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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

A agenda internacional e a diplomacia brasileira - Paulo Roberto de Almeida

Perguntas sobre a agenda internacional e sobre a diplomacia brasileira

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: respostas a questões apresentadas; finalidade: complemento de informação]


Tendo feito palestra e respondido a algumas questões apresentadas no decorrer da palestra efetuada em 23 de abril de 2020, para alunos do curso de graduação em Relações Internacionais da Universidade Salvador (BA), a convite do coordenador do NERI, prof. Felippe Silva Ramos, fiquei de responder às questões complementares apresentadas pela audiência (online, via Instagram), que não puderam ser abordadas no limitado tempo devotado ao evento. Os interessados em ler as notas que formulei previamente à palestra – “Pandemia global e pandemia nacional: um futuro pior que o passado” – podem acessar o arquivo correspondente disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/42836086/Pandemia_global_e_pandemia_nacional_um_futuro_pior_que_o_passado_2020_).
Passo diretamente às questões que me foram submetidas pelos organizadores. 

1. Qual o papel dos entes subnacionais nesta crise diplomática e PE? 
PRA: Cada país possui suas estruturas de governança adaptadas ao seu regime político, à sua estrutura constitucional, aos arranjos específicos de seu sistema político e também em função de sua evolução histórica. O Brasil saiu de uma monarquia unitária, fortemente centralizada – daí algumas revoltas regionais, no Nordeste, no Norte e no Sul –, durante mais de sessenta anos, para uma república teoricamente descentralizada, em todo caso funcionando sob um regime dito federativo. De fato, os Estados Unidos do Brasil, tal como constituídos sob a Carta de 1891, eram teoricamente uma federação, e sua constituição seguiu, mas apenas superficialmente, o modelo americano. Mas é evidente que a base real do país não refletia a “liberdade” concedida aos estados, dada a forte presença do Estado federal, inclusive com intervenções nos Estados. Depois da Revolução de 1930, se assiste a uma nova concentração do poder central, não sem nítido desconforto de alguns estados, a exemplo da chamada “revolução constitucionalista” de São Paulo, em 1932. Durante toda a “era Vargas”, o país funcionou sob regime fortemente centralizado, com nova abertura sob a Constituição de 1946. O regime militar (1964-1985) novamente centralizou estruturas e poderes, sobretudo no plano fiscal e das políticas setoriais, com esquemas tributários que perduraram na fase seguinte, a da redemocratização, mas com alguns arranjos específicos estabelecidos a partir da nova Constituição, a de 1988. Novamente, os entes subnacionais, nos dois níveis inferiores da União, adquirem certa autonomia, mas a concentração fiscal ainda permanece forte, muito embora a dinâmica política tenha levada a nova desagregação das políticas nacionais na esfera tributária (daí a guerra fiscal entre estados e municípios, nem sempre enquadrada nos princípios gerais de administração fiscal). 
Essa indefinição entre competências respectivas dos três níveis da federação se manifesta igualmente na área da política externa, a mais forte razão, na medida em que se trata de área – como a defesa nacional e a justiça – que requer unidade de concepção e de ação, assim como homogeneidade de representação. Ainda assim, estados e munícipios caminharam paulatinamente para uma maior latitude de ação, alguns até assinando acordos de cooperação com entidades congêneres ou países estrangeiros, e grande parte deles até instituindo secretarias ou assessorias permanentes de relações internacionais. Na condução normal dos assuntos “externos” de cada uma dessas unidades da federação, já se nota certa descoordenação entre elas, com as unidades subnacionais tentando impulsionar iniciativas e acordos de cooperação externa, com as limitações constitucionais, legais ou práticas impostas pela União, que teme perder seu monopólio ou controle sobre essas interfaces externas.
No contexto da atual pandemia, cabe registrar um aumento da descoordenação e de potenciais conflitos e contradições entre essas unidades, o que parece normal, uma vez que cada um dos dirigentes procura resolver os desafios com todos os meios colocados (ou não) à sua disposição, algumas vezes até em oposição a normas rígidas estabelecidas no plano nacional (como licenças de importação, normas e padrões de bens e serviços, questões de natureza tributária e um sem número de outros dispositivos nem sempre claros, num relacionamento nem sempre cooperativo entre elas). Essa situação reflete, na verdade, o estado de confusão que ainda reina no plano internacional, uma vez que a OMS é incapaz de estabelecer – inclusive por falta de meios, de capacidade e talvez de autoridade legítima – padrões comuns aos países (e eles são muito diferentes entre si, e no confronto com a pandemia) ou esquemas cooperativos entre eles. Essa falta de coordenação é lamentável, pois expressa justamente a ausência de uma autoridade reconhecida de governança, e abre espaço para os comportamentos predatórios do passado, como as políticas de “beggar-thy-neighbor” dos anos 1930, ou seja, empurre a crise para o seu vizinho. 
O fato é que vai ser muito difícil estabelecer um amplo espírito cooperativo seja internamente em países de estrutura federativa, seja externamente entre os países, numa conjuntura de escassez de meios e de incertezas quanto à dimensão dos desafios enfrentados. 

2. Ricupero durante sua fala na Academia versa sobre a falta de esperança do brasileiro após as frustrações/derrotas durante a história. Tendo em vista o declínio da diplomacia brasileira e o rol de reflexos internacionais que se segue, como haveria de se conservar a esperança de continuidade da credibilidade do MRE como instituição?
PRA: O Brasil não é um país “declinista”, ou seja, propenso a depressões ou estados de “alma” negativos, com os progressos exasperantemente lentos nos terrenos do crescimento econômico e do desenvolvimento social. Mas o fato é que depois de tantas crises, decepções, recessões e frustrações com a ausência de progressos reais, com o aumento percebido da corrupção, com a acumulação de problemas, entre eles a marginalidade social, o desrespeito pela autoridade e a delinquência “normal” (em aparente ascensão), o ânimo do brasileiro está mais próximo daquele personagem de desenho animado (“Oh Deus, oh céus, eu sabia que não iria dar certo”) do que do Candide de Voltaire, ou do Dr. Pangloss (Tout est bien qui finit bien). A área econômica é campeã nas frustrações cidadãs, pois nenhum outro país no mundo conheceu uma sucessão de oito moedas em três gerações, ou seis moedas em menos de dez anos. Com certo esforço, conseguimos superar nosso emissionismo selvagem, base das hiperinflações do passado, mas o crescimento tem sido decepcionante, desde os anos 80 do século passado. Uma brutal recessão, a maior de nossa história econômica, em 2015-16, afastou uma vez mais as perspectivas de uma taxa de crescimento vigorosa e sustentada no futuro previsível, e a atual pandemia promete arrastar qualquer equilíbrio das contas públicas para vários anos além de 2030. 
Em nenhuma outra esfera, porém, as decepções são tão amplas, gerais e irrestritas quanto na política externa, com a possível exceção da educação, aliás dois ministérios que apresentam chefias e políticas disfuncionais, regressivas e abertamente esquizofrênicas, em total descompasso com o que observadores racionais esperariam contemplar desde o início do que parece ser o pior governo desde o primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Souza, desembarcado de Portugal em 1548. Não vejo, contudo, qualquer problema para o MRE enquanto instituição, pois a Casa de Rio Branco apresenta um corpo profissional de alta qualidade, preparado para conceber, implementar e apoiar uma política externa e sua correspondente diplomacia dignas de sua tradição de padrões de excelência poucas vezes vistos na burocracia governamental. O problema está inteiramente nos “controladores” da política externa e da diplomacia, seres totalmente ineptos e despreparados, aos quais responde como um boneco de ventríloquo o chanceler acidental, incapaz de formular um programa de política externo digno desse nome, inseguro quanto à sua capacidade de ação, dispersivo nas suas prioridades e, aparentemente, desequilibrado no plano pessoal. 
Se não fosse o risco de também parecer pessimista, ou até depressivo, eu até ousaria proclamar que, com os dirigentes que temos atualmente, não há nenhum risco de que possa melhorar no futuro previsível. Resta esperar que a atual crise de governança, com nítidos sinais de incompetência administrativa e até com obsessões absolutamente idiossincráticas, possa ser superada – ou encerrada – para que se possa novamente planejar um futuro um pouco menos medíocre. Mas se ouso, por outro lado, parafrasear uma estrofe de um poema conhecido do grande e irônico Mario de Andrade, de quase cem anos atrás – “O poeta come amendoim”–, poderia repetir, com ele: “Progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”. 

3. Como atual governo interfere nos pilares da política externa brasileira identificados pelo Embaixador Ricupero: pragmatismo; cooperação regional; aposta no multilateralismo. 
PRA: O atual governo, deliberadamente ou por estupidez coletiva, desmantelou todas as bases conceituais e operacionais da política externa tradicional, a do passado, e até a política externa partidária registrada durante os governos recentes do lulopetismo, e não colocou nada de funcional em seu lugar, a não ser suas obsessões absolutamente disfuncionais sob cada uma dessas rubrica: falta de pragmatismo, substituído por um voluntarismo irracional ou inadequado do ponto de vista das demandas reais da sociedade brasileira; abandono completo da cooperação regional, sob pretexto de “desalinhamento” com governos de outras orientações políticas; abandono do multilateralismo e uma política ativa de rejeição do “globalismo” – o que queira dizer esse conceito abstrato – e de retorno a um nacionalismo anacrônico e exclusivista (com rejeição, por exemplo, do Pacto Global das Migrações, um instrumento inócuo do ponto de vista da soberania brasileira, e até positivo para um país bem mais “exportador” de seus cidadãos do que “importador” de imigrantes). 
Desde já pode-se dizer que os retrocessos conhecidos nessa área são os mais vergonhosos em quase 200 anos de política externa nacional, e de uma diplomacia tida por excelente, sob diversos critérios. O atraso nessa área segue, com um grau maior de distorções políticas e de perversidades funcionais, a tremenda deterioração já constatada em quase todas as esferas da administração pública. Não há nenhuma perspectiva de que essa perda de qualidade na substância da política externa e de que a erosão institucional registrada no plano do funcionamento do Ministério das Relações Exteriores possa ser corrigida any time soon, ou seja, no futuro previsível.

4. Em sua opinião, o quão a atual política externa brasileira impacta na "miséria da diplomacia", comparativamente a anterior do lulopetismo? 
PRA: Não há comparação possível, pois forma e conteúdo são sensivelmente diferentes entre as duas épocas, por mais que se possa indicar incongruências na chamada diplomacia lulopetista. Eu mesmo dediquei um livro inteiro – Nunca Antes na Diplomacia (2014) – e mais meio livro – Contra a Corrente (2019) – à análise crítica daquela diplomacia, mas reconheço que o verdadeiro “nunca antes” se processa sob nossos olhos, no inacreditável espetáculo da incompetência com a estupidez mais evidente, a partir do próprio chefe de governo, do seu guru preferencial, de seu filho supostamente vocacionado para os assuntos externos – todos eles altamente ineptos para quaisquer assuntos internacionais – situação que se prolonga de modo patético na inoperância do chanceler acidental, um diplomata de carreira, em corrigir os disparates de todos esses incompetentes. 
Se ouso exemplificar o que existe de diferença entre o lulopetismo diplomático e a atual diplomacia olavo-bolsonarista, eu usaria a imagem de uma dessas “pizzas” que servem de gráfico para distribuições de proporções em apresentações econômicas. Sob o lulopetismo, as deformações ideológicas ocupavam uma “fatia”, no máximo duas”, da política externa do governo, e estavam concentradas naquelas áreas de obsessão companheira: a coordenação de países do “Sul”, para se contrapor à hegemonia das potências do Norte, a aliança com regimes supostamente de esquerda (alguns deles execráveis ditaduras), a simpatia com os governos “bolivarianos”, e uma obsessão megalomaníaca do presidente, pretendendo ser o líder de coalizões de países em desenvolvimento para “mudar a relações de força no mundo” e estabelecer uma “nova geografia do comércio internacional” – palavras de Lula e de seu chanceler –, ou seja, a tal de diplomacia “ativa e altiva” em prol da projeção mundial do Brasil. Mas todo o resto – multilateralismo, regionalismo, integração, desenvolvimentismo, terceiro-mundismo, antiamericanismo moderado – tudo isso era perfeitamente comum e contínuo com a “ideologia” do Itamaraty e as linhas defendidas em sua diplomacia. 
Atualmente, mesmo se não existe NENHUMA definição explícita e clara do que seja a sua “diplomacia” – que nunca foi apresentada de maneira sistemática –, o que se tem, sobre TODA a “pizza” diplomática do olavo-bolsonarismo, é um horrível molho insosso, intragável e altamente vergonhoso para as tradições e padrões de qualidade do Itamaraty. Não se tem notícia, em toda a nossa história, de um adesismo tão sabujo e tão ridículo do Brasil a uma potência estrangeira, aliás ao seu chefe de Estado, o que é pior ainda, pois este poderá ser derrotada nas eleições de novembro, nos Estados Unidos. Tampouco se tem registro de desvios tão flagrantemente ilegais do Direito Internacional e de resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como registrados em votações da ONU e em casos específicos da atualidade diplomática (como por exemplo o assassinato de um líder militar iraniano no Iraque, ou o apoio explícito a um “plano de paz” do presidente Trump para a Palestina, que não foi aceito sequer por seus aliados da OTAN). 
A “miséria da diplomacia” é ainda mais evidente naquilo que eu designei, no seguimento desse título de um dos meus livros mais recente, de “destruição da inteligência no Itamaraty”, o que é evidente na intimidação do seu pessoal profissional e no constrangimento evidente dos negociadores externos em defender, em diferentes foros, posturas francamente em descompasso, e até em oposição, com posturas anteriores, responsáveis da diplomacia seguida até o final de 2018. Essa “miséria” diplomática deve continuar, enquanto ideólogos ineptos continuarem determinando as ações e intenções da política externa prática, em face da completa passividade, indiferença ou conivência do atual chanceler acidental. 

5. Paulo que conselhos você daria para alguém que quer seguir a carreira diplomática hoje? 
PRA: Sim, a que sempre dei a todos os candidatos: leia de tudo, o tempo todo, se informe todos os canais abertos de leitura, reflexão e informação, buscando adquirir um domínio amplo de todas as matérias setoriais e conhecimentos gerais que são requeridos nos concursos de ingresso, cujos padrões são anormalmente elevados, selecionando, portanto, os melhores dentre os melhores (com alguma coisa de sorte no meio dessa preparação exigente). 
O outro conselho é não se deixar impressionar com os horrores do momento atual, a EA, a Era dos Absurdos, pois em algum momento os aloprados se vão, se retiram ou são afastados pela alternância democrática normal. A situação lamentável vivida atualmente pela diplomacia brasileira retomará sua trajetória normal. 

6. Gostaria de perguntar sobre esse tipo novo de diplomacia, que foi chamado nas mídias por diplomacia das máscaras. 
PRA: Sinceramente, estou mal informado sobre tal designação, e não saberia me expressar em torno desse conceito, seja na realidade, seja figurativamente. Se e quando eu tiver uma explicitação sobre seu significado poderei oferecer minha modesta opinião pessoal. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 24 de abril de 2020

Uma palestra sobre duas pandemias, a global e a nacional - Paulo Roberto de Almeida

Pandemia global e pandemia nacional: 
um futuro pior que o passado


Paulo Roberto de Almeida
Texto auxiliar para palestra online
Universidade Salvador (Unifacs)
Curso de Relações Internacionais – NERI
Quinta-feira, 23/04/2020, 20hs, via Instagram.


Pandemia global e pandemia nacional: cada qual no seu contexto
Todos sabem o que é a pandemia global do Covid-19; ela não necessita de mais apresentações. Cabe certa dúvida, contudo, quanto ao que seria a “pandemia nacional” da segunda parte do título: ela não tem nada a ver com o Covid-19, ainda que conviva com ele, mas apenas casualmente, como elemento paralelo, ou ator coadjuvante na outra tragédia que o Brasil enfrenta no momento presente: a falência da governança nacional, atingindo um pouco todas as instituições, adicionalmente ao esgotamento da inteligência e a descoordenação de várias instâncias da federação, com conflitos entre poderes e acrimônia entre seus principais personagens. Essa pandemia nacional é representada pela incompetência total da chefia do executivo, não apenas em exercer liderança para fazer face ao desafio da pandemia global, mas sobretudo em atuar, ao que parece deliberadamente, a contrário senso de toda e qualquer noção de responsabilidade no cumprimento de suas funções intransferíveis como chefe de governo, como dirigente da nação. A pandemia nacional possui nome e sobrenome, mas a sua nova designação também poderia ser algo como o “coveiro da democracia brasileira”. 
Venho agora ao subtítulo, “um futuro pior que o passado”. Eu o copio da palestra feita na Academia Brasileira de Letras, em 29 de agosto de 2019, pelo embaixador Rubens Ricupero, no 6º ciclo de conferências “O que falta ao Brasil?”, cujo título completo era exatamente este: “Um futuro pior que o passado? Reflexões na antevéspera do bicentenário da Independência” (disponível em formato de vídeo no site da Academia, neste link: http://www.academia.org.br/eventos/um-futuro-pior-que-o-passado-reflexoes-na-antevespera-do-bicentenario-da-independencia). Meu subtítulo apenas retirou o ponto de interrogação, uma vez que, no momento em que escrevo, tanto a pandemia global, quanto a nacional permitem confirmar amplamente que, sim, nosso futuro será pior do que o passado. Quanto pior ainda não sabemos, mas pressentimos.
Bem entendido, essa deterioração das condições globais sob o impacto do Covid-19 não é exclusiva ao Brasil: todos os países, todas as economias, grandes e pequenas, todas as nações, desenvolvidas e em desenvolvimento sofrem e sofrerão o impacto, não apenas das mortes – que podem até ser limitadas em comparação com a pandemia precedente, a chamada “gripe espanhola”, que pode ter vitimado entre 50 e 100 milhões de pessoas em diferentes países, entre os anos de 1917 e 1919 –, mas sobretudo o impacto devastador de seus efeitos econômicos e no terreno social, numa escala provavelmente maior do que aqueles provocados pela Grande Depressão dos anos 1930 (bem mais grave do que a mera crise da bolsa de Nova York em outubro de 1930, praticamente reabsorvida em meados de 1930). 
Mas é no Brasil que as duas pandemias prometem causar uma destruição tão maciça ou ainda mais importante quanto as crises econômicas que já enfrentamos em nossa história, sendo que a última, à qual eu chamo de Grande Destruição do final do regime lulopetista, foi bem mais ampla e recessiva do que os dois anos de recessão vividos pelo Brasil em 1930 e 1931. Como já disse um humorista, o “macaco Simão”, todos os países enfrentam um poderoso inimigo; só o Brasil enfrenta dois: o Covid-19 e o Bolsovirus, especialmente destruidor das instituições democráticas e potencialmente genocidário, igualmente, ao se contrapor, pelo exemplo e pelos dizeres, às medidas de contenção repetidamente recomendadas pelas autoridades sanitárias e até pela maioria do seu próprio governo, que ele se empenha impavidamente em desacreditar.
Não creio ser necessário retomar, neste momento e neste espaço, os impactos mais gerais, inclusive geopolíticos, do Covid-19 em escala mundial, inclusive porque a pandemia ainda não cessou de produzir os seus efeitos; aliás, um sem número de organizações internacionais, think tanks, entidades oficiais nacionais, acadêmicos e pesquisadores de todas as especialidades vêm oferecendo um número incrivelmente alto de dados, estudos prospectivos, simulações sobre a evolução da epidemia global e todos os tipos de informações e especulações sobre o que será o mundo sob o impacto do evento mais devastador desde as duas guerras globais do século XX. Eu mesmo já ofereci, em meados de março passado, um pequeno estudo contendo minha visão sobre as “Consequências geopolíticas da pandemia Covid-19”, consolidando comentários pessoais sobre as mudanças em curso no cenário global sob o impacto do surto pandêmico, em especial no que se refere aos papeis dos EUA e da China (ver blog Diplomatizzando; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/03/consequencias-geopoliticas-da-pandemia.html). Não pretendo, portanto, voltar a discutir esses aspectos geopolíticos da primeira grande pandemia do século XXI (mas certamente outras virão, não se sabe se tão devastadoras quanto a atual).
Vou retornar, portanto, à “pandemia nacional”, uma epidemia de natureza basicamente política, que se caracteriza por uma deterioração sensível nas condições de governança, cujo vetor, um vírus ou um bacilo (segundo o que poderão detectar os analistas da área) que invadiu os tecidos e os pulmões do sistema político. Ele se espalhou pela sociedade, transmitido sobretudo por uma tribo de fanáticos, sectários e fundamentalistas – o que é uma tripla redundância –, colocadas a serviço de um candidato a ditador, que jamais terá chances de confirmar qualquer monopólio de poder, mas que paralisa o funcionamento normal das instituições, e dificulta o próprio processo de ajustes econômicos que se encontrava em curso desde o governo anterior. 
A pandemia nacional provocada pelo “Bolsovirus” ameaça provocar um real colapso no âmbito da outra pandemia, a do Coronavirus global, empilhando mortos e mais mortos em diversas capitais do país. Tal se dá em vista dos exemplos criminosos oferecidos pelo chefe de Estado, um irresponsável que carrega justamente o ônus humano pela sua total falta de responsabilidade no sentido de se conformar às recomendações sensatas, e absolutamente necessárias, das autoridades sanitárias, que ele se encarregou de jogar no descrédito todas as vezes que insistiu em contrariar os protocolos epidemiológicos e até o simples bom senso. Numa área específica, porém, a “pandemia nacional bolsonariana” já acarretou um desgaste sensível para o país, a sua imagem internacional, em função de uma política externa tresloucada – que sequer existe como programa formalizado – e de uma diplomacia ainda mais esquizofrênica. 

Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty
Já dediquei a essa política externa e a essa diplomacia um primeiro livro, escrito muito rapidamente, em meados de 2019, apenas como reação aos primeiros episódios, absolutamente surpreendentes, de uma condução canhestra, amadora, mal informada, inadequada, desastrosa para os padrões usualmente de grande qualidade substantiva da diplomacia profissional. Este livro – Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty – encontra-se livremente disponível, em duas edições, no mesmo blog Diplomatizzando, e deve preceder uma outra obra, com análises mais focadas em questões concretas da agenda diplomática, e menos nos textos e discursos do chanceler acidental, que não parece ter muita importância doutrinal ou operacional, seja na determinação conceitual (se tal existe, o que é altamente duvidoso) da política externa, ou na condução efetiva da diplomacia, que não cessa de surpreender diplomatas e observadores externos. 
O que está ocorrendo atualmente no Itamaraty é absolutamente inédito em sua história quase bissecular: não existem registros, em quaisquer épocas, de um chanceler que tenha antagonizado tanto a Casa de Rio Branco, e a própria política externa, quanto o faz atualmente aquele a quem eu chamo de chanceler acidental, Ernesto Araújo. Eu o chamo assim pois que ele conquistou esse cargo não por ter se distinguido, ao longo da carreira, por eminentes serviços prestados ao Itamaraty ou à política internacional do Brasil, tornando-o uma personalidade conhecida, capaz, portanto, de reunir ao apoio da maioria dos diplomatas ou de conhecidos especialistas em relações internacionais. Não; ninguém o conhecia fora do ambiente restrito em que circulou na diplomacia. Tanto é verdade que, assim que ele foi anunciado, na tarde do dia 14 de novembro de 2018, era virtualmente desconhecido da maior parte dos jornalistas, analistas acadêmicos, e até dos próprios colegas. Apenas naquele momento foi conhecido o blog que ele havia criado para apoiar a candidatura do capitão: Metapolítica 17: contra o globalismo
Muitos dos que leram suas postagens pré-eleitorais, assim com várias outras, escritas nos dias e semanas seguintes, ficaram estarrecidos ao ler as invectivas saídas da mente perturbada do desconhecido colega: carregadas do olavismo mais exacerbado, de um pensamento de extrema direta, bastante agressivo contra o suposto marxismo, do esquerdismo inaceitável que parecia grassar e abundar no Itamaraty, essas postagens já antecipavam a intenção até então secreta daquela turma. O objetivo, finalmente exposto, era o de extirpar tudo o que representasse esquerdismo no cenário político nacional. Foi só aí, também, que os jornalistas especializados puderam, finalmente, ler o artigo que ele havia publicado um ano antes na revista do IPRI, os Cadernos de Política Exterior: “Trump e o Ocidente”: tratava-se de um ajuntamento heteróclito de ideias confusas, em nada condizente com o espírito e os objetivos da revista, misturando religião e política, história e filosofia, mas que em resumo anunciava o salvamento do Ocidente cristão por ninguém menos que o presidente dos Estados Unidos.  
Foi a partir dali, ou seja, nas semanas finais de 2018, que os colegas diplomatas e os observadores externos se deram conta de que muita coisa iria mudar no Itamaraty, mas ninguém antecipava, sequer imaginava, a extensão e a profundidade das mudanças introduzidas a partir de janeiro de 2019, a começar pela guilhotina geracional que ceifou as chefias mais antigas (que a do próprio chanceler) das nove subsecretarias até então existentes: foram todas substituídas, com uma única exceção, por ministros de segunda classe, que passaram a chefiar embaixadores mais antigos, numa reprodução daquela inversão de hierarquias que os militares chamam de “coronéis mandando em generais”. Toda a estrutura da Secretaria de Estado foi também alterada, mas secretamente, sem qualquer consulta aos diplomatas, feita com um pequeno grupo de amadores no bunker do Centro Cultural do Banco do Brasil, que serviu de escritório para a equipe de apoio ao novo governo, nas semanas finais de 2018. 

O papel do Itamaraty no âmbito de um governo altamente disfuncional
A política externa tem, realisticamente, um papel secundário em face dos grandes problemas nacionais. A maior parte desses problemas são “made in Brazil”, e devem receber respostas e soluções puramente nacionais. O ambiente externo tem sido, na verdade, favorável ao crescimento dos países que souberam aproveitar os impulsos e as oportunidades externas para alavancar avanços internos. A política externa poderia ter um papel relevante na agenda nacional se o Brasil fosse mais aberto ao comércio internacional e bem mais receptivo aos investimentos estrangeiros e associações com os países mais avançados tecnologicamente, fatores relevantes para projetos nacionais de desenvolvimento. Uma comparação entre os países de mais alta renda per capita e seus respectivos coeficientes de abertura externa comprovam esta assertiva. 
Este deveria ser um argumento suficientemente convincente para justificar um processo de abertura comercial e de maior aproximação aos países líderes do desenvolvimento tecnológico e cultural no mundo. Uma política externa compatível com os interesses nacionais precisaria se concentrar numa agenda desse tipo. Mas pode o Brasil encarar, internamente, a ampliação de facilidades no comércio exterior, com o desmantelamento de entraves administrativos e sistêmicos a uma elevação dos fluxos de exportações e de importações? Tal processo teria de ser paralelo e coincidente com um processo de diminuição da carga tributária sobre as empresas, insuportável sob qualquer critério que se examine. 
Paralelamente seria iniciado um esforço de revisão completa das bases de funcionamento da união aduaneira do Mercosul, a começar pela alternativa entre: (a) unificação de suas regras de aplicação; ou (b) negociação de um protocolo adicional ao Protocolo de Ouro Preto (POP), introduzindo a possibilidade de negociação externa individual de novos acordos de liberalização, com preservação da cláusula de nação-mais-favorecida para dentro. Sob a segunda hipótese, o Brasil poderia negociar outros acordos comerciais, com a Aliança do Pacífico e até com os EUA, prevendo redução de tarifas, abertura a comércio de serviços, defesa de propriedade intelectual e regras estáveis para investimentos, abertos aos membros do Mercosul, se estes o desejassem. 
O acordo com a UE, concluído em junho de 2019, não deve entrar em vigor, não apenas devido aos problemas da pandemia, mas também em função da postura anti-ambientalista do próprio presidente: na época, o parlamento da Áustria, e o próprio executivo francês, sinalizaram que teriam dificuldades em apoiar um acordo com um país que não cumpre o mínimo estabelecido no Acordo de Paris sobre aquecimento global, ou que não respeita outros padrões ambientais e humanitários condizentes com o que se tem estabelecido como normas mínimas no contexto multilateral.
Por outro lado, não há muito que o Brasil possa fazer no plano das negociações comerciais multilaterais, seja no âmbito da Rodada Doha (paralisada e provavelmente moribunda). O que cabe, sim, é examinar os demais acordos plurilaterais existentes no sistema multilateral de comércio, verificar a compatibilidade com o processo (a ser conduzido) de reforma na política comercial nacional, e considerar a hipótese de aderir a esses outros instrumentos de abertura e facilitação.
A política industrial está intimamente relacionada à política comercial, e, na sua vertente externa, deveria dedicar-se a atrair o máximo possível de investimentos estrangeiros e incentivar associações com o que há de mais tecnologicamente avançado no mundo. Independentemente de o Brasil ser ou não membro da OCDE, caberia associar-se ao Comitê de Indústria dessa organização e passar a examinar todos os protocolos, códigos e demais normas voluntárias estabelecidas naquele âmbito, de maneira a colocar a indústria brasileira num contexto de plena conformidade com os padrões internacionais nessa área. 
A política externa precisa retornar aos padrões habituais de profissionalismo e de isenção na análise técnica dos problemas que sempre estiveram afetos ao Itamaraty. Ambos, a política e a instituição, foram bastante deformados nos anos de lulopetismo diplomático, quando uma e outra foram submetidas e ficaram ao sabor das preferências e alucinações partidárias, quando não a serviço de outras causas que não o interesse nacional. A mesma realidade parece se reproduzir atualmente, sob o olavo-bolsonarismo diplomático, que possui muito mais deformações do que jamais tínhamos visto sob o lulismo. A ideologia é muito mais explicita, desde a origem e atualmente, o que torna a nossa política externa errática e altamente instável, pois as expressões equivocadas das políticas nessa área têm de ser corrigidas posteriormente pelos setores prejudicados, como o agronegócio, por exemplo. O Itamaraty não teria nenhum problema em cumprir uma nova pauta na política externa, pois sempre foi muito disciplinado no cumprimento das diretrizes do chefe do executivo, mas ele necessitaria de uma exposição coerente e abrangente sobre quais são as prioridades na frente externa, o que até o presente momento nunca ocorreu. 

Qual a atuação do chanceler acidental no contexto do governo atual?
Desde antes da posse do governo Bolsonaro, a partir de sua participação clandestina na campanha eleitoral presidencial no segundo semestre de 2018 (contra recomendações da Comissão de Ética da Presidência da República), assim como por suas declarações agressivas contra os diplomatas do corpo profissional do Itamaraty e contra a política externa do governo Temer e as dos governos anteriores, amplamente divulgadas pela imprensa, nos dois últimos meses do ano, ficou meridianamente claro que o escolhido pelo presidente eleito para chefiar o Itamaraty não possuía condições políticas e o necessário equilíbrio pessoal para se desempenhar em tão importante cargo na estrutura governamental do Brasil, inclusive por sua interface externa, colocando o Brasil no âmago das relações internacionais em todas as quais categorias (bilateral, regional, multilateral e em foros especializados).
A revelação chocante da existência de seu blog (não identificado com seu nome pessoal), “Metapolítica 17: contra o globalismo”, com postagens altamente controversas sobre a política internacional, mas também com críticas acerbas aos seus próprios colegas, chocou os diplomatas e observadores externos, ao evidenciar uma agressividade verbal só encontrada, até aquela época, no guru presidencial, um autoproclamado filósofo, mas que na verdade é um sofista expatriado nos Estados Unidos, de onde dispara invectivas contra todos aqueles que não partilham de suas poucas ideias políticas, ou de seus imensos equívocos em matéria de política internacional. Desde então, declarações, postagens, discursos e entrevistas se mantêm na mesma linha, com agressões aos supostos inimigos do Brasil, que seriam todos comunistas, ou no mínimo esquerdistas.
O fato é que o, até junho de 2018, simples ministro de segunda classe Ernesto Araújo enveredou pela construção de um perfil político que jamais tinha sido revelado em seus 30 anos precedentes de carreira na diplomacia profissional. Pode-se dizer, sem margem de erro, que a despeito de opiniões pessoais presumivelmente de direita – mantidas cautelosamente sob reserva até então –, o diplomata em questão construiu artificialmente uma personalidade que nunca tinha exibido anteriormente: a de um cruzado da extrema-direita, um inimigo do multilateralismo (que é a base principal da atividade diplomática desde o nascimento da ONU e de suas agências especializadas), um opositor das causas mais comuns na agenda mundial de negociações em grandes temas, que ele desdenhosamente passou a chamar de globalismo, climatismo, comercialismo, marxismo cultural, ideologia do gênero, afastamento da religião e vários outros ismos combatidos por um dos patronos à sua candidatura à chancelaria – o guru expatriado –, assim como pelos áulicos mais próximos, sobretudo da família Bolsonaro.
Depois dos artigos no blog, o seu discurso de posse, no dia 2 de janeiro, chocou colegas diplomatas e observadores dos meios políticos e da mídia, por destoar daquilo que normalmente se esperaria de um chanceler. O choque, aliás, ocorreu no dia anterior, na posse do próprio presidente, quando o chanceler, secundado pelo chefe de Estado, disse, na presença do Secretário de Estado dos EUA, presente à cerimônia, ser a favor da instalação de uma base americana no Brasil, no que foi imediatamente rechaçado por todos os ministros militares e outros altos oficiais trabalhando para o governo. Logo em seguida, demonstrou explícito apoio aos planos do presidente americano para forçar uma mudança de regime na Venezuela, no que teve, mais uma vez, de ser contido pelos mesmos altos responsáveis das FFAA.
Diversos outros episódios se sucederam, absolutamente inéditos para os padrões da diplomacia brasileira profissional, sempre aderente aos valores e princípios da Carta constitucional e às normas do Direito Internacional e resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O caso da Venezuela talvez seja o mais emblemático da falta de rumos e da trágica esquizofrenia da atuação do chanceler e de seus mentores na presidência e na CREDN-CD. Chegou-se a uma decisão inexplicável, tomada ao início de março de 2020, no sentido de fechar todas as representações brasileira no país e retirada total do pessoal diplomático e consular (inclusive descredenciamento de cônsules honorários e dispensa de todo o pessoal de apoio), ademais dos adidos das FFAA, da ABIN e da Receita, deixando as centenas, talvez milhares, de brasileiros residente totalmente desassistidos e sem qualquer contato com representação terceira.
O caso da China é diferente, na natureza e na forma, mas não se distingue no que se refere à gravidade das afrontas feitas ao nosso principal parceiro comercial. Desde antes da posse do chanceler, ele acusava uma suposta “China maoísta” – que não existe há mais de 40 anos – de pretender estender o comunismo no mundo. Mais graves foram as ofensas gratuitas lançadas contra a China pelo presidente da CREDN-CD, objeto de uma deplorável troca de notas e tweets entre o chanceler e o embaixador da China, depois dirimidas por telefonema entre os dois chefes de governo. Mas elas foram seguidas, pouco depois, por uma lamentável postagem do ministro da Educação, sem quaisquer desculpas que deveriam ter sido apresentadas pelo governo brasileiro ou por sua chancelaria, como solicitado pelo embaixador chinês.
Existem outras graves questões de direito internacional que estão sendo confrontadas constantemente pela atual chefia da chancelaria– ou seus mandatários efetivos –, em total afronta a compromissos assumidos pela diplomacia brasileira em decisões formais do sistema da ONU ou inscritas em normas consagradas do multilateralismo contemporâneo. As raras notas expedidas pelo Itamaraty – que não devem ter sido redigidas por diplomatas, em vista do Português sofrível e da ausência quase completa de conceitos diplomáticos – por ocasião da morte do general iraniano Suleimani, no Iraque, quando da apresentação do “plano para a paz na Palestina” do presidente Trump – sequer endossada por qualquer outro aliado americano na OTAN –, por ocasião do voto a propósito das sanções unilaterais americanas contra Cuba, bem como em diversos outros episódios setoriais (direitos humanos, questões de gênero ou de minorias, temas ambientais ou sociais e laborais, etc.), não se conformam a nenhum padrão conhecido de nossas tradições diplomáticas quase bisseculares. Essas notas, assim como outras tomadas de posição da chancelaria atual, constituem uma vergonha para o corpo profissional; elas atuam, ainda mais decisivamente do que as intervenções orais, para diminuir o prestígio e a imagem do Brasil no plano mundial.
Independentemente de questões propriamente diplomáticas, ou seja, integrando a agenda mundial de questões que devem ser tratadas nos seus canais próprios, as tomadas de posição pessoais do chanceler, sobre questões filosóficas, políticas ou religiosas, evidenciam uma personalidade altamente problemática, sem o necessário equilíbrio emocional para representar o Brasil nas esferas internacionais. Basta lembrar as agressões feitas por ele, em algumas secundando o presidente, contra mandatários de países vizinhos – o então candidato à presidência argentina, depois eleito presidente –, ou então, os esforços dispendidos em direção de líderes de extrema direita de determinados países, alienando relações tradicionais mantidas com democracias de mercado com fortes interfaces bilaterais com o Brasil. O auge dessas tomadas de posição profundamente repulsivas para o histórico de autonomia sempre exibido pelo Brasil no plano externo é representado por uma adesão gratuita, unilateral, em direção, não apenas dos Estados Unidos, mas ao seu atual presidente, o que é profundamente perturbador para o futuro das relações bilaterais, regionais e hemisféricas do Brasil.
Outras questões, altamente problemáticas, não têm tanto a ver tanto com a política externa e sim com o funcionamento da chancelaria, ou seja, com o ambiente próprio à diplomacia profissional. Nesse âmbito, existem diversos problemas, atinentes bem mais ao direito administrativo, em conexão com os métodos de trabalho e normas de funcionamento do próprio Itamaraty, atualmente vivendo sob certo stress funcional e alta tensão interna, dadas as já referidas inversões de hierarquia e várias reformas perturbadoras para os padrões tradicionais de trabalho da Casa. Aparentemente, o Itamaraty se encontra politicamente paralisado, por falta de governança racional, no plano interno, e por indevidas e amadoras intromissões externas, que são as de quem realmente decide as principais orientações da política externa.
Em face dessas constatações – válidas não apenas para a política externa, no sentido estrito, mas possivelmente aplicáveis também a outros aspectos das políticas públicas –, pode-se tranquilamente confirmar o sentido implícito ao subtítulo do presente ensaio: sim, tudo indica que o futuro do Brasil, de curto e de médio prazo, será bem pior do que aquele conhecido no passado relativamente recente. Tal se dá quase exclusivamente em função da grave pandemia política que aflige atualmente o país, sem que se possa prescrever quaisquer vacinas ou métodos curativos apropriados, uma vez que tal pandemia nacional se apresenta sob formas e conteúdos inéditos em toda a nossa história política. Tinha razão o embaixador Rubens Ricupero em sua conferência de 2019 na ABL, bastando retirar a interrogação do título: recomendo que todos a assistam. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 23 de abril de 2020

Profunda vergonha de nossa atual diplomacia - Paulo Roberto de Almeida

Como diplomata, ou melhor, como simples cidadão brasileiro, estudioso de nossa história diplomática, lamento profundamente que a atual diplomacia bolsonarista tenha descido tão baixo na escala dos princípios e valores que sempre foram os nossos no trabalho normal da política externa, de um país outrora integrado e ativo nas frentes abertas à nossa inserção internacional pela via da cooperação em prol da humanidade.

O Brasil hoje virou um pária no cenário mundial, desprezado pelas mais vibrantes democracias, ignorado pelos chefes de Estado que possuem visão de ação conjunta em prol da Humanidade.

Como cidadão, mas também como servidor do Estado, declaro-me em total oposição a tudo o que o presente (des)governo representa supostamente em nome do povo brasileiro.

 Solitariamente, apenas em função de minha própria consciência, mas também confiante numa função voluntariamente assumida de representação da quase totalidade do corpo diplomático do Brasil, declaro que essa diplomacia e esse governo não representam o povo brasileiro e, ao contrário, envergonham profundamente a nação.

PS.: Minha nota foi formulada nas primeiras horas da manhã desta sexta-feira, 24 de abril, sem qualquer conexão com a demissão do ministro da Justiça Sergio Moro, e se referia exclusivamente ao ambiente diplomático e à política externa governamental.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 24 de abril de 2020

O fim de uma era do petróleo - Daniel Yergin (Foreign Affairs)

The global oil market has never in history collapsed as precipitously as it has right now. The oil and gas industry, which provides almost 60 percent of the world’s energy, is engulfed in a double crisis that would have been dismissed as unthinkable at the start of this year. A price war, with producing nations battling for market share, has become lodged in the larger crisis of the novel coronavirus pandemic and what will likely be the worst recession since World War II. The resulting collapse in demand will be bigger than any recorded since oil became a global commodity. Oil prices are already down two-thirds since the beginning of 2020 and still falling. The decline in global consumption in April alone will be seven times bigger than the biggest quarterly decline following the 2008–9 financial crisis. In areas that lack access to storage and markets, the price of a barrel of oil could fall to zero.
This crash will create turmoil for oil-exporting countries and add to the turbulence of financial markets. It will also add another layer of complexity to an already fraught geopolitical situation—including by pulling the United States into contentious international wrangling over what can be done to ameliorate the crash. In February of this year, U.S. oil production reached its highest level ever, 13.1 million barrels a day—considerably more than either of the other top global producers, Saudi Arabia and Russia. That record followed a decade in which, owing to the shale revolution enabled by new fracking techniques, the United States went from being the world’s largest importer of oil to a major exporter.
U.S. President Donald Trump himself has already stepped into the fray. Although he has long been an advocate of low oil prices—and quick to tweet against the Organization of the Petroleum Exporting Countries (OPEC) and efforts at global supply management in recent years—the current collapse has prompted a reversal. He recently called Russian President Vladimir Putin to talk about what can be done to stem what he would later call the “hurtful” decline. Trump then called Saudi Crown Prince Mohammed bin Salman and announced that a sizable coordinated reduction by the major oil producers is in the works. The Saudis have followed up by calling for a reconvening of OPEC, along with other key oil-producing nations, including Canada and Mexico. All this has sent prices up, although the “when,” “how,” and “who” of the potential deal remain unclear. And the larger the universe of players, the more difficult it will be to implement an agreement.
The nature and sheer scale of the current collapse and the geopolitical wrangling it has prompted present unique challenges for the United States and its energy sector—challenges that will have significant consequences for the U.S. economy and U.S. foreign policy in an already perilous moment.

THE END OF THE NEW OIL ORDER

As with so many other industries, the extreme distress in oil markets was caused by the coronavirus pandemic. But in the case of oil, that distress comes with a geopolitical twist.
The last oil price collapse, which began in 2014 as a result of a surge in supply, finally ended in 2016 with the emergence of a new order in international oil—OPEC+. This was an agreement between 11 OPEC members and ten non-OPEC countries to jointly reduce production in order to stabilize a falling market. Sometimes called the Vienna Alliance because of where it was formed, OPEC+ was at its foundation a Saudi-Russian entente, with the then two largest oil producers (and longtime competitors) embracing the new collaboration. It also provided an opening for a strategic relationship, giving Russia an opening to build bonds with one of the United States’ most important allies in the Middle East and also to attract Saudi investment. For Saudi Arabia, it was a way to hedge its relationship with the United States and gain some leverage in its standoff with Iran.
But the first phase of the coronavirus crisis, the outbreak in China in January and February, fractured the entente. China, the biggest growth market for world oil, was suddenly shut down. Instead of global demand increasing, as was expected, it fell by an unprecedented six million barrels per day in the first quarter of 2020.
At the beginning of March, in and around OPEC and OPEC+ meetings in Vienna, Saudi Arabia and Russia began discussions about how to respond. It quickly became clear that they had very different perspectives. The Russian budget was based on what was seen as the relatively low price of about $42 a barrel. Meanwhile, Saudi Arabia, according to International Monetary Fund estimates, needed higher prices of around $80 a barrel to balance its budget. Accordingly, Saudi Arabia wanted deep cuts in output in order to try to put a floor under the price; Russia, professing uncertainty but assuming the impact of the coronavirus was likely to be much greater and would affect demand worldwide, argued instead to keep the existing agreement until June and then see where things stood.
Saudi Arabia insisted on the cuts. Russia emphatically said no. And so OPEC+ split apart.

OPEN THE VALVES

Saudi Arabia’s immediate response to the fracturing of the entente was to announce that in the absence of cuts by all producers, it would open the valves all the way. It began pumping as much as it could, aiming to add 2.5 million barrels per day to the 9.7 million it was already producing. The additional production was supposed to help make up for the decline in price. Russia responded by announcing that it would also produce all it could, though its capacity to increase is much lower, closer to 300,000 barrels per day. The battle for market share was on.
But while the price was already falling, the coronavirus outbreak was moving into its second and more devastating phase—the global pandemic. The resulting shutdown of much of the global economy has generated a collapse in demand on a scale the world has never seen before. In April, the decline could be 20 million barrels per day or more—about 20 percent of total demand.
Even as demand craters, oil will still flow out of wells; if it doesn’t go to consumers, it has to go somewhere—and that means into storage, primarily tankage spread around the world. On a country-by-country basis, IHS Markit calculates that virtually every available gallon of storage space in the world will be full by late April or early May. When that happens, two things will result: prices will plummet and producers will shut down wells because they cannot dispose of the oil.
Because of the nature of their oil fields, Russia and Saudi Arabia are able to produce oil at costs much lower than most other countries. In those other, higher-cost countries, when the price that a barrel will fetch is lower than the costs of operating the well, a company can’t afford to continue pumping without losing money on every barrel. At that point, a company will close the well temporarily. Among the hardest hit is U.S. shale oil. As a consequence, the United States will likely have to give up share in the global market, to others’ gain. And as Igor Sechin, the CEO of Rosneft (which produces 40 percent of Russia’s oil) and a critic of the 2016 OPEC+ deal, has put it, “If you give up market share, you will never get it back.” (For some in Moscow, that is welcome, for they see the growth of U.S. shale as having given the United States a free hand to impose sanctions on the Russian energy sector—such as those last December that halted the Nord Stream 2 pipeline from Russia to Germany just before its completion.)
U.S. shale producers are already under pressure. They are slashing their budgets and either greatly reducing or stopping drilling altogether. (With shale, drilling new wells is required to maintain production.) U.S. production could be down by almost three million barrels per day by the end of this year, according to IHS Markit calculations. If that comes to pass, the United States will still be a large producer, but well behind Russia and Saudi Arabia, and imports will rise. The economic costs will be high, given the importance of the shale revolution to the overall U.S. economy—accounting altogether, according to analysis by IHS Markit, for about 2.5 million jobs.

A MARKET OVERWHELMED

Is there some way to stabilize the global market? Ending the battle for market share would reduce the surplus flowing into the market, take some pressure off storage, and have a positive impact on market psychology, which is one of the factors that shapes prices. It would address only part of the problem of oversupply, but even that would be significant.
How to achieve such stabilization is another matter. But Saudi Arabia has a unique platform for facilitating a resolution, since it is chair of this year’s G-20, the forum for the world’s major economies to address and remedy international economic problems. During the 2008–9 crisis, the G-20 functioned as a sort of board of directors of the world economy. But that was a more collaborative era.
There are limits to what the United States can do. Members of Congress who are normally supportive of arms deals with Riyadh now want to tie the overall U.S.-Saudi relationship to international oil policy: 13 Republican senators from oil-producing states wrote to Saudi Crown Prince Mohammed bin Salman expressing dismay at what they described as Saudi policy “to lower crude prices and boost output capacity”; six of those senators, including the chair of the Senate Armed Services Committee, followed with a more pointed letter, saying that the U.S.-Saudi defense relationship “will be difficult to preserve if turmoil and hardship continue to be intentionally inflicted on the small- and medium-sized American companies.” Secretary of State Mike Pompeo pointedly noted Saudi Arabia’s unique opportunity to “reassure global energy and financial markets.”
Within the United States itself, the government has only a limited set of tools. Unlike Riyadh and Moscow, Washington cannot tell companies how much oil to produce. It does have the option of putting almost 700,000 barrels a day into available space in the strategic petroleum reserve, but it would need congressional authorization to spend the money to do so, and last week’s $2 trillion stimulus package did not include the $3 billion of funding that would be required. (That $3 billion would have likely been a very good investment for the government, doubling in value when oil prices recover in a few years.)  
The power to regulate output of oil lies with the states, most notably with the Railroad Commission of Texas, which despite its name regulates oil production in that state, which accounts for 40 percent of total U.S. production. The commission has the power to reduce output from wells in the name of preventing “waste,” but the last time it exercised that power was half a century ago. Any effort today to “proration,” as it is called, would be supported by some companies and opposed by others. Outside of the United States, it would be read as a signal that other countries should also implement production cuts.
With much of the global economy at a standstill, the oil crisis is going to get worse in the weeks ahead, and the damage will be felt well beyond the oil industry itself. As prices go down and storage fills up, production around the world will decline dramatically. Some of that might be the result of the coronavirus infecting and disrupting operations in different parts of the world. Some of it might be the result of decisions by countries despite an era of fractious global politics. But the bulk of the decline will be the result of a market overwhelmed by the sheer fury of the coronavirus and the shutdown of the world economy.
UPDATE APPENDED (April 2, 2020)
This article has been updated to reflect news of a possible deal to end the price war between Saudi Arabia and Russia.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Trajetória do Pensamento Brasileiro: dois séculos de produção intelectual, 1, 2 e 3




Estou compondo uma nova obra, ainda não disponível, e que provavelmente deve aumentar para volume ampliado de autores, talvez 40, sobre os 24 atualmente objeto de meu seminário especial no Uniceub, com mais ou menos 45 ou 50 alunos. Mas ela só vai ficar pronta no ano que vem e, se atrasar (o que é muito provável), só em 2022.


 Mas continuo trabalhando, lendo as obras de cada um deles e preparando minhas notas de acordo a meus critérios metodológicos: 


Ensaios sobre propostas de reformas estruturais para a construção da nação, com base no pensamento, nas obras e na ação de grandes personalidades da vida pública, desde a Independência aos dias atuais.


O que coloco à disposição dos interessados é apenas os PPs de apresentação das aulas, obviamente desenvolvidas oralmente, agora em sistema online, via Google Meet.
Espero retrabalhar todos os capítulos, mas esse é um trabalho de long haleine, como dizem os franceses, de grande esforço.
Não adianta me pedir o livro, que ainda não está pronto, embora vários capítulos já estejam escritos. 
A luta continua, companheiros.
Paulo Roberto de Almeida


3616. “Trajetória do pensamento brasileiro: dois séculos de produção intelectual (1)”, Brasília, 2 abril 2020, 9 slides. Apresentação da primeira parte da aula online dada em 3/04/2020, no quadro de Seminário Jurídico Avançado no Mestrado em Direito do Uniceub. Distribuído em Power Point para os alunos. Disponibilizado em Academia.edu (link pdf: https://www.academia.edu/42573925/Trajetoria_do_Pensamento_Brasileiro_dois_seculos_de_producao_intelectual_-_Aula_1; link em PP: https://www.academia.edu/42573926/Trajetoria_do_Pensamento_Brasileiro_dois_seculos_de_producao_intelectual_-_Aula_1_PP_).

Primeira Parte
Os pais fundadores da nação e os construtores do Estado
1. O primeiro estadista: Hipólito José da Costa
2. O patriarca da nação: José Bonifácio de Andrada e Silva
3. O patrono da historiografia: Francisco Varnhagen
4. O pioneiro da industrialização: Irineu Evangelista de Souza
5. Um germanófilo insurreto: Tobias Barreto
6. Um monarquista frustrado: Joaquim Nabuco
7. O pai da diplomacia brasileira: Barão do Rio Branco
8. Um historiador diplomático: Oliveira Lima


3635.“Trajetória do pensamento brasileiro: dois séculos de produção intelectual (2)”, Brasília, 14 abril 2020, 11 slides. Apresentação da segunda parte da aula online, na continuidade do trabalho 3616 (de 3/04/2020), no quadro de Seminário Jurídico Avançado no Mestrado em Direito do Uniceub. Distribuído em Power Point para os alunos. Disponibilizado em Academia.edu (link pdf: https://www.academia.edu/42739379/Trajetoria_do_pensamento_brasileiro_dois_seculos_de_producao_intelectual_2_2020_; link em PP: https://www.academia.edu/42739454/Trajetoria_do_pensamento_brasileiro_dois_seculos_de_producao_intelectual_2_2020_).

Segunda Parte
Tribunos republicanos e promotores da modernidade
9. Um tribuno republicano: Ruy Barbosa 
10. Um revolucionário modernizador: Oswaldo Aranha
11. Um visionário do progresso: Monteiro Lobato
12. A luta pela educação: Fernando de Azevedo
13. O progresso pelas mãos do Estado: Roberto Simonsen
14. O Dom Quixote da economia de mercado: Eugênio Gudin
15. Um jurista weberiano malgré lui: Raymundo Faoro 
16. O pensador da política: Afonso Arinos de Mello Franco           


3644. “Trajetória do pensamento brasileiro: dois séculos de produção intelectual (3)”, Brasília, 23 abril 2020, 10 + 4 slides. Apresentação da terceira parte da aula online, na continuidade dos trabalhos 3616 (de 3/04/2020) e 3635 (de 17/04/2020) no quadro do Seminário Jurídico Avançado no Mestrado em Direito do Uniceub. Distribuído em Power Point para os alunos. Disponibilizado em Academia.edu (link pdf: https://www.academia.edu/42835508/Trajetoria_do_Pensamento_Brasileiro_dois_seculos_de_producao_3_).

Terceira Parte
Intérpretes da nação e reformadores econômicos
17. O economista desenvolvimentista: Celso Furtado 
18. O progresso na inserção econômica global: Roberto Campos
19. Um estudioso da sociedade patriarcal: Gilberto Freyre
20. A interpretação marxista da história: Caio Prado Jr.
21. Um sociólogo incontornável: Florestan Fernandes
22. Do marxismo ao liberalismo: Antonio Paim
23. O enfant terrible do liberalismo: Gustavo Franco
24. A diplomacia na construção da nação: Rubens Ricupero