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sábado, 13 de junho de 2020

Hussein Kalout sobre a imagem do Brasil no exterior - Radio Gaucha

"É possível recuperar a imagem do Brasil, mas não será fácil, nem no curto prazo", analisa pesquisador de Harvard
Cientista político avalia os danos à reputação brasileira em razão das crises de saúde, econômica e política
Radio Gaúcha, 12/06/2020 - 09h52min
RODRIGO LOPES



Cientista político e pesquisador na Universidade de Harvard, uma das mais prestigiadas instituições de ensino norte-americanas, o brasileiro Hussein Kalout analisa com preocupação a erosão da imagem do Brasil no Exterior, explícita em manchetes e editoriais de jornais internacionais nos últimos dias.
O professor afirma que é com um misto de espanto e curiosidade que pesquisadores da universidade, com sede em Cambridge, Massachusetts, questionam sobre o que está ocorrendo com o Brasil, que vive uma crise tripla: de saúde, provocada pelo coronavírus, econômica e política. Nesta entrevista à coluna, ele destaca a tradição da diplomacia brasileira, de apresentar o país como pacífico, conciliador e participante de consensos internacionais, algo que, segundo ele, está deixando de existir diante da nova política externa.
Kalout é formado pela Universidade de Brasília (UNB), especialista em política internacional e Oriente Médio, foi consultor da ONU e o primeiro latino-americano a integrar o Advisory Board da Harvard International Review. O pesquisador também foi secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência no governo Michel Temer. Por telefone, Kalout conversou com a coluna sobre como o Brasil é visto no Exterior e como recuperar a imagem desgastada pela gestão da pandemia.
Hussein Kalout, pesquisador de Harvard
Nas últimas semanas, há várias manchetes de jornais internacionais sobre o aumento dos casos de coronavírus no Brasile editoriais apontando para uma crise de saúde, econômica e política no país. Na sua avaliação, como o Brasil está sendo visto pelo mundo?
A imagem de um país é a semelhança e o retrato de seu governo. A imagem do governo é ruim, repleta de arranhaduras e isso acaba sendo plasmado no Exterior. Obviamente, o estilo de governança adotado pelo presidente não é um estilo muito clássico de quem exerce a função de presidente: muito particular, baseado na confrontação constante e na geração de atritos institucionais. Isso acaba tendo ressonância seja no Brasil, seja fora. O Brasil sempre se caracterizou por ser um país obediente às normas internacionais, que era capaz de ser parte da engenharia de grandes consensos, de ser um indutor de processos de paz. O que se percebe aqui fora em relação ao Brasil é que se abriu mão de todo esse capital diplomático. Abre-se mão do capital político acumulado que dava ao Brasil a primazia de atuar em diversas frentes no sistema internacional. A leitura que se faz é de que o Brasil está fora do compasso de sua normalidade histórica.
Existe, na sua opinião, uma "marca Brasil"? Que atributos contribuem para a construção da imagem do Brasil no Exterior?
Os países têm marca. Parte característica da "marca Brasil" é a de um povo solidário, acolhedor, alegre. Há Estados que se notabilizam por sua organização social e eficiência de gestão, países que projetam sua marca a partir de seu desenvolvimento tecnológico, outros a partir de sua capacidade esportiva ou sua infraestrutura militar. O Brasil sempre se caracterizou, modulou sua marca, a partir de uma percepção de um país pacífico, que é capaz de resolver as controvérsias e contenciosos de forma negociada. É um país que evitava atritos e era proponente da conciliação. Essa marca de país pacífico e conciliador não existe mais. O olhar para o Brasil não é mais assim. A primeira pergunta que te fazem, aqui em Harvard, é: "O que está acontecendo com o seu país?" 
O Brasil é assunto nos corredores da Universidade de Harvard?
Claro, aqui na universidade, de forma geral, indaga-se o que está acontecendo com o Brasil. O país parece que perdeu sua bússola. Não é porque você tem um governo à direita. Na verdade, este não é um governo de direita, é de extrema-direita. Não é porque houve uma mudança governamental. A questão é que as posições do Brasil hoje são totalmente heterodoxas, contrassensuais, contra a lógica. Não conheço, dentro do ciclo universitário, de quem conhece ou se interessa pelo Brasil, ninguém que não esteja espantado. Não conheço ninguém que ache que o que está acontecendo no Brasil é algo dentro da normalidade.
Mesmo quem está em Harvard e acompanha os Estados Unidos fica surpreso? Uma vez que o presidente Jair Bolsonarose espelha em Donald Trump?
O povo americano está espantado com Trump. Basta olhar as pesquisas. Em vários Estados, ele está tomando uma lavada em relação a Joe Biden. Na Pensilvânia, Estado em que ele venceu a Hillary Clinton por menos de 10 mil votos na eleição anterior, hoje está 10 pontos atrás de Biden. No Arizona, Estado do Mike Pence (vice de Trump), está tecnicamente empatado ou atrás do Biden, Flórida, que é um Estado caracteristicamente republicano, ele está tecnicamente empatado com Biden. Isso reflete o humor e a insatisfação do público americano. Trump está perdendo tração entre os mais idosos, na faixa dos afro-americanos, dos hispano-americanos, entre jovens, entre mulheres. Não é que se espantam, é que aqui os pesos e contrapesos e as instituições são muito fortes. Você não vê Trump atacando a Suprema Corte americana. Você não vê Trump indo a uma manifestação em frente à Casa Branca em meio a uma pandemia de covid-19. Você não vê Trump em frente à Casa Branca onde há faixas propondo o fechamento do Supremo. Bolsonaro procura imitar Trump, e o imita inclusive nos erros e da pior forma possível.
A má gestão da pandemia pode erodir o chamado soft power brasileiro, a capacidade de projeção de poder do país lá fora?
O soft power é basicamente a projeção dos interesses nacionais brasileiros nos tabuleiros internacionais de forma qualificada e diplomaticamente bem desenhada. Hoje, o Brasil não tem um projeto de política externa. Até para você projetar os seus interesses, você precisa ter um projeto. Esse projeto não existe. Hoje, o Brasil encontra-se imobilizado nos principais tabuleiros internacionais, inclusive atacando seus principais parceiros estratégicos no mundo: as duas potências europeias, Franca e Alemanha, a China, seu principal parceiro comercial, a Argentina, que é o principal parceiro geopolítico na América Latina. Não vou nem entrar na temática dos países árabes (houve ameaças de rompimento de contratos comerciais diante da intenção do governo de mudar a embaixada em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém) . Há uma degradação do poder brando brasileiro, que sempre foi consubstanciado em suas capacidades de utilizar seu estilo pacificador, propositivo, pragmático e conciliador. Isso é fato. 
A pandemia profunda a crise na imagem brasileira?
A pandemia escancarou de uma forma um pouco mais nua e crua as debilidades da política externa brasileira e da capacidade governamental. Qual país do mundo, em meio a uma pandemia de coronavírus, está trocando o ministro da saúde? Diga um país só… Não tem. Então, algo está errado. Qual país categoricamente nega a ciência? Três ou quatro. Normalmente Estados totalitários, que adotam o mesmo discurso negacionista quanto aos efeitos do problema. Em parte, Trump paga um alto preço porque tentou minimizar isso. E tentou propor soluções não comprovadas cientificamente. Isso feriu de morte sua popularidade e hoje o país tem 30 milhões de desempregados e mais de 100 mil mortes. Então, não foi muito auspicioso. A crise da covid-19 escancarou as debilidades do governo que já eram conhecidas, mas não vistas com essa ótica tão primitiva.
Essa imagem internacional pode ser reconstruída ou os danos são irreversíveis?
Se o governo seguir com essa mesma tônica, a tendência é de que haja uma deterioração grave, mais grave ainda, da imagem do Brasil no mundo. Se essa dinâmica de adoção de políticas públicas e de confrontação persistir, a tendência é de que se agrave. Se é irrecuperável ou não, vai depender de quem estiver à frente do governo futuro e do trabalho que será feito. Acho que o trabalho no futuro é reversível, porém vai custar muito caro ao Brasil: em tempo, em recursos, em reconquistar a confiança de importantes parceiros. Não vai ser algo que se recupere da noite para o dia. Tem de haver um trabalho por trás e isso precisa se provar na prática. Podemos recuperar? É possível, mas não será fácil e não será no curto prazo.


sexta-feira, 24 de abril de 2020

Uma palestra sobre duas pandemias, a global e a nacional - Paulo Roberto de Almeida

Pandemia global e pandemia nacional: 
um futuro pior que o passado


Paulo Roberto de Almeida
Texto auxiliar para palestra online
Universidade Salvador (Unifacs)
Curso de Relações Internacionais – NERI
Quinta-feira, 23/04/2020, 20hs, via Instagram.


Pandemia global e pandemia nacional: cada qual no seu contexto
Todos sabem o que é a pandemia global do Covid-19; ela não necessita de mais apresentações. Cabe certa dúvida, contudo, quanto ao que seria a “pandemia nacional” da segunda parte do título: ela não tem nada a ver com o Covid-19, ainda que conviva com ele, mas apenas casualmente, como elemento paralelo, ou ator coadjuvante na outra tragédia que o Brasil enfrenta no momento presente: a falência da governança nacional, atingindo um pouco todas as instituições, adicionalmente ao esgotamento da inteligência e a descoordenação de várias instâncias da federação, com conflitos entre poderes e acrimônia entre seus principais personagens. Essa pandemia nacional é representada pela incompetência total da chefia do executivo, não apenas em exercer liderança para fazer face ao desafio da pandemia global, mas sobretudo em atuar, ao que parece deliberadamente, a contrário senso de toda e qualquer noção de responsabilidade no cumprimento de suas funções intransferíveis como chefe de governo, como dirigente da nação. A pandemia nacional possui nome e sobrenome, mas a sua nova designação também poderia ser algo como o “coveiro da democracia brasileira”. 
Venho agora ao subtítulo, “um futuro pior que o passado”. Eu o copio da palestra feita na Academia Brasileira de Letras, em 29 de agosto de 2019, pelo embaixador Rubens Ricupero, no 6º ciclo de conferências “O que falta ao Brasil?”, cujo título completo era exatamente este: “Um futuro pior que o passado? Reflexões na antevéspera do bicentenário da Independência” (disponível em formato de vídeo no site da Academia, neste link: http://www.academia.org.br/eventos/um-futuro-pior-que-o-passado-reflexoes-na-antevespera-do-bicentenario-da-independencia). Meu subtítulo apenas retirou o ponto de interrogação, uma vez que, no momento em que escrevo, tanto a pandemia global, quanto a nacional permitem confirmar amplamente que, sim, nosso futuro será pior do que o passado. Quanto pior ainda não sabemos, mas pressentimos.
Bem entendido, essa deterioração das condições globais sob o impacto do Covid-19 não é exclusiva ao Brasil: todos os países, todas as economias, grandes e pequenas, todas as nações, desenvolvidas e em desenvolvimento sofrem e sofrerão o impacto, não apenas das mortes – que podem até ser limitadas em comparação com a pandemia precedente, a chamada “gripe espanhola”, que pode ter vitimado entre 50 e 100 milhões de pessoas em diferentes países, entre os anos de 1917 e 1919 –, mas sobretudo o impacto devastador de seus efeitos econômicos e no terreno social, numa escala provavelmente maior do que aqueles provocados pela Grande Depressão dos anos 1930 (bem mais grave do que a mera crise da bolsa de Nova York em outubro de 1930, praticamente reabsorvida em meados de 1930). 
Mas é no Brasil que as duas pandemias prometem causar uma destruição tão maciça ou ainda mais importante quanto as crises econômicas que já enfrentamos em nossa história, sendo que a última, à qual eu chamo de Grande Destruição do final do regime lulopetista, foi bem mais ampla e recessiva do que os dois anos de recessão vividos pelo Brasil em 1930 e 1931. Como já disse um humorista, o “macaco Simão”, todos os países enfrentam um poderoso inimigo; só o Brasil enfrenta dois: o Covid-19 e o Bolsovirus, especialmente destruidor das instituições democráticas e potencialmente genocidário, igualmente, ao se contrapor, pelo exemplo e pelos dizeres, às medidas de contenção repetidamente recomendadas pelas autoridades sanitárias e até pela maioria do seu próprio governo, que ele se empenha impavidamente em desacreditar.
Não creio ser necessário retomar, neste momento e neste espaço, os impactos mais gerais, inclusive geopolíticos, do Covid-19 em escala mundial, inclusive porque a pandemia ainda não cessou de produzir os seus efeitos; aliás, um sem número de organizações internacionais, think tanks, entidades oficiais nacionais, acadêmicos e pesquisadores de todas as especialidades vêm oferecendo um número incrivelmente alto de dados, estudos prospectivos, simulações sobre a evolução da epidemia global e todos os tipos de informações e especulações sobre o que será o mundo sob o impacto do evento mais devastador desde as duas guerras globais do século XX. Eu mesmo já ofereci, em meados de março passado, um pequeno estudo contendo minha visão sobre as “Consequências geopolíticas da pandemia Covid-19”, consolidando comentários pessoais sobre as mudanças em curso no cenário global sob o impacto do surto pandêmico, em especial no que se refere aos papeis dos EUA e da China (ver blog Diplomatizzando; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/03/consequencias-geopoliticas-da-pandemia.html). Não pretendo, portanto, voltar a discutir esses aspectos geopolíticos da primeira grande pandemia do século XXI (mas certamente outras virão, não se sabe se tão devastadoras quanto a atual).
Vou retornar, portanto, à “pandemia nacional”, uma epidemia de natureza basicamente política, que se caracteriza por uma deterioração sensível nas condições de governança, cujo vetor, um vírus ou um bacilo (segundo o que poderão detectar os analistas da área) que invadiu os tecidos e os pulmões do sistema político. Ele se espalhou pela sociedade, transmitido sobretudo por uma tribo de fanáticos, sectários e fundamentalistas – o que é uma tripla redundância –, colocadas a serviço de um candidato a ditador, que jamais terá chances de confirmar qualquer monopólio de poder, mas que paralisa o funcionamento normal das instituições, e dificulta o próprio processo de ajustes econômicos que se encontrava em curso desde o governo anterior. 
A pandemia nacional provocada pelo “Bolsovirus” ameaça provocar um real colapso no âmbito da outra pandemia, a do Coronavirus global, empilhando mortos e mais mortos em diversas capitais do país. Tal se dá em vista dos exemplos criminosos oferecidos pelo chefe de Estado, um irresponsável que carrega justamente o ônus humano pela sua total falta de responsabilidade no sentido de se conformar às recomendações sensatas, e absolutamente necessárias, das autoridades sanitárias, que ele se encarregou de jogar no descrédito todas as vezes que insistiu em contrariar os protocolos epidemiológicos e até o simples bom senso. Numa área específica, porém, a “pandemia nacional bolsonariana” já acarretou um desgaste sensível para o país, a sua imagem internacional, em função de uma política externa tresloucada – que sequer existe como programa formalizado – e de uma diplomacia ainda mais esquizofrênica. 

Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty
Já dediquei a essa política externa e a essa diplomacia um primeiro livro, escrito muito rapidamente, em meados de 2019, apenas como reação aos primeiros episódios, absolutamente surpreendentes, de uma condução canhestra, amadora, mal informada, inadequada, desastrosa para os padrões usualmente de grande qualidade substantiva da diplomacia profissional. Este livro – Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty – encontra-se livremente disponível, em duas edições, no mesmo blog Diplomatizzando, e deve preceder uma outra obra, com análises mais focadas em questões concretas da agenda diplomática, e menos nos textos e discursos do chanceler acidental, que não parece ter muita importância doutrinal ou operacional, seja na determinação conceitual (se tal existe, o que é altamente duvidoso) da política externa, ou na condução efetiva da diplomacia, que não cessa de surpreender diplomatas e observadores externos. 
O que está ocorrendo atualmente no Itamaraty é absolutamente inédito em sua história quase bissecular: não existem registros, em quaisquer épocas, de um chanceler que tenha antagonizado tanto a Casa de Rio Branco, e a própria política externa, quanto o faz atualmente aquele a quem eu chamo de chanceler acidental, Ernesto Araújo. Eu o chamo assim pois que ele conquistou esse cargo não por ter se distinguido, ao longo da carreira, por eminentes serviços prestados ao Itamaraty ou à política internacional do Brasil, tornando-o uma personalidade conhecida, capaz, portanto, de reunir ao apoio da maioria dos diplomatas ou de conhecidos especialistas em relações internacionais. Não; ninguém o conhecia fora do ambiente restrito em que circulou na diplomacia. Tanto é verdade que, assim que ele foi anunciado, na tarde do dia 14 de novembro de 2018, era virtualmente desconhecido da maior parte dos jornalistas, analistas acadêmicos, e até dos próprios colegas. Apenas naquele momento foi conhecido o blog que ele havia criado para apoiar a candidatura do capitão: Metapolítica 17: contra o globalismo
Muitos dos que leram suas postagens pré-eleitorais, assim com várias outras, escritas nos dias e semanas seguintes, ficaram estarrecidos ao ler as invectivas saídas da mente perturbada do desconhecido colega: carregadas do olavismo mais exacerbado, de um pensamento de extrema direta, bastante agressivo contra o suposto marxismo, do esquerdismo inaceitável que parecia grassar e abundar no Itamaraty, essas postagens já antecipavam a intenção até então secreta daquela turma. O objetivo, finalmente exposto, era o de extirpar tudo o que representasse esquerdismo no cenário político nacional. Foi só aí, também, que os jornalistas especializados puderam, finalmente, ler o artigo que ele havia publicado um ano antes na revista do IPRI, os Cadernos de Política Exterior: “Trump e o Ocidente”: tratava-se de um ajuntamento heteróclito de ideias confusas, em nada condizente com o espírito e os objetivos da revista, misturando religião e política, história e filosofia, mas que em resumo anunciava o salvamento do Ocidente cristão por ninguém menos que o presidente dos Estados Unidos.  
Foi a partir dali, ou seja, nas semanas finais de 2018, que os colegas diplomatas e os observadores externos se deram conta de que muita coisa iria mudar no Itamaraty, mas ninguém antecipava, sequer imaginava, a extensão e a profundidade das mudanças introduzidas a partir de janeiro de 2019, a começar pela guilhotina geracional que ceifou as chefias mais antigas (que a do próprio chanceler) das nove subsecretarias até então existentes: foram todas substituídas, com uma única exceção, por ministros de segunda classe, que passaram a chefiar embaixadores mais antigos, numa reprodução daquela inversão de hierarquias que os militares chamam de “coronéis mandando em generais”. Toda a estrutura da Secretaria de Estado foi também alterada, mas secretamente, sem qualquer consulta aos diplomatas, feita com um pequeno grupo de amadores no bunker do Centro Cultural do Banco do Brasil, que serviu de escritório para a equipe de apoio ao novo governo, nas semanas finais de 2018. 

O papel do Itamaraty no âmbito de um governo altamente disfuncional
A política externa tem, realisticamente, um papel secundário em face dos grandes problemas nacionais. A maior parte desses problemas são “made in Brazil”, e devem receber respostas e soluções puramente nacionais. O ambiente externo tem sido, na verdade, favorável ao crescimento dos países que souberam aproveitar os impulsos e as oportunidades externas para alavancar avanços internos. A política externa poderia ter um papel relevante na agenda nacional se o Brasil fosse mais aberto ao comércio internacional e bem mais receptivo aos investimentos estrangeiros e associações com os países mais avançados tecnologicamente, fatores relevantes para projetos nacionais de desenvolvimento. Uma comparação entre os países de mais alta renda per capita e seus respectivos coeficientes de abertura externa comprovam esta assertiva. 
Este deveria ser um argumento suficientemente convincente para justificar um processo de abertura comercial e de maior aproximação aos países líderes do desenvolvimento tecnológico e cultural no mundo. Uma política externa compatível com os interesses nacionais precisaria se concentrar numa agenda desse tipo. Mas pode o Brasil encarar, internamente, a ampliação de facilidades no comércio exterior, com o desmantelamento de entraves administrativos e sistêmicos a uma elevação dos fluxos de exportações e de importações? Tal processo teria de ser paralelo e coincidente com um processo de diminuição da carga tributária sobre as empresas, insuportável sob qualquer critério que se examine. 
Paralelamente seria iniciado um esforço de revisão completa das bases de funcionamento da união aduaneira do Mercosul, a começar pela alternativa entre: (a) unificação de suas regras de aplicação; ou (b) negociação de um protocolo adicional ao Protocolo de Ouro Preto (POP), introduzindo a possibilidade de negociação externa individual de novos acordos de liberalização, com preservação da cláusula de nação-mais-favorecida para dentro. Sob a segunda hipótese, o Brasil poderia negociar outros acordos comerciais, com a Aliança do Pacífico e até com os EUA, prevendo redução de tarifas, abertura a comércio de serviços, defesa de propriedade intelectual e regras estáveis para investimentos, abertos aos membros do Mercosul, se estes o desejassem. 
O acordo com a UE, concluído em junho de 2019, não deve entrar em vigor, não apenas devido aos problemas da pandemia, mas também em função da postura anti-ambientalista do próprio presidente: na época, o parlamento da Áustria, e o próprio executivo francês, sinalizaram que teriam dificuldades em apoiar um acordo com um país que não cumpre o mínimo estabelecido no Acordo de Paris sobre aquecimento global, ou que não respeita outros padrões ambientais e humanitários condizentes com o que se tem estabelecido como normas mínimas no contexto multilateral.
Por outro lado, não há muito que o Brasil possa fazer no plano das negociações comerciais multilaterais, seja no âmbito da Rodada Doha (paralisada e provavelmente moribunda). O que cabe, sim, é examinar os demais acordos plurilaterais existentes no sistema multilateral de comércio, verificar a compatibilidade com o processo (a ser conduzido) de reforma na política comercial nacional, e considerar a hipótese de aderir a esses outros instrumentos de abertura e facilitação.
A política industrial está intimamente relacionada à política comercial, e, na sua vertente externa, deveria dedicar-se a atrair o máximo possível de investimentos estrangeiros e incentivar associações com o que há de mais tecnologicamente avançado no mundo. Independentemente de o Brasil ser ou não membro da OCDE, caberia associar-se ao Comitê de Indústria dessa organização e passar a examinar todos os protocolos, códigos e demais normas voluntárias estabelecidas naquele âmbito, de maneira a colocar a indústria brasileira num contexto de plena conformidade com os padrões internacionais nessa área. 
A política externa precisa retornar aos padrões habituais de profissionalismo e de isenção na análise técnica dos problemas que sempre estiveram afetos ao Itamaraty. Ambos, a política e a instituição, foram bastante deformados nos anos de lulopetismo diplomático, quando uma e outra foram submetidas e ficaram ao sabor das preferências e alucinações partidárias, quando não a serviço de outras causas que não o interesse nacional. A mesma realidade parece se reproduzir atualmente, sob o olavo-bolsonarismo diplomático, que possui muito mais deformações do que jamais tínhamos visto sob o lulismo. A ideologia é muito mais explicita, desde a origem e atualmente, o que torna a nossa política externa errática e altamente instável, pois as expressões equivocadas das políticas nessa área têm de ser corrigidas posteriormente pelos setores prejudicados, como o agronegócio, por exemplo. O Itamaraty não teria nenhum problema em cumprir uma nova pauta na política externa, pois sempre foi muito disciplinado no cumprimento das diretrizes do chefe do executivo, mas ele necessitaria de uma exposição coerente e abrangente sobre quais são as prioridades na frente externa, o que até o presente momento nunca ocorreu. 

Qual a atuação do chanceler acidental no contexto do governo atual?
Desde antes da posse do governo Bolsonaro, a partir de sua participação clandestina na campanha eleitoral presidencial no segundo semestre de 2018 (contra recomendações da Comissão de Ética da Presidência da República), assim como por suas declarações agressivas contra os diplomatas do corpo profissional do Itamaraty e contra a política externa do governo Temer e as dos governos anteriores, amplamente divulgadas pela imprensa, nos dois últimos meses do ano, ficou meridianamente claro que o escolhido pelo presidente eleito para chefiar o Itamaraty não possuía condições políticas e o necessário equilíbrio pessoal para se desempenhar em tão importante cargo na estrutura governamental do Brasil, inclusive por sua interface externa, colocando o Brasil no âmago das relações internacionais em todas as quais categorias (bilateral, regional, multilateral e em foros especializados).
A revelação chocante da existência de seu blog (não identificado com seu nome pessoal), “Metapolítica 17: contra o globalismo”, com postagens altamente controversas sobre a política internacional, mas também com críticas acerbas aos seus próprios colegas, chocou os diplomatas e observadores externos, ao evidenciar uma agressividade verbal só encontrada, até aquela época, no guru presidencial, um autoproclamado filósofo, mas que na verdade é um sofista expatriado nos Estados Unidos, de onde dispara invectivas contra todos aqueles que não partilham de suas poucas ideias políticas, ou de seus imensos equívocos em matéria de política internacional. Desde então, declarações, postagens, discursos e entrevistas se mantêm na mesma linha, com agressões aos supostos inimigos do Brasil, que seriam todos comunistas, ou no mínimo esquerdistas.
O fato é que o, até junho de 2018, simples ministro de segunda classe Ernesto Araújo enveredou pela construção de um perfil político que jamais tinha sido revelado em seus 30 anos precedentes de carreira na diplomacia profissional. Pode-se dizer, sem margem de erro, que a despeito de opiniões pessoais presumivelmente de direita – mantidas cautelosamente sob reserva até então –, o diplomata em questão construiu artificialmente uma personalidade que nunca tinha exibido anteriormente: a de um cruzado da extrema-direita, um inimigo do multilateralismo (que é a base principal da atividade diplomática desde o nascimento da ONU e de suas agências especializadas), um opositor das causas mais comuns na agenda mundial de negociações em grandes temas, que ele desdenhosamente passou a chamar de globalismo, climatismo, comercialismo, marxismo cultural, ideologia do gênero, afastamento da religião e vários outros ismos combatidos por um dos patronos à sua candidatura à chancelaria – o guru expatriado –, assim como pelos áulicos mais próximos, sobretudo da família Bolsonaro.
Depois dos artigos no blog, o seu discurso de posse, no dia 2 de janeiro, chocou colegas diplomatas e observadores dos meios políticos e da mídia, por destoar daquilo que normalmente se esperaria de um chanceler. O choque, aliás, ocorreu no dia anterior, na posse do próprio presidente, quando o chanceler, secundado pelo chefe de Estado, disse, na presença do Secretário de Estado dos EUA, presente à cerimônia, ser a favor da instalação de uma base americana no Brasil, no que foi imediatamente rechaçado por todos os ministros militares e outros altos oficiais trabalhando para o governo. Logo em seguida, demonstrou explícito apoio aos planos do presidente americano para forçar uma mudança de regime na Venezuela, no que teve, mais uma vez, de ser contido pelos mesmos altos responsáveis das FFAA.
Diversos outros episódios se sucederam, absolutamente inéditos para os padrões da diplomacia brasileira profissional, sempre aderente aos valores e princípios da Carta constitucional e às normas do Direito Internacional e resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. O caso da Venezuela talvez seja o mais emblemático da falta de rumos e da trágica esquizofrenia da atuação do chanceler e de seus mentores na presidência e na CREDN-CD. Chegou-se a uma decisão inexplicável, tomada ao início de março de 2020, no sentido de fechar todas as representações brasileira no país e retirada total do pessoal diplomático e consular (inclusive descredenciamento de cônsules honorários e dispensa de todo o pessoal de apoio), ademais dos adidos das FFAA, da ABIN e da Receita, deixando as centenas, talvez milhares, de brasileiros residente totalmente desassistidos e sem qualquer contato com representação terceira.
O caso da China é diferente, na natureza e na forma, mas não se distingue no que se refere à gravidade das afrontas feitas ao nosso principal parceiro comercial. Desde antes da posse do chanceler, ele acusava uma suposta “China maoísta” – que não existe há mais de 40 anos – de pretender estender o comunismo no mundo. Mais graves foram as ofensas gratuitas lançadas contra a China pelo presidente da CREDN-CD, objeto de uma deplorável troca de notas e tweets entre o chanceler e o embaixador da China, depois dirimidas por telefonema entre os dois chefes de governo. Mas elas foram seguidas, pouco depois, por uma lamentável postagem do ministro da Educação, sem quaisquer desculpas que deveriam ter sido apresentadas pelo governo brasileiro ou por sua chancelaria, como solicitado pelo embaixador chinês.
Existem outras graves questões de direito internacional que estão sendo confrontadas constantemente pela atual chefia da chancelaria– ou seus mandatários efetivos –, em total afronta a compromissos assumidos pela diplomacia brasileira em decisões formais do sistema da ONU ou inscritas em normas consagradas do multilateralismo contemporâneo. As raras notas expedidas pelo Itamaraty – que não devem ter sido redigidas por diplomatas, em vista do Português sofrível e da ausência quase completa de conceitos diplomáticos – por ocasião da morte do general iraniano Suleimani, no Iraque, quando da apresentação do “plano para a paz na Palestina” do presidente Trump – sequer endossada por qualquer outro aliado americano na OTAN –, por ocasião do voto a propósito das sanções unilaterais americanas contra Cuba, bem como em diversos outros episódios setoriais (direitos humanos, questões de gênero ou de minorias, temas ambientais ou sociais e laborais, etc.), não se conformam a nenhum padrão conhecido de nossas tradições diplomáticas quase bisseculares. Essas notas, assim como outras tomadas de posição da chancelaria atual, constituem uma vergonha para o corpo profissional; elas atuam, ainda mais decisivamente do que as intervenções orais, para diminuir o prestígio e a imagem do Brasil no plano mundial.
Independentemente de questões propriamente diplomáticas, ou seja, integrando a agenda mundial de questões que devem ser tratadas nos seus canais próprios, as tomadas de posição pessoais do chanceler, sobre questões filosóficas, políticas ou religiosas, evidenciam uma personalidade altamente problemática, sem o necessário equilíbrio emocional para representar o Brasil nas esferas internacionais. Basta lembrar as agressões feitas por ele, em algumas secundando o presidente, contra mandatários de países vizinhos – o então candidato à presidência argentina, depois eleito presidente –, ou então, os esforços dispendidos em direção de líderes de extrema direita de determinados países, alienando relações tradicionais mantidas com democracias de mercado com fortes interfaces bilaterais com o Brasil. O auge dessas tomadas de posição profundamente repulsivas para o histórico de autonomia sempre exibido pelo Brasil no plano externo é representado por uma adesão gratuita, unilateral, em direção, não apenas dos Estados Unidos, mas ao seu atual presidente, o que é profundamente perturbador para o futuro das relações bilaterais, regionais e hemisféricas do Brasil.
Outras questões, altamente problemáticas, não têm tanto a ver tanto com a política externa e sim com o funcionamento da chancelaria, ou seja, com o ambiente próprio à diplomacia profissional. Nesse âmbito, existem diversos problemas, atinentes bem mais ao direito administrativo, em conexão com os métodos de trabalho e normas de funcionamento do próprio Itamaraty, atualmente vivendo sob certo stress funcional e alta tensão interna, dadas as já referidas inversões de hierarquia e várias reformas perturbadoras para os padrões tradicionais de trabalho da Casa. Aparentemente, o Itamaraty se encontra politicamente paralisado, por falta de governança racional, no plano interno, e por indevidas e amadoras intromissões externas, que são as de quem realmente decide as principais orientações da política externa.
Em face dessas constatações – válidas não apenas para a política externa, no sentido estrito, mas possivelmente aplicáveis também a outros aspectos das políticas públicas –, pode-se tranquilamente confirmar o sentido implícito ao subtítulo do presente ensaio: sim, tudo indica que o futuro do Brasil, de curto e de médio prazo, será bem pior do que aquele conhecido no passado relativamente recente. Tal se dá quase exclusivamente em função da grave pandemia política que aflige atualmente o país, sem que se possa prescrever quaisquer vacinas ou métodos curativos apropriados, uma vez que tal pandemia nacional se apresenta sob formas e conteúdos inéditos em toda a nossa história política. Tinha razão o embaixador Rubens Ricupero em sua conferência de 2019 na ABL, bastando retirar a interrogação do título: recomendo que todos a assistam. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 23 de abril de 2020

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Miséria de uma política externa que não existe - Paulo Roberto de Almeida


Miséria da diplomacia:
algumas notas sintéticas sobre uma política externa que não existe

Paulo Roberto de Almeida

O que sobretudo envergonha a diplomacia profissional brasileira é a profunda ignorância demonstrada pelo PR quanto a regras mínimas de cortesia nas relações diplomáticas bilaterais.  Cabe fazer a defesa do Itamaraty e das boas relações Argentina-Brasil, em nome do puro interesse nacional.
Ao lado da profunda ignorância do PR em temas diplomáticos, pontifica uma tropa de aspones ignaros em relações internacionais, a começar pelo inepto guru expatriado, rebaixando a imagem do Brasil no contexto internacional. O Brasil está isolado na região e no plano mundial.
Os “padrões” seguidos pela atual diplomacia são todos negativos e irracionais: antimultilateralismo, antiglobalismo, antilaicismo. Seu adesismo subserviente aos EUA, a Trump em particular, é especialmente vergonhoso para a diplomacia profissional. Nunca antes... 
Falar de política externa ou de diplomacia, no caso do atual governo, parece uma contradictio in adjecto, uma contradição nos termos, pois não temos, até aqui, uma exposição clara sobre uma ou outra. Navegamos na mais completa escuridão, sem mapa e sem bússola.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 de dezembro de 2019