magalhães Pinto). O alinhamento com os EUA, na era militar, só existiu, de verdade, na primeira gestão dos generais, sob Castello Branco, por uma simples questão de “reconhecimento” pelo apoio dado na estabilização do novo regime e sua situação econômico-financeira. 
Não se pode dizer, verdadeiramente, que tenha havido “alinhamento” com os EUA na gestão Collor, mas sim o rompimento de certos “tabus” que dificultavam as relações bilaterais, como na questão da informática, da proliferação nuclear e missilística, das patentes, da política comercial, do alegado “terceiro-mundismo” da política externa (e suas repercussões em termos de dívida externa, relações com os banqueiros privados e com o FMI, negociações comerciais multilaterais da Rodada Uruguai) etc. Várias dessas “inovações” diplomáticas não representavam “alinhamento” estrito senso, mas a busca de uma modernização na forma de inserção do Brasil na economia internacional, como a redução tarifária e a adoção de um novo código de propriedade industrial reconhecendo patentes farmacêuticas, por exemplo. A chamada “política nuclear independente” não trouxe nem independência nem benefícios econômicos ou tecnológicos ao País, daí a decisão acertada (apoiada pelos EUA) de renunciar às armas de destruição em massa (possibilidade aliás negada pela Constituição) e de aderir aos principais instrumentos internacionais vinculantes nessa matéria. 
De toda forma, em nenhuma das duas épocas, a política externa foi “morna” ou secundária, para os interesses internos e externos do Brasil. Em ambas, ela foi fundamental, estratégica mesma, para a consecução de determinados objetivos que poderiam ser, genericamente, classificados sob a rubrica “desenvolvimentista”.

3.   No que se refere a parcerias estratégicas que visavam fortalecer o projeto nacional do governo Geisel, poderíamos afirmar que ela foi retomada em algum momento posterior que não o do governo Fernando Henrique que é criticado por não ter um projeto nacional? Quais seriam os principais objetivos de uma política externa como a desenvolvida pelo atual governo? Que benefícios ela traz para o país?

PRA:O “projeto nacional” do Governo Geisel foi o do fortalecimento da base econômico-industrial do País, como grande ênfase na capacitação tecnológica nacional e na autonomia em matéria de insumos básicos (substituição de importações). O “projeto nacional” do governo FHC, mais praticado do que teorizado, é o da plena inserção do Brasil nas correntes dinâmicas da economia internacional, objetivo de certa forma oposto ao buscado por Geisel, mas não menos legítimo, uma vez que ambos buscavam fortalecer o País para competir no cenário externo. A visão “autárquica” de Geisel correspondia, mais bem, ao tipo de educação militar que ele recebeu (inclusive com fortes influências de um tipo de economia “nazista”, aquela que, nos anos 30 valorizava a “plena autonomia” do País em situação de ruptura do abastecimento externo), ao passo que a visão bem mais “interdependente” de FHC reflete sua educação cosmopolita e fortemente engajada na cooperação internacional, sem qualquer receio de “dependências nocivas” para o Brasil. São duas mentalidades opostas, mas ambas fortemente comprometidas com a plena valorização da capacitação tecnológica nacional (embora por métodos distintos).
Os benefícios supostos ou reais da atual política externa são os da plena valorização dessa inserção econômica internacional e, sobretudo, o caráter estratégico atribuído ao processo de integração regional e à cooperação com a Argentina, ao passo que Geisel não tinha nenhuma intenção de renunciar à “soberania” brasileira no quadro da integração regional (inclusive por desconfiar da Argentina enquanto “competidora estratégica). Essa opção tem um enorme custo para o País, uma vez que a enorme autonomia praticada (na verdade a busca da autarquia) não é economicamente racional, nem atende ao sistema produtivo como deveria. O Governo Figueiredo tentou retomar, ou continuar, o projeto de Geisel, mas a situação de deterioração financeira e de crise econômica então vivida, a forte pressão política interna em favor da redemocratização, bem como a incapacidade gerencial e a falta de gosto do presidente pela diplomacia (como pelo simples exercício da autoridade presidencial) inviabilizaram completamente tal continuidade. A era Sarney, ainda que inovadora em certos aspectos (como na integração com a Argentina) foi basicamente de transição e de má administração econômica, dificultando a continuidade desse tipo de projeto (que aliás não contava mais com condições financeiras ou externas para ser implementado). Faltou-lhe, também, um chanceler com visão estratégica, ainda que a máquina do Itamaraty tenha funcionado de maneira relativamente eficiente.
De todo modo, projetos econômicos não são implementados segundo a vontade dos dirigentes, mas também em função de um contexto interno e externo favoráveis. Ora, apenas nos anos 90, com o sucesso da estabilização no Brasil e o degelo da Guerra Fria, pode o Brasil retomar um projeto nacional dotado de certa continuidade. Ainda que a diplomacia da era FHC não tenha tido nenhum slogan (como a diplomacia “ecumênica” e o “pragmatismo responsável” da era militar), ela teve um sentido, uma clara direção e sobretudo uma implementação fortemente embasada no interesse nacional (ainda que levando em conta nossas limitações intrínsecas em termos de poder financeiro). 

4.   Dentro de uma análise mais histórica, a diplomacia brasileira pode se considerada uma diplomacia voltada para atender os interesses econômicos do país? 

PRA:Certamente que sim, desde a era Vargas, basicamente, a política externa está organizada para atender aos objetivos nacionais de desenvolvimento econômico. Ela é uma diplomacia “instrumental”, “oportunista”, ambos os conceitos no bom sentido da palavra, voltada para o aproveitamento de todas as chances de promoção dos interesses econômicos do País, seja no plano comercial, seja no tecnológico, seja ainda no financeiro. 

5.   O governo Geisel, desta forma, representou um marco para a política externa do país quando atribui a política externa um caráter econômico?

PRA:Nisso ele não inovou essencialmente no que vinha sendo praticado desde os anos 50 e no que já vinha sendo feito na administração anterior, de Costa e Silva e Magalhães Pinto (este um mero executor do que o Itamaraty formulava). Mas, certamente que a forte personalidade do presidente Geisel, seu envolvimento direto com os dossiê de política externa, seu conhecimento preciso e discussão minuciosa da agenda externa, em muito contribuíram para imprimir essa marca de forte ativismo presidencial no plano da política externa. 

6.   E a política externa do governo atual, tem este caráter?

PRA:Provavelmente sim, ainda que com características particulares diferentes, como ressaltado nos parágrafos anteriores, especialmente, na questão dos cenários diferentes em cada época. Mas, se Geisel foi essencialmente “econômico” e “tecnológico”, FHC não se deixou prender por esse tipo de “restrição” setorial, inclusive porque ele nunca enfrentou os fortes constrangimentos políticos de seu antecessor militar, um autocrata administrando uma ditadura repressiva. FHC voltou-se para o debate dos grandes temas políticos e sociais do mundo contemporâneo, envolvendo-se diretamente no diálogo com dirigentes do G-7 na discussão dos problemas sociais acarretados pela globalização e pela volatilidade financeira, nas assimetrias da falta de desenvolvimento em várias regiões periféricas, no desenho (pelo menos tentativo) de uma “nova ordem política internacional”, com a forte expressão do desejo do Brasil de ocupar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, candidatura impensável na era militar. Sobretudo, a decisão de romper o “tabu” da autonomia tecnológica no terreno nuclear e de assinar o TNP representa uma pequena (ou talvez grande) revolução nos próprios fundamentos da diplomacia brasileira. Essa agenda ultrapassa a mera questão do desenvolvimento econômico do País, mas certamente ela continua a ter a vocação do desenvolvimento no centro das preocupações nacionais. 

7.   Apesar do Mercosul ter sido formado durante o governo Collor, ele não continua sendo um bloco inativo? O Brasil não continua atuando individualmente sem o respaldo do mesmo, principalmente no momento atual de crise da Argentina? 

PRA:O Mercosul NÃO foi formado no governo Collor: ele deriva de decisões tomadas na administração Sarney, ainda que no âmbito estritamente bilateral, Brasil-Argentina. O que Collor e Menem fizeram foi mudar o caráter (de dirigido para livre-cambista) e acelerar o ritmo da desgravação tarifária bilateral em direção de um mercado comum (decisão que já tinha sido tomada em 1988, mediante o Tratado de Integração) e aceitando a incorporação de novos membros nesse processo (que diga-se de passagem não tinham sido excluídos anteriormente, mas que tinham preferido, no caso do Uruguai, ficar à margem das obrigações jurídicas de uma integração plena). Ele tampouco é um bloco inativo, e seus problemas atuais derivam de crises individuais dos países membros, que foram levados a adotar, voluntária (no caso do ministro Cavallo, na Argentina) ou involuntariamente, medidas anti-integracionistas, não de problemas estruturais ou institucionais da própria arquitetura integracionista. 
O Brasil é o país que mais tem cumprido o espírito e a letra dos objetivos integracionistas, mas tem consciência que, por ser o país mais forte e economicamente mais poderoso em termos de PIB, população, indústria, comércio exterior, lhe cabe uma responsabilidade adicional na construção e manutenção do edifício integracionista.

8.   A cada momento que passa a realização de parcerias como a Alca, o Mercosul e, consequentemente, Mercosul x UE não ficam mais distantes devido aos subsídios e o protecionismo apresentado pelos países que representam estes blocos?

PRA:Não há esquemas excludentes em termos de liberalização de comércio e todos esses blocos podem ser inter-complementares nos processos de abertura comercial e de aumento da interdependência econômica. Não resta dúvida, porém, que os processos recentes de recrudescimento do protecionismo e das práticas anti-liberalizadoras (como o subvencionismo extremado, no plano interno e externo, em relação a determinadas atividades) pode atuar negativamente na consecução dos processo de liberalização comercial, quer no plano regional ou hemisfério, quer no âmbito multilateral ou ainda na esfera inter-regional (UE-Mercosul). São percalços que devem ser superados para atender aos objetivos proclamados pelos líderes desses blocos. 

9.   Quais são as perspectivas que o País tem em termos de política externa com as próximas eleições? 

PRA:Basicamente as mesmas da atual administração: continuar os processos negociadores em curso (Mercosul, América do Sul, Alca, OMC e UE, além de outros esquemas bilaterais ou plurilaterais), aumentar nossa participação no comércio  internacional e, de forma inédita talvez, diminuir a dependência financeira externa, mas essa não é uma tarefa basicamente ou essencialmente diplomática., uma vez que ela depende, sobretudo, de condições internas (aumento da poupança doméstica, continuidade do esforço de superávit fiscal, fortalecimento do processo de estabilização, melhoria da capacitação tecnológica nacional), que são administradas pela área econômica, não pelo setor diplomático. 

10.De que forma a estabilidade econômica conseguida com o atual governo influencia ou influenciou nas relações externas mantidas pelo Brasil?

PRA:Foi de uma enorme “utilidade” na apresentação externa do País, mas sobretudo nos livra de certos constrangimentos externos a que estávamos antes expostos: alta inflação, corrosão do instrumento monetário, ausência de orçamento realista etc. Pode-se entretanto observar que a maior parte da administração FHC teve de conviver com fortes crises financeiras externas (começando pelo México, em 1994-95, passando pela Ásia, em 1997-98, atingindo a Rússia, em 1998, e chegando ao próprio Brasil nesse último ano), o que obrigou o País a retomar o caminho dos acordos com o FMI, para a sustentação financeira externa de nosso posição de balanço de pagamentos. 

11.Como embaixador nos EUA, teria como nos informar de que forma o Brasil é visto por este país e em que escala a formação da ALCA interessa aos americanos?

PRA:Não sou “embaixador” nos EUA, mas ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington. O Brasil não é propriamente “visto” nos EUA, a não ser pela pequena fração da comunidade oficial (diplomatas, funcionários da área de segurança), acadêmica (scholars especializados dos centros de pesquisa voltados para a região, professores “brasilianistas) e, sobretudo, da área econômica (investidores diretos, analistas financeiros, banqueiros), que tem uma visão muito realista, por vezes algo imprecisa, das realidades do País. O conjunto da população ignora solenemente não só o Brasil como o resto do mundo: os americanos são profundamente ignorantes em relação ao que se passa no resto do mundo, este é um dado da realidade e do panorama social dos EUA. Mas, obviamente, eles entretêm uma “visão” do Brasil, como a de um país tropical, de natureza luxuriante, com um povo simpático e jogador de um esporte estranho conhecido como “soccer”, com grandes belezas naturais (Amazônia, Rio de Janeiro, Bahia, Pantanal), mas também com imensas desigualdades sociais e miséria amplamente disseminada, o que não está muito distante da realidade. Salvo problemas graves, o Brasil comparece muito pouco nas informações correntes disponíveis ao americano comum (ainda que os jornais de negócios tenham bastante matéria sobre o Brasil, sobretudo como “mercado emergente”). 
Em relação à Alca, os EUA estão tão divididos quanto o Brasil nessa matéria: políticos e sindicatos preocupados, ecologistas e anti-globalizadores opostos, economistas favoráveis, acadêmicos céticos quanto às suas chances reais, industriais divididos quanto a suas vantagens e desvantagens (dependendo do setor), e diplomatas moderadamente favoráveis ao avanço do processo negociador, por perceberem as vantagens de longo prazo ou de caráter estrutural que adviriam desse imenso bloco liberalizador hemisférico. 
De modo não surpreendente, as oposições localizadas coincidem com as ameaças percebidas ou supostas derivadas do processo de liberalização: assim como os nossos agricultores estão confiantes na capacidade de competição do Brasil na área dos produtos primários, os americanos temem a concorrência dos produtos brasileiros. Assim como os industriais e as empresas de alta tecnologia (inclusive na área de serviços e de lazer) dos EUA desejam ardentemente a Alca, os nossos industriais de eletrônicos e de bens de capital temem seu impacto em seus setores respectivos, por razões óbvias de diferenças de competitividade, de “custo Brasil” etc. Ou seja, o panorama é relativamente similar em ambos os países, com uma grande maioria indefinida ou incerta quanto às possibilidades reais de implantação do esquema liberalizador, tão complexo é o processo negociador. 
Mas, a Alca é basicamente um projeto americano e atende a seus interesses fundamentais. Isso não quer dizer, contudo, que ela seja totalmente negativa para o Brasil ou que sua implantação redundará em “perdas” absolutas para o País. Provavelmente seus resultados de médio e longo prazo serão positivos para o Brasil em termos de comércio, investimentos e finanças, ainda que o impacto de curto prazo possa ser significativo (mas seu período de implantação pode ser delongado, pois tudo depende de negociação). 

12.Na sua opinião, quais são os principais problemas apresentados pela diplomacia brasileira no contexto em que vivemos?

PRA:Não temos propriamente problemas “da” diplomacia brasileira, mas talvez problemas “instrumentais”: número relativamente pequenos de diplomatas para todas as frentes de negociação, recursos orçamentários extremamente reduzidos para viagens, estudos, promoção comercial, contratação de consultorias técnicas, ampliação da rede consular externa, reduzida capacidade das demais agências governamentais brasileiras em “abastecer” os diplomatas de “inputs” adequados a certas negociações, enfim, problemas típicos de um país em desenvolvimento, com um funcionamento deficiente das instituições públicas e uma baixa interação com o mundo. 
Creio pessoalmente que o Itamaraty, ou os seus diplomatas, deveriam abrir-se mais às interações com a sociedade civil, dialogar mais intensamente no plano interno e externo e participar mais abertamente dos debates públicos em temas de relações internacionais e de política externa. Os constrangimentos criados pela existência de um instrumento de controle dessas manifestações públicas, mais vulgarmente conhecido como “lei da mordaça”, certamente não ajudam nessa abertura ampliada do Itamaraty à sociedade civil. 

13.Para finalizar, o que explica o Brasil que é considerado um gigante em extensão e capacidade econômica, língua única, estabilidade, falta de conflitos e uma diplomacia tão elogiada ter uma participação tão pequena no comércio mundial (de cerca de 0,8% atualmente, não é isso?)

PRA:A participação do Brasil no comércio  internacional gira efetivamente em torno de 0,8 a 1% dos intercâmbios globais, o que é efetivamente pouco se pensarmos na dimensão global da economia (8º ou 10º PIB no mundo), mas relativamente compatível com o baixo grau de abertura econômica externa (coeficiente de 10% do PIB aproximadamente). Tal situação deriva de fatores histórico-estruturais que são muito lentos a serem transformados: fechamento da política econômica durante a fase de industrialização e o enorme grau de nacionalização do aparelho produtivo construído durante a fase de desenvolvimento econômico “autárquico” (era Vargas e regime militar), ademais de uma desconfiança “natural” do País em relação aos processos de liberalização comercial e de uma especialização exportadora em setores caracterizados por baixo dinamismo e elasticidade-renda (commodities agrícolas, por exemplo, onde estão nossas grandes vantagens comparativas). Mas, somos, em contrapartida, um grande “tomador” de recursos externos, seja sob a forma de investimentos direitos (voluntários), seja sob a forma (obrigada) de capitais de empréstimo e financiamentos diversos (em virtude de nosso crônico desequilíbrio das transações correntes e da necessidade de importar capitais para compensar essa defasagem). 
Existem portanto diversos fatores que explicam essa baixa participação no comércio internacional, mas os mais importantes talvez sejam, não os “estruturais”, mas aqueles de ordem psicológica: somos introvertidos, pouco propensos a nos abrir ao mundo e temerosos de uma maior exposição (e fragilidade) externa, provavelmente por falta de confiança em nós mesmos e por medo de não poder (ou não sabermos) competir vantajosamente com a concorrência externa. Pouco a pouco o Brasil vai superando essa timidez, como se vê na nova confiança adquirida em termos de competitividade agrícola, nos esportes e na música, e gradualmente nos produtos de tecnologia mais avançada, como aviões ou mesmo manufaturados industriais. 
O Brasil tem todas as condições de vencer esses constrangimentos e de se inserir mais ativamente nos circuitos da globalização e da economia internacional. Ele certamente o fará, com a ajuda de uma diplomacia competente e autoconfiante.

Washington, 924: 11 de julho de 2002

Paulo Roberto de Almeidaé doutor em Ciências Sociais, mestre em Planejamento Econômico e diplomata de carreira desde 1977. Publicou os seguintes livros: Mercosul: fundamentos e perspectivas(LTr, 1998), Relações internacionais e Política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização (UFRGS, 1998), O Brasil e o multilateralismo econômico(Livraria do Advogado, 1999); Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud (Paris: L’Harmattan, 2000); Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império(Senac, 2001); Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas(Paz e Terra, 2002); Une Histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil Contemporain(Paris: L’Harmattan, 2002). Website: www.pralmeida.org.


Renda basica: Robin Hood as avessas - Felipe Salto (2014)

Renda básica: Robin Hood às avessas

Felipe Salto
Folha de S. Paulo, 19/08/2014

É preciso considerar que a escassez de recursos é uma realidade concreta e exige seletividade nas transferências sociais
O mítico herói inglês, que tirava dos ricos para dar aos pobres, ficaria boquiaberto diante da tese da renda básica de cidadania (ou renda mínima), defendida há anos pelo senador Eduardo Suplicy (PT-SP).
A renda básica é uma transferência mensal a ser paga pelo Estado a todos os cidadãos --ricos e pobres. Na prática, a adoção de tal política, no Brasil, seria um retrocesso em relação aos consagrados programas de transferência de renda com condicionalidades --Bolsa Escola (no governo Fernando Henrique Cardoso) e Bolsa Família (no governo Luiz Inácio Lula da Silva).
No Brasil, onde a desigualdade é elevada, a saída é óbvia e as evidências empíricas são muito claras: direcionar as políticas públicas àqueles que delas mais necessitam.
Se o governo do PT tivesse seguido a lei nº 10.835, de 2004, a chamada "renda básica de cidadania" já deveria estar sendo paga a todos os brasileiros, sem distinção socioeconômica. O benefício, porém, nunca foi concretizado.
Ainda que a renda mínima seja defendida por economistas importantes como o belga Philippe Van Parijs, à luz do argumento de que o caráter universal do programa ampliaria a liberdade pessoal, é preciso considerar que a escassez de recursos é uma realidade concreta e exige seletividade nas transferências sociais.
A lei --proposta por Suplicy, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Lula-- promete pagar a todos os cidadãos o mesmo que for pago aos brasileiros mais pobres. É justo? Não.
Seria um grave erro desperdiçar recursos do Estado, que são arrecadados da própria sociedade, quando ainda convivemos com preocupante contingente de brasileiros e de brasileiras sem o mínimo necessário para sobreviver.
Se, hoje, conseguimos identificar a parcela mais pobre da população, com evidente sucesso, e transferir a estas pessoas montantes de recursos importantes, que os ajudam a sair da situação de pobreza extrema, por que defender a ideia de jogar recursos para o alto?
Uma conta simples mostra o grau de desatino da tese. Há 200 milhões de habitantes no Brasil. Se fixarmos um valor de R$ 100 ao mês por habitante (quantia relativamente baixa, quando consideramos que a lei preconiza que o recurso transferido seja suficiente para custear as despesas de saúde, educação e alimentação), o montante necessário para financiar a empreitada totalizaria R$ 240 bilhões ao ano!
Isso corresponderia a 4,6% do PIB, ou a dez vezes o orçamento anual do Bolsa Família. Ainda que a ideia fosse acatada pelo governo, caberia perguntar: de onde sairiam os recursos? De mais impostos, ou de menos gastos sociais?
A classe A representa, hoje, 2% da população brasileira --ou cerca de 4 milhões de pessoas. Isto é, dos R$ 240 bilhões, R$ 4,8 bilhões seriam destinados aos mais ricos da sociedade, que recebem acima de R$ 13,8 mil mensais. Essa pequena parcela da sociedade já detém 17% de toda a massa de renda do país e seria ainda mais beneficiada.
Lição número um da economia: a utilização dos recursos (privados e públicos) deve buscar o melhor resultado possível e a melhor relação de custo e benefício.
Criar um benefício monetário igual para todos é o mesmo que jogar dinheiro pela janela. O correto é adotar políticas seletivas em favor dos mais pobres --isto é, seguir a tendência do Bolsa Escola e do Bolsa Família. Além disso, evidentemente, é preciso criar novas políticas para atender à demanda da sociedade por mais e melhores serviços públicos e garantir ambiente propício à geração de maior número de empregos com bons salários.
A renda básica de cidadania pode partir da cabeça de gente bem-intencionada. Mas nunca é demais lembrar que, de boas intenções, o inferno está cheio.

FELIPE SALTO, 27, é economista especializado em finanças públicas da Tendências Consultoria Integrada e professor da FGV/EESP
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br - www.folha.com/tendencias