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quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Pressão do Itamaraty derruba almirante Flávio Rocha, ligado a Bolsonaro - Igor Gielow (FSP)

Pressão do Itamaraty derruba almirante ligado a Bolsonaro

Integrante da cúpula da Marinha, Flávio Rocha foi vetado como negociador do programa nuclear brasileiro

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/09/pressao-do-itamaraty-derruba-almirante-ligado-a-bolsonaro.shtml

Folha de S. Paulo, 28/09/2023
A pressão do Ministério das Relações Exteriores derrubou um dos integrantes do Almirantado, a cúpula da Marinha, mais associados ao governo de Jair Bolsonaro (PL).


O almirante-de-esquadra Flávio Rocha não será mais secretário de Segurança Nuclear e Qualidade da Força, e deverá ficar sem cargo executivo até ir para a reserva, em março do ano que vem.

A crise foi tratada discretamente no governo Lula, para evitar mais marola numa relação que começou complexa com a Marinha, ainda mais em tempos de investigação sobre intentonas golpistas e afins.

O último chefe da Força sob Bolsonaro, Almir Garnier, se recusou a conversar com o então ministro da Defesa indicado, José Mucio, e não compareceu à passagem de comando para Marcos Sampaio Olsen, ato inédito na história da instituição desde a redemocratização de 1985.

Garnier também foi citado na delação de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, como o único chefe de Força que abraçou a ideia de um golpe contra o resultado das eleições vencidas por Lula (PT) no ano passado.

Rocha foi muito próximo do ex-presidente. Logo após receber a quarta estrela que identifica o topo da hierarquia, em 2020, ele foi convidado por Bolsonaro para ser seu secretário de Assuntos Estratégicos, com assento no Palácio do Planalto.

Considerado muito preparado e fluente em seis línguas, passou gradativamente a ocupar o espaço de um Itamaraty então destroçado pela gestão de Ernesto Araújo, aquele que dizia ser uma honra a qualificação de pária internacional então dada ao Brasil.

Quando Bolsonaro conversou com Xi Jinping para tentar amainar uma crise criada por seu filho Eduardo, que entrou em choque com a diplomacia chinesa, ele estava na teleconferência. Logo, missões sensíveis ao exterior lhe foram confiadas, como viagens para negociar armas em países árabes e a discussão para a adoção de combustível russo para o submarino nuclear brasileiro

Todo esse protagonismo incomodou a diplomacia, a exemplo do que ocorrera durante os 13 anos em que o já falecido Marco Aurélio Garcia foi assessor de Assuntos Internacionais das Presidências de Lula e Dilma Rousseff (PT) e, em menor escala, agora com o ex-chanceler Celso Amorim no mesmo cargo no Planalto.

Com a virada do governo e o mal-estar generalizado na Marinha, sobrou para Múcio, que conhecia Rocha desde os tempos em que o almirante era assessor parlamentar da Marinha, acomodar a situação.

No papel, o militar foi nomeado em 10 de março como assessor do gabinete do comandante Olsen. Na prática, ele assumiu as funções de secretário naval de Segurança Nuclear e Qualidade, na Diretoria-Geral de Desenvolvimento Nuclear e Tecnológico da Força.

Era uma saída lógica, na visão da Marinha, dado o envolvimento de Rocha em assuntos nucleares enquanto era secretário. A Força lidera os esforços brasileiros no setor desde 1979, e o governo Lula determinou uma retomada de iniciativas na área —a primeira, a transferência da diretoria do setor para São Paulo, no campus da USP, para enfatizar o caráter de benefícios civis do programa. 

Sem publicidade, em 20 de maio Rocha embarcou para uma viagem à Europa, na qual participou primeiro de uma reunião do comitê que discute o desenvolvimento do submarino de propulsão nuclear brasileiro no âmbito do acordo militar Brasil-França de 2009, em curso.

Depois, desembarcou em Viena para uma reunião ordinária do conselho de governantes da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), no dia 5 de junho. A sua presença causou rebuliço na missão brasileira junto ao órgão de 35 nações, no qual o país ocupa uma das duas vice-presidências.

Diplomatas com conhecimento do assunto afirmam que o problema era o caráter militar em um evento civil, ainda mais no momento em que a AIEA questiona os desígnios do Brasil, que pediu à agência um acordo para poder usar combustível nuclear em uma embarcação militar, apesar de não ter armas atômicas.

Já aliados de Rocha na Marinha viram no episódio pura inveja, sob a alegação de que ele é um bolsonarista. Seja qual for a verdade, o fato é que o Itamaraty passou a pressionar a Defesa a remover o almirante de funções executivas.

Na semana passada, Múcio e Olsen decidiram que era melhor evitar mais confusão e designaram Rocha para uma função inespecífica no Comando da Marinha. Ele seguirá com seu salário de R$ 37 mil mensais e, segundo amigos, tem se dedicado também a abrir uma empresa.

Suas funções serão incorporadas pelo diretor do programa nuclear, almirante Petrônio Aguiar, que está no cargo desde 2021. Rocha não respondeu a mensagem enviada pela Folha para comentar o caso.

No Almirantado, um colegiado de dez integrantes chefiado por Olsen, o processo caiu mal por envolver um dos seus. Por outro lado, há a compreensão de que Rocha ultrapassou limites quando aceitou trabalhar no governo Bolsonaro sendo um oficial da ativa —a maioria dos fardado que migrou para o Executivo passou para a reserva, com algumas exceções notórias como o controverso general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde.

O episódio todo comprova, mais uma vez, que as feridas da simbiose entre fardados e Bolsonaro, voluntária ou não, ainda estão por todos os lados.


O discurso de Lula na 78ª AGNU - Paulo Roberto de Almeida (Revista Órbita)

O discurso de Lula na 78ª Assembleia-Geral da ONU: entre o esperado e o fabricado

https://www.riobravo.com.br/o-discurso-de-lula-na-78a-assembleia-geral-da-onu-entre-o-esperado-e-o-fabricado/

Comentários acerca dos pontos controversos do discurso do presidente da República na 78ª Assembleia Geral das Nações Unidas.

Paulo Roberto de Almeida

O discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura dos debates na 78ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Este é o 9º que ele pronuncia, depois dos oito anteriores já feitos em seus dois primeiros mandatos, entre 2003 e 2010.

Não difere muito do tom reivindicativo e até pedagógico (ensinando ao mundo como ele poderia se comportar melhor) daqueles precedentes. Ou seja, a não ser pelo fato deste mais recente, em 19 de setembro de 2023, revelar mais abertamente algumas das opções políticas já desveladas por Lula em diversas ocasiões nos últimos nove meses. 

Vamos evidenciar apenas alguns aspectos desse pronunciamento, dadas a sua extensão (cerca de seis páginas). E as suas pretensões abrangentes, de Norte a Sul, de Leste a Oeste.

Semelhanças e o padrão burocrata

Cabe, antes de mais nada, registrar que o texto possui algumas das características típicas de todos os seus discursos num ambiente diplomático. Ou seja, uma estrutura híbrida e os seus componentes bipolares: de um lado, os elementos habituais de um discurso feito por burocratas do Itamaraty.

Basicamente um estilo mais polido, e de outro lado, os componentes partidários e ideológicos que são mais frequentemente enxertados no Palácio do Planalto. 

Antes, nos dois mandatos anteriores, e até no 1,5 mandato de Dilma, essa tarefa estava ao encargo do apparatchik do partido encarregado dos assuntos internacionais. Mais conhecido no Itamaraty como “chanceler para a América do Sul, agora é o próprio ex-chanceler desempenha a função, provavelmente ajudado por alguns petistas.

Esse primeiro lado, o diplomatês habitual, é o esperado nos discursos, com a sucessão de invectivas sobre as desigualdades sociais, étnicas e outras. Além disso, o pouco comprometimento dos países ricos em atender aos requerimentos desejados pela cooperação para o desenvolvimento dos países mais pobres. 

Assim, acrescido das questões mais presentes nas últimas décadas, como: 

  • Sustentabilidade ambiental;
  • transição energética;
  • ameaças à paz internacional derivadas das armas atômicas;
  • outras questões desse rol. 

Não há muito o que comentar nesse particular, pois é o que vêm fazendo todos os chanceleres, desde muitas décadas no passado. E o que farão também os seus sucessores, no futuro previsível. 

Vamos deixar de lado, então, a questão da fome no mundo, a desigualdade na distribuição de renda ou até a defesa da democracia. Tudo isso já era esperado e habitual.

Novidades presentes em um discurso moderno e diferente

O mais interessante, portanto, seria comentar o que há de novidade no discurso deste ano. E aí é que entram as tais novidades políticas, ideológicas e partidárias, que parecem ter se acentuado desde algum tempo.

Talvez coincidente com a volta de uma nova Guerra Fria, desta vez não mais geopolítica, como no fim do século XX, e mais econômica/tecnológica. Desde a ascensão irresistível da China à preeminência comercial planetária. 

A principal é uma crítica à própria ONU e suas instituições subordinadas, o que não era frequente nos discursos tradicionais preparados pelo Itamaraty.

Lula disse que “Quando as instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, e não da solução”. O exemplo indicado é o diferencial de ajuda dado pelo FMI aos países europeus. Segundo ele 160 bilhões de dólares, e aquele fornecido aos países africanos, no fim, apenas 34 bilhões de dólares. 

Se considerarmos o PIB conjunto da Europa e África, assim como a amplitude dos desequilíbrios que possam ter sido compensados pela ajuda do FMI. Constata-se que os países africanos receberam muito mais, pelo porte das economias e pela renda per capita. Não se vê, por outro lado, onde é que as instituições de Bretton Woods e a OCDE fizeram a “apologia do Estado mínimo”. Quando esses órgãos são o mais próximo que se possa ter, nas economias de mercado, de planejamento econômico e de intervencionismo na regulação macroeconômica e setorial.

Divergências econômicas 

Fica também difícil de constatar onde o “neoliberalismo agravou a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias”. Sendo que seu legado seria “uma massa de deserdados e excluídos”.

Os dois maiores países antes guiados pelo socialismo ou pela ação diretiva do Estado, China e Índia, são justamente aqueles que retiraram centenas de milhões de miseráveis de uma pobreza ancestral graças ao fato de terem abandonado o dirigismo anterior e aderido a versões mais abertas de uma economia de mercado, inclusive por uma inserção deliberada em todos os tipos de transações globalizadas.

Mas o argumento mais surpreendente se refere à guerra na Ucrânia: segundo Lula, ela “escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU.” Como coletiva? A guerra de agressão foi perpetrada por um violador claramente identificado coletivamente, condenado em resoluções da própria AGNU, mas que NUNCA é referido por Lula, o que se parece bem mais com uma espécie de miopia individual, ou coletiva, dos que escreveram o discurso para o presidente.

Lula e o seu discurso com um teor crítico e reflexivo

Lula também é crítico de “toda tentativa de dividir o mundo em zonas de influência”, o que é desmentido pela sua exaltação da ampliação do Brics – descrito por ele como “uma plataforma estratégica para promover a cooperação entre países emergentes” – e por seus recorrentes apelos à construção de uma “nova ordem global”, de sabor, teor e finalidades claramente antiocidentais, dadas seus reiteradas críticas aos países ocidentais que “estão sustentando a guerra na Ucrânia pelo fornecimento de armas”, o que é, no mínimo, um convite ao desaparecimento do país invadido pela força das tropas invasoras. 

O crescimento do Brics, decidido na cúpula de Joanesburgo – mais 120% de membros, mais uma vez pelas mãos da China, como já tinha sido o caso da África do Sul – fortalece, segundo Lula, “a luta por uma ordem que acomode a pluralidade econômica, geográfica e política do século 21”.

O sentido dessa ampliação aponta claramente para uma oposição ao “neoliberalismo falido”, que, na visão do presidente, foi substituído por “um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário”. Algum jornalista talvez devesse perguntar a Lula o que ele está achando do governo de Putin, que tem feito leis de nítido teor conservador, homofóbico e autoritário. 

O único jornalista do qual ele se lembrou foi Julian Assange: Lula não deve ter sido informado da situação do jornalista russo Vladimir Kara-Murza, condenado por Putin a 25 anos de cadeia supostamente por “espalhar desinformação”.

Os antigos discursos puramente diplomáticos de Lula eram bem mais coerentes com a democracia e os direitos humanos, que Lula diz defender, e bem menos divergentes com uma realidade fabricada por seus assessores puramente partidários para este discurso de 2023.

Paulo Roberto de Almeida é diplomata, professor e escritor


Nota do Editor: Paulo Roberto de Almeida participou, recentemente, do terceiro episódio da atual série de Videocasts da Rio Bravo, “As Instituições Estão Funcionando?” Confira a íntegra da entrevista a partir do link a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=1JJC4Q9eB7E

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quarta-feira, 27 de setembro de 2023

"Brasil pode liderar processo de paz entre Ucrânia e Rússia": entrevista com embaixador Andrii Melnyk (Deutsche Welle)

POLÍTICABRASIL

"Brasil pode liderar processo de paz entre Ucrânia e Rússia"

Nádia Pontes enviada a Brasília / com Jean-Philip Struck (Bonn)

Deutsche Welle, 27/09/2023

https://www.dw.com/pt-br/brasil-pode-liderar-processo-de-paz-entre-ucr%C3%A2nia-e-r%C3%BAssia/a-66927851

 

Recém-chegado ao Brasil, embaixador ucraniano Andrii Melnyk pede criatividade a diplomacia brasileira para criar paz duradoura na guerra na Ucrânia. Mas, segundo ele, iniciar negociações agora faria pouco sentido.


Andrii Melnyk é o novo embaixador da Ucrânia no Brasil

 

Recém-chegado a Brasília, o novo embaixador ucraniano Andrii Melnyk pretende mobilizar a diplomacia brasileira a "pensar fora da caixa" e liderar o processo de paz entre as vizinhas Ucrânia e Rússia. Desde fevereiro de 2022, os ucranianos enfrentam a invasão de tropas russas e tentam resistir com ajuda internacional.

Para o representante diplomático do governo ucraniano no Brasil, um dos primeiros passos para essa aproximação entre Kiev e Brasília foi organizar o encontro de mais de uma hora entre Luiz Inácio Lula da Silva e Volodimir Zelenski, em Nova York, na última semana, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas. Segundo Melnyk, a conversa franca entre líderes é vista como chance de o mandatário brasileiro entender melhor a situação e se aproximar do país do Leste Europeu.

Durante a entrevista concedida à DW na embaixada da Ucrânia, abrigada numa casa alugada em Brasília, Melnyk argumentou que seria importante receber armas do Brasil, o que, segundo ele, se constituiria numa ajuda humanitária.

DW: Na avaliação do senhor, quais são os maiores equívocos no Brasil sobre a guerra que a Rússia está travando contra a Ucrânia, na sociedade e no plano político? Como planeja combatê-los?

Andrii Melnyk: Os brasileiros sabem que existe o Estado independente da Ucrânia. Mas, basicamente, o conhecimento é muito escasso. Mas não é culpa dos brasileiros, é nosso trabalho que não tem sido feito de forma apropriada nas últimas três décadas.

É nosso trabalho e nossa missão nos aproximarmos da sociedade brasileira e da comunidade política, fazer este contato e explicar nossa causa. Ficamos sem embaixador aqui por um longo período e isso atrapalhou a comunicação sobre o que aconteceu quando ocorreu a grande invasão em fevereiro de 2022.

Essa guerra de agressão, que pode parecer distante dos brasileiros geograficamente falando, afeta também a essência do DNA do Estado brasileiro, e ameaça as fundações da ordem internacional. E o Brasil é um dos países líderes dentro da ONU que tenta fortalecer esta ordem.

Minha segunda tarefa é mostrar para os brasileiros que a Ucrânia é mais do que apenas uma vítima desta guerra terrível. Temos que contar as histórias das pessoas. Ano passado, eu estava em Kiev, eu vivenciei os bombardeios noturnos diários. Muitos amigos meus morreram na linha de combate, muitos se feriram. Civis perderam suas vidas, suas casas. Temos também que contar a história da Ucrânia, o maior país em termos geográficos da Europa. Isso é algo que temos em comum com o Brasil, como o maior país da América do Sul.

Na Alemanha, onde o senhor foi embaixador da Ucrânia de 2015 a 2022, ganhou a reputação de ser franco e de criticar abertamente a classe política do país, incluindo a liderança do governo. O senhor pretende adotar a mesma postura no Brasil?

Honestamente, eu não sei ainda o caminho que eu devo escolher. É fato que não haverá um cenário de 'copia e cola', cada situação é única. Eu me sinto honrado por ter servido na Alemanha, tive o privilégio trabalhar lá por sete anos antes da grande invasão russa.

Eu era muito franco quando a guerra começou. Era um apelo sincero meu. Eu não conseguia entender por que a Alemanha, que se envolveu tanto nas negociações de Minsk e que tentava nos ajudar a resolver a primeira agressão russa com a anexação da Crimeia, em 2014, sabendo de todos os riscos, não nos forneceu armas. Minha convicção pessoal é que isso teria prevenido a atual invasão russa, iniciada em 2022. Tendo esse enorme peso geopolítico e econômico, a Alemanha poderia ter desempenhado outro papel para conter a Rússia ou mesmo evitar a guerra, pelo menos naquele momento. Isso não aconteceu.

No Brasil, a tarefa é diferente porque a conexão, por assim dizer, não é tão forte. Há uma comunidade de imigrantes ucranianos aqui de mais de 130 anos no Paraná, existem mais de 600 mil brasileiros com raízes ucranianas. Mas, basicamente, para a maioria das pessoas aqui, a Ucrânia ainda não parece ter um grande significado por enquanto.

Minha meta aqui é contar a história da guerra. Há muitas coisas que precisam ser faladas. Podemos começar com o sequestro de crianças ucranianas: milhares delas foram levadas à força para a Rússia. Elas são dadas para adoção forçada a famílias russas para serem reeducadas. Isso está acontecendo agora, no século 21. É pura barbaridade. Há prisioneiros de guerra ucranianos sendo torturados.

"Pode-se até permanecer neutro de alguma forma"

Há muitos assuntos práticos que têm significado para nós, não só do ponto de vista político e diplomático. A diplomacia brasileira faz parte das mais fortes do mundo, com grande tradição. O Itamaraty é um templo da diplomacia, com todas as pré-condições para ter orgulho dessa tradição, mas a sociedade, o jornalismo, ativistas políticos, ONGs – todos podem desempenhar um papel para influenciar a liderança russa a libertar crianças, na troca de prisioneiros de guerra.

São questões humanitárias. Pode-se até permanecer neutro de alguma forma. Há muito o que pode ser feito aqui para nos ajudar a aliviar as consequências desta guerra terrível. Há áreas enormes na Ucrânia que estão cheias de minas. O Brasil também poderia ajudar a liberar essas áreas, enviando especialistas que podem ajudar a tornar possível o retorno seguro dos moradores.

Na área de meio ambiente, o Brasil também pode ajudar. Nós estamos falando de crimes de guerra em escala industrial que foram cometidos desde o primeiro dia. Quase ninguém fala sobre os danos ecológicos: florestas destruídas, campos que não podem mais ser cultivados nos próximos anos ou décadas.

Como o Brasil, a Ucrânia é um celeiro mundial importante. Então não é só uma guerra nossa, é uma guerra que tem repercussão em outros países, [é uma] ameaça à segurança alimentar.

Liderança do Brasil e obrigação moral

O Brasil pode nos ajudar a garantir que haverá um julgamento de todos esses crimes humanitários. Todos aqueles que perpetraram crimes de guerra, estupro, tortura, que mataram civis, devem ser julgados. Se isso não for feito, se não recuperarmos as áreas ocupadas, haverá um problema, um mau exemplo ficará para outros países, que poderiam cometer os mesmos crimes de guerra, genocídio, crimes contra a humanidade.

O Brasil tem esta ambição de ter um papel de liderança, que é ancorada em seu tamanho geográfico, demografia, em sua economia, em sua cultura. Acho que é uma obrigação moral estar mais engajado e mostrar esta liderança para que outros possam seguir. 

Em abril, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que a decisão de iniciar a guerra foi tomada tanto pela Rússia quanto pela Ucrânia. Na semana passada, durante seu pronunciamento de abertura na Assembleia Geral das Nações Unidas, ele optou por adotar um tom distante em relação à guerra na Ucrânia, segundo analistas ouvidos pela DW. Ele não mencionou especificamente a Rússia, apenas a guerra na Ucrânia, num contexto de outros conflitos no mundo – segundo os especialistas, não houve ênfase no conflito. Isto pode não ter agradado ao presidente ucraniano Zelenski, que não aplaudiu Lula. Como o senhor vê a posição do Brasil em relação à guerra na Ucrânia? Essa posição é equivocada?

Eu não diria isso. Em sua posição oficial, o Brasil pertence ao grupo, agora composto por 141 países, que, em fevereiro, na Assembleia Geral da ONU, condenou a invasão, condenou a violação das leis internacionais, além de fazer parte da ampla comunidade internacional que tenta nos ajudar a encontrar uma solução pacífica.

Eu estou muito contente e orgulhoso que pudemos organizar este primeiro encontro entre Lula e Zelenski em Nova York na semana passada. Até então, os dois haviam se falado apenas uma vez por telefone em março. Depois disso, houve muitas declarações, muitas emoções, e isso não foi útil. Ninguém se beneficia disso e ninguém conseguia entender o que estava acontecendo – tomando por base a posição oficial do Brasil, segundo a qual o Brasil está a bordo conosco.

Não foi fácil organizar este encontro devido a esse volume de emoções que foram criadas de forma artificial. Eles conversaram cerca de uma hora e dez minutos. Foi uma conversa franca e honesta entre dois líderes muito ambiciosos, sem grandes expectativas, mas com o desejo de entender melhor a posição de cada um. Foi um bom começo. Podemos chamar de grande avanço, depois deste círculo vicioso de concepções e interpretações equivocadas vividas no passado.

"Iniciar negociações agora faria pouco sentido"

Não temos um processo de paz. Nós só temos uma guerra brutal porque Putin não está disposto a negociar. E isso foi um dos tópicos do encontro. Meu presidente tentou explicar para Lula por que iniciar negociações [de paz] agora faria pouco sentido. Não há uma mínima confiança sobre o que o chefe do Kremlin diz ou faz. As promessas que ele faz são palavras vazias.

Nós queremos paz. O Brasil pode ajudar a preparar o terreno para essas negociações. Chegar a um cessar-fogo não é o suficiente para atingir uma paz duradoura. Poderia acontecer o mesmo que ocorreu com o Acordo de Minsk, que não foi implementado, e muitos países negligenciaram as consequências e uma grande guerra se instalou no nosso território.

O senhor então acredita que o Brasil poderia liderar este processo das negociações de paz?

Certamente. Para mim, o Brasil é predestinado a ter um papel mais ativo por diferentes razões. Este tem que ser um processo muito criativo, já que não há um exemplo similar no passado recente. Pela primeira vez, há um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU atacando, agredindo, invadindo um país vizinho e com um direito de vetar qualquer decisão política.

É um dos principais problemas da ordem legal atual que está ameaçada pela Rússia e não há um instrumento para forçar o país agressor a parar a invasão. Nosso apelo a todos os amigos e parceiros brasileiros é pensar fora da caixa, pensar de forma criativa. Esse é o maior desafio que a humanidade enfrenta depois da Segunda Guerra, um trauma que continua vivo para nós: na Segunda Guerra, perdemos cerca de 10 milhões de ucranianos.

Como na Segunda Guerra, os civis são os que mais sofrem, porque a Rússia usa táticas sinistras de colocar os civis como alvo, atacando vilas, hospitais, escolas, museus, empresas, portos. No campo de batalha, a Rússia não se mostra como um país com um grande Exército. Parece que, para compensar isso, eles atingem os civis para criar terror, forçar os ucranianos a deixar o país, ou ir para outras regiões mais distantes do conflito.

Atualmente, as estruturas existentes dentro da ONU não oferecem soluções para nos ajudar a parar a guerra por meio diplomático. Estamos pedindo ajuda para pensar nesta solução não só ao governo brasileiro, mas também a think tanks, ONGs, universidades.

O Brasil deveria fornecer armas para a Ucrânia?

Primeiro, é uma decisão de total soberania do governo brasileiro, que tem que cuidar de seus interesses e formular sua própria agenda. Sob o nosso ponto de vista, podemos falar apenas da perspectiva de vítimas, de civis. Gostaria de ressaltar isso novamente, pois uma coisa que não é sempre compreendida aqui é a natureza maligna desta guerra. A propaganda russa diz todo o tempo aqui que se trata de um conflito menor, quase uma guerra civil, que a Rússia está lutando contra o Ocidente, contra a Otan – que seria má – que desejaria invadir o território dela.

E gostaria de repetir esse dado: esta é uma guerra que está sendo travada contra alvos que são 94% civis. Drones, foguetes e todas as outras armas que eles usam são direcionadas para civis em 94% dos casos. Isso muda tudo.

É uma guerra que está sendo travada contra idosos, crianças, mulheres. Se não fosse o sistema de defesa aéreo, fornecido por países como a Alemanha, que abate os drones e foguetes que voam literalmente sobre nossas cabeças na Ucrânia, mais escolas e casas teriam sido destruídas e mais pessoas teriam morrido.

Desse ponto de vista, são um pedido e uma expectativa justos por parte da sociedade ucraniana. O Brasil poderia ter um papel de liderança também aqui na América Latina nesse sentido. Enviar munição para sistemas de defesa como os Gepard, enviados pela Alemanha em 2022, poderiam salvar vidas, não seria participar das hostilidades, ou assumir um lado ou outro do conflito. Eles ajudam os nossos militares a "fechar o céu", deixar as cidades mais seguras.

"Ninguém espera que o Brasil se envolva nas zonas de conflito"

Ninguém espera que o Brasil se envolva nas zonas de conflito, mas que ajude de outras maneiras, como, por exemplo, com a retirada de minas, fornecendo munições para o sistema de defesa aéreo e veículos para transporte de feridos nas cidades bombardeadas. O Brasil também poderia nos ajudar na questão da energia, com geradores e outros equipamentos que poderiam ser enviados às cidades e que ajudariam os ucranianos a sobreviver ao próximo inverno [no Hemisfério Norte], que será uma estação muito difícil.

Por que a Ucrânia até agora praticamente não conseguiu mobilizar um apoio significativo no Sul Global?

É uma pergunta difícil, e ainda não temos uma resposta apropriada. Há muitos fatores que, infelizmente, nós deixamos de lado nestas três décadas depois de termos conquistado novamente a nossa independência.

Nós não investimos muito tempo e atenção em todos os países que agora são chamados de Sul Global, um termo do qual eu não gosto muito porque coloca países muito diferentes numa mesma denominação. Em parte, foi um erro nosso.

Nós estivemos muito concentrados em outras questões importantes, como entrar para a União Europeia e para a Otan. Se fizéssemos parte desta comunidade de defesa, a Ucrânia não teria sido agredida pela Rússia.

Não tínhamos recursos suficientes para prestar atenção a outros países. Agora, essa guerra abriu nossos olhos, tínhamos que ter sido mais ativos na América Latina, Ásia, em outras regiões. Ter uma embaixada não é suficiente. Ao mesmo tempo, os russos têm estado presentes não apenas diplomaticamente, mas com suas missões de negócios e cobertura de mídia.

Agora esta tarefa se tornou, talvez, cem vezes mais difícil. Estamos tentando corrigir isso. Estamos abrindo várias representações diplomáticas na África, mesmo gastando atualmente 60% do nosso PIB com Defesa. Não esperamos resultados rápidos. Precisamos investir pelo menos uma década nesta expansão diplomática, ajudando nossos negócios a estarem mais presentes também nestes países.

Lula disse recentemente que o Brasil não prenderia Vladimir Putin se ele comparecesse à cúpula do G20 no Rio de Janeiro em 2024. Mais tarde, ele disse que caberia às autoridades judiciais brasileiras decidir. O que o senhor acha disso?

Tudo o que eu posso dizer é que Ucrânia gostaria que o presidente Zelenski fosse convidado para a cúpula que reúne todos os grandes líderes das 20 nações mais ricas. É algo que nós já dissemos aos nossos amigos brasileiros.

Nós gostaríamos de nos engajar com a presidência brasileira para que esta presidência do G20 fosse bem-sucedida. E não estamos falando apenas da agenda da cúpula, que inclui combate à pobreza, às desigualdades, aborda questões da Amazônia, mas também de temas como restaurar a ordem mundial. Isso é do nosso interesse.

Se o Sr. Putin estará presente ou não, isso é uma decisão dos nossos amigos brasileiros. Nosso desejo é que, durante a presidência do Brasil, a Ucrânia possa estar entre os participantes, talvez como convidados especiais – já que não somos membros do grupo – para apresentar nossa causa, a de uma guerra que temos que travar por se tratar de uma questão de existência.

A partir desta perspectiva [de manutenção da ordem mundial], penso que seria de interesse do Brasil e de outros países-membros do G20, talvez até para a Rússia, estar presente no Rio para trocar visões. Espero que meu presidente possa visitar o Brasil em 2024 (antes ou durante a cúpula do G20). Seria um sinal de visão ampla sobre essa ordem global e ajudaria o Brasil a nos entender melhor.

Levando em consideração o interesse do Brasil em se tornar membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, que deve ser reformado, o país vai precisar de aliados e amigos no Leste da Europa.

Como o senhor acha que essa guerra vai acabar?

Para mim, como cidadão da Ucrânia, não apenas como diplomata ou como embaixador, pode não haver outra saída do que a Ucrânia libertar todas as áreas que foram ocupadas, incluindo a Crimeia. Ou seja, só quando a Ucrânia tiver restaurado as suas fronteiras internacionalmente reconhecidas a partir de 1991 é que se poderá falar numa paz duradoura.

É importante enfatizar isso porque, como vocês provavelmente sabem e ouviram, e também aqui no Brasil, tem havido algumas discussões sobre possíveis linhas de compromisso, e uma das sugestões é que Crimeia deva ser colocada entre "colchetes" e a Ucrânia apenas tenha que se esforçar para libertar os territórios que foram ocupados depois de fevereiro de 2022.

Se a comunidade internacional permitir que este falso compromisso seja alcançado, isso não garantiria uma paz duradoura. Essa ocupação já dura mais de nove anos. Se a questão da justiça for simplesmente deixada de fora deste futuro acordo de paz – que esperamos que seja universal e global –, qualquer que seja a forma que assuma, isso significaria que dezenas de milhares de crimes de guerra poderiam não ser levados à Justiça e isso não é nada bom para a ordem global.

E a última, mas não menos importante, questão é, obviamente, a questão das garantias futuras. Como prevenir, como garantir, por meios diplomáticos, que a Rússia não iniciará uma nova guerra semelhante ou talvez ainda mais brutal no futuro.


terça-feira, 26 de setembro de 2023

O exodo armênio, milhares de anos depois do primeiro - Ishaan Tharoor (WP)

 Ishaan Tharoor (WP), September 26, 2023