sábado, 16 de junho de 2007

735) Um diálogo sobre a globalização

O texto que segue abaixo comenta um artigo do economista Gilberto Dupas, “Ainda há tempo para ousar” (OESP, 16 Jun 07), que pode ser lido neste link.
O autor, Gilberto Dupas, respondeu-me em 17 de junho, e seu texto foi por mim transcrito no post 737, acima.

Globalização Perversa e Políticas Econômicas Nacionais: um contraponto
Paulo Roberto de Almeida
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)

Um diálogo à distância com Gilberto Dupas, a propósito de seu artigo “” (O Estado de São Paulo, sábado, 16 de junho de 2007, pág. A-2).

1) “O Brasil perdeu uma oportunidade de inserção benévola na perversa lógica da economia global a partir de sua abertura econômica.”
PRA: Processos de inserção não deveriam receber qualificativos ou adjetivos, uma vez que os processos de integração à economia mundial não são pré-determinados, para que deles possamos decidir, ex-ante, que deles aceitaremos apenas aspectos favoráveis, rejeitando os menos risonhos, mormente quando se trata da globalização, que não é comandada por nenhuma força identificável em particular. Países decidem estabelecer medidas de política econômica que são mais ou menos abertas a influxos externos por decisões conscientes de suas autoridades e estima-se que, a menos que sejam particularmente estúpidas ou perversas, tenham elas feito um cálculo de custo-benefício da abertura econômica e concluído que o exercício era importante para o país.
Da mesma forma, não há nenhuma lógica “perversa” – ou “benéfica”, que seja – na economia global, pela simples razão que essa economia global, supondo-se que funcione da mesma forma que sistemas complexos, não obedece a critérios de utilidade racional, unitários ou comandados a partir de um centro. Ninguém está no comando da globalização, ponto. Isso precisaria ficar muito claro aos favoráveis e aos opositores da globalização, que pedem seja uma globalização não-assimétrica, seja um outro mundo possível. Tudo isso é absolutamente inócuo.
Por outro lado, agora no plano puramente pessoal, o Gilberto Dupas tem uma tendência conhecida a ver aspectos desfavoráveis na globalização. Acredito que um chinês, retirado de sua aldeia miserável do interior para um salário razoável em Xangai, poderia ter uma opinião claramente distinta da economia mundial e de suas oportunidades “positivas”.
Concluindo: não creio que o Brasil tenha perdido nenhuma oportunidade ao se abrir, uma vez que ele apenas seguiu uma tendência geral à qual ele antes era contrário. Não deveria haver nenhuma dúvida a respeito dos efeitos globalmente positivos da globalização: os países que nela se inseriram, sem adjetivos, mas com mais intensidade, retiraram benefícios, como provam os casos da China e da índia, justamente. Qualquer que seja o julgamento que se possa fazer sobre a qualidade de suas políticas econômicas nacionais, o fato é que nenhum benefício delas adviria se eles não tivessem conduzido processos de abertura a capitais e comércio estrangeiros.


2) “Ainda que necessária, ela foi açodada e sem a retaguarda de um projeto estratégico que minimizasse riscos e capturasse vantagens da fragmentação das cadeias produtivas globais. China, Índia, Coréia do Sul e Chile são as provas de que isso era possível.”
PRA: “Açodada” não é bem o termo para um país que faz um reforma tarifária modesta, que depois de concluída viu tarifas serem reescalonadas para o alto, em todas as demais oportunidades, e que ainda mantém uma média e picos tarifários superiores aos da maior parte dos países emergentes (com algumas exceções pontuais que mereceriam qualificação).
“Projeto estratégico” é geralmente uma ilusão conceitual, pois ele raramente existe em circunstâncias normais, sendo mais um conceito ex-post para “explicar” o que deu certo. Se não deu certo, vai para a lata do lixo da história e ninguém mais fala do conjunto de políticas exercidas naquela momento ex-ante. Todos os países possuem políticas e práticas, algumas mais exitosas do que outras, em função de variáveis que devem ser explicadas caso a caso, e não como o resultado de algum desenvolvimento teleológico que já estava pré-determinado em sua origem.
A única coisa que podemos afirmar dos “projetos estratégicos” dos países citados é que eles estavam dispostos a aproveitar as oportunidades oferecidas pela economia global, justamente, mobilizando seus fatores produtivos e seus potenciais competitivos em função dos mesmos mecanismos ricardianos e das vantagens dinâmicas percebidas que poderiam ser exploradas de forma positiva no contexto altamente competitivo da economia global. Fora essa qualificação absolutamente genérica, e portanto inútil para todos os efeitos, não há rigorosamente nada que se pareça em cada experiência nacional, em termos de “projeto estratégico”.


3) “Países muito diferentes entre si, a partir de um diagnóstico sensato de suas potencialidades e dos espaços de inserção - e utilizando políticas econômicas menos ortodoxas -, conseguiram crescer, de 1990 a 2005, a médias anuais elevadas: China, a 10%; Índia, Coréia do Sul e Chile, próximo de 6%; enquanto o Brasil amargou pouco mais de 2%.
PRA: Esse crescimento não foi “dado” pela globalização e sim obtido por cada um deles a partir da demanda externa de seus produtos e da demanda interna criada por uma nova dinâmica econômica que atuou em sinergia com os novos fatores produtivos, potencializados em grande medida pela inserção na economia mundial (que necessariamente representa mercados, capitais, know-how, melhorias tecnológicas, etc). Países temerosos ou cautelosos em se lançar nessa ciranda geralmente acabam ficando para trás.
Mas os principais fatores de crescimento são sempre internos, uma vez que a interface externa nem sempre representa a maior parte do PIB. Por isso devem ser levados em conta no processo de crescimento os demais fatores de ordem econômica interna, que podem explicar a taxa de crescimento: variáveis fiscais, monetárias, mercado de capitais, a existência ou não de crowding-out pelo Estado, a infra-estrutura (material e institucional) e a logística favoráveis, a estrutura tributária, o ambiente de negócios, e muitos outros fatores mais.
Comparando-se os registros históricos de inflação, equilíbrio fiscal, investimentos produtivos e ambiente de negócios de todos esses países, acredito que teríamos muito mais razões para diferenciá-los em termos de taxas de crescimento do que qualquer “projeto estratégico” que dificilmente poderia ser comparado sem enorme subjetivismo de nossa parte. Indicadores e séries estatísticas são fatores objetivos à disposição de qualquer um, e posso apostar, preventivamente, que nossos indicadores macro e microeconômicos eram e são globalmente negativos para fins de crescimento econômico: poupança, investimentos, tributos, créditos, infra-estrutura, governo, etc. Não creio que seja necessário montar tabelas comparativas para evidenciar essas realidades, conhecidas da maior parte das pessoas que trabalham com dados estatísticos.
E o que dizer de “políticas econômicas menos ortodoxas”? Trata-se de uma afirmação inacreditável para quem conhece as antigas políticas seguidas pela China socialista, pela Índia nacionalista e “planejadora” e pelo Chile de Allende, “cepaliana”. Toda a evolução das políticas econômicas desses países foi sempre no sentido de adesão aos princípios gerais que coincidem com os chamados good fundamentals, qualquer que seja o resíduo “nacionalista” e “heterodoxo” de suas políticas setoriais. Esses países só deslancharam porque, justamente, eles se afastaram daquelas políticas seguidas anteriormente. Ainda que se possa recusar, para efeitos puramente de “nacionalismo” econômico, a classificação de “consenso de Washington” para suas políticas econômicas, um exame mesmo perfunctório de seu sentido geral revela, não um afastamento, mas sim uma concordância básica com aquele conjunto de regras.


4) “A China utilizou múltiplas estratégias, a maioria ao arrepio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Organização Mundial do Comércio (OMC), atraiu enorme fluxo de investimentos diretos internacionais e se tornou grande geradora de tecnologia.”
PRA: Afirmação arriscada, uma vez que a China, antes de ingressar no FMI e na OMC, podia sim ostentar políticas contrárias a essas instituições e suas regras estatutárias. Se algo houve, depois, foi justamente no sentido da convergência dessas políticas com as regras multilaterais, e portanto a afirmação peca por inconsistência lógica. De resto, não há nada que indique o que sejam essas “múltiplas estratégias”, a não a ser atração contínua de capitais estrangeiros e a busca incessante de mercados externos. O que a China fez, isso sim, foi multiplicar estratégias e políticas ao arrepio completo de suas antiquadas regras restritivas e de suas leis nacionais completamente defasadas para uma inserção na globalização. Posso afirmar isso por experiência própria, pois integrei o primeiro GT do GATT para examinar o ingresso da China, em 1987, e a tarefa era, justamente, a de colocar a legislação chinesa de comércio exterior em compasso com a das demais partes contratantes ao GATT (não se falava então de OMC). Pode-se dizer que, ainda que maneira “gauche”, a China vem cumprindo razoavelmente bem o que se espera dela nas instituições multilaterais.


5) “A Índia cuidou das grandes empresas locais, zelou por seu mercado interno e virou o maior produtor de software do mundo.”
PRA: Qualquer pessoa que conheça a Índia sabe dizer que o que não foi privilegiado foi exatamente o seu mercado interno nesse processo de “inserção benévola” com a economia global. O que explica o sucesso da Índia nessa área é justamente a existência de muitos indianos nos EUA e na Europa que souberam aproveitar as oportunidades existentes nesses mercados para oferecer serviços baratos que atendem justamente o mercado externo, a partir de suas bases indianas, necessariamente mais baratas do que os mesmos serviços oferecidos nos mercados consumidores. Assim como Lênin dizia que o comunismo soviético era o socialismo mais eletricidade, o êxito indiano na globalização poderia ser explicado como sendo know-how ocidental mais engenheiros indianos (e matemáticos, físicos, tecnólogos de todo tipo).
Por fim, acredito que não foi exatamente a “Índia” – aqui algo equivalente ao Estado – que obteve esse sucesso, mas as empresas indianas, que puderam expandir-se graças, justamente, à liberação das antigas amarras do Estado indiano. Se isso são políticas “heterodoxas” é duvidoso e incerto, pois o sentido geral é o do alinhamento com as políticas econômicas favoráveis à inserção globalizada.


6) “A Coréia do Sul lidou com a pesada crise asiática do final do século, reformulou seus grandes grupos nacionais, lidera setores de tecnologia de ponta e agora investe pesadamente na China.”
PRA: A Coréia já era desenvolvida antes de seu desastre financeiro de 1997-98, e seus grupos já estavam preparando-se para enfrentar a concorrência global muito antes disso. Os desastres incorridos foram uma das muitas bolhas financeiras que sempre ocorrem em processos de crescimento rápido e de expansão indevida da oferta de dinheiro e das bolsas de futuros, por excesso de otimismo dos jogadores. Desvios financeiros dos chaebols coreanos não têm muita conexão com a capacitação tecnológica exibida por seus engenheiros, que já estavam produzindo patentes em “excesso” muito antes disso.


7) “E até o Chile, apontado como o solitário exemplo de neoliberalismo bem-sucedido na América Latina, teve a prudência de não privatizar o cobre, sua grande fonte de exportações, manteve uma meta de inflação razoavelmente flexível e permanentes controles do capital especulativo.”
PRA: O sucesso do Chile não tem absolutamente nada a ver com a nacionalização do cobre: ele teria ocorrido – e talvez até pudesse ter sido maior – mesmo na liberalização e na privatização desse importante setor provedor de divisas para a economia chilena, divisas que continuariam entrando num regime privado. A nacionalização apenas serviu para dar dinheiro extra aos militares que se equiparam de forma talvez excessiva para os padrões necessários (ou talvez requeridos no caso do Chile, em face da Bolívia e do Peru ainda reinvindicantes). A Vale do Rio Doce é absolutamente privada há mais de uma década e aumentou enormemente as exportações BRASILEIRAS e trouxe divisas ao Brasil como nunca antes. Aliás, num regime privado, ela se tornou internacional e pode adquirir empresas em outros países, o que a Codelco chilena ainda não fez e não se sabe se o fará: a internacionalização é algo absolutamente necessário par qualquer empresa hoje, e empresas estatais em geral são pouco propensas a se internacionalizarem , o que realmente é uma pena.
Conclui-se disso que a nacionalização do cobre chileno é prejudicial, não “estratégico”, para fins de globalização “benévola”. Aliás, se o Chile está extraindo grandes “lucros” com a exportação de cobre, isso se deve basicamente aos altos preços vigentes nos mercados externos, o que não tem absolutamente nada a ver com políticas econômicas ortodoxas ou heterodoxas, nacionalistas ou globalizantes, e sim a lei da oferta e da procura. Poderia ser exatamente o contrário, isto é, commodities com baixa cotação, o que daria menos “lucros” ao governo e ao exército chileno. Isso não diminuiria em nada o sucesso do Chile – ou melhor, das empresas chilenas – em outras vertentes do comércio exterior e do crescimento econômico como um todo.
Quanto ao alegado controle sobre capitais especulativos, há uma incompreensão muito grande em torno disso. O Brasil dos anos 70 mantinha, como o Chile até 1997, mecanismo de esterilização de capitais especulativos, pois atraia muitos capitais em vista das suas altas taxas de crescimento (como o Chile nos anos 90). Aplicava retenções de 25% sobre o capital aplicado em prazos menores do que 12 meses, o que é exatamente a famosa quarentena chilena. Ou seja, não há absolutamente nada de extraordinário no que o Chile fez.
Deve-se também alertar para o fato de que, na crise de 1997, o Chile suspendeu, justamente, o mecanismo de retenção, o que os alegados defensores do modelo chileno (e brasileiro) não conhecem ou se escusam de lembrar. O Brasil tem um mecanismo (IOF) que poderia ser estendido ao ingresso de capitais, caso fosse necessário utilizá-lo.
Por fim, o que distingue o sucesso chileno na globalização é o seu crescimento contínuo durante duas décadas, estimulado por exportações crescentes, com base na lei das “vantagens comparativas”. As “importações” de capital ajudaram a modernizar o seu setor de serviços, sua logística exportadora e assim colaboraram na tarefa. Controles sobre capitais estrangeiros são feitos por razões de política monetária, não para se proteger da “globalização perversa”.


8) “Todos eles praticaram taxas de juros estritamente compatíveis com o mercado internacional.”
PRA: As taxas de juros internas são sempre um equilíbrio entre a remuneração interna (descontado o risco país) e a remuneração externa dos capitais, de maneira a manter neutra a balança de capitais. Se o Brasil manteve altas taxas não foi por um decisão perversa de suas autoridades monetárias, e sim para evitar fuga de capitais que sempre ocorre quando se tenta infringir aquele equilíbrio. De fato, aqueles países possuem taxas de juros mais reduzidas do que o Brasil, mas pergunta-se quantos planos econômicos mirabolantes, quantos confiscos e calotes esses países aplicaram ao longo das últimas décadas? Comparem-se as estruturas tributárias e o já referido crowding-out...


9) “Já o Brasil teve nesses 15 anos crescimento medíocre, perdeu sua condição de grande captador externo de investimentos produtivos (FDI) após as privatizações e, mantendo sempre uma taxa de juros elevadíssima, incentivou as operações especulativas do exterior e o rentismo, em detrimento da aplicação na produção.”
PRA: Quanto ao crescimento medíocre, não há discordância. Os capitais estrangeiros afluem quando eles têm condições de obter um retorno razoável, o que é justamente obstado pelo crescimento medíocre. Eles também visam as condições de negócios e as do Brasil são horríveis. Nenhum país pratica rentismo por que quer, ou então suas elites são absolutamente irresponsáveis. O que se chama de rentismo são os juros elevados, que se explicam justamente pela péssima qualidade da política fiscal.


10) “Nossas reservas internacionais são inéditas, o que é ótimo para investidores e especuladores internacionais que vêem nisso garantia contra calotes. É o que constrói o tal “risco país” e o tão desejado investment grade.”
PRA: Concordo em que as reservas não precisariam ser tão (inutilmente) grandes. Elas poderiam ser mais sabiamente substituídas por fluxos bem mais elevados de Xs e Ms, que trariam assim os dólares de que necessitamos para cobrir as obrigações externas. Estamos com reservas equivalentes a mais de um ano de importações, quando três ou quatro meses bastariam...


11) “Estamos amortecidos por uma inflação muito baixa, gerada por importações baratas e demanda contida por juros altos. (...) A melhor política é favorecer a elevação do dólar com mecanismos que ainda estão à mão: controlar o fluxo de capital especulativo (como estão fazendo Chile e Colômbia) e baixar com muito mais coragem a taxa de juros.
PRA: Pela primeira vez em um século, talvez, nossa inflação se aproxima da média mundial. Isso não deve ser nenhum mérito, mas algo “normal”. O sucesso exportador explica a valorização cambial e qualquer medida que vise aumentar esse sucesso – desvalorizando a moeda, por exemplo – vai também pressionar a moeda para cima novamente. Não é difícil controlar “fluxos especulativos”, basta imposto e algumas simples regras. Na verdade, eles só são especulativos porque as oportunidades de lucro internamente são maiores do que nos mercados maduros, o que pode ser bom. Por outro lado, se o crowding-out não fosse tão intenso, os capitais “especulativos” seriam predominantemente nacionais.
Por fim, o que mantém a taxa de juros alta é o desequilíbrio das contas públicas, não o desejo do Copom ou a perversidade do Banco Central. O Chile “produz” superávits nominais há muito anos: algum comentário sobre isto?

Minha conclusão: O Brasil ainda tem muito a fazer para aproximar sua política econômica do qu se chama “good fundamentals”. Quando o fizer, podemos ter certeza de que vai deslanchar em termos de crescimento econômico. O que tem retido o Brasil são justamente políticas feitas para garantir o máximo de receitas para o Estado ao mesmo tempo em que diminuem as possibilidades de investimento privado.
Acredito também que podemos ousar: vamos ousar reduzir o tamanho do Estado. Apenas a título de comparação: a carga fiscal no Chile é de 18% do PIB, na China de 17%. No Brasil, como todos sabem, ela supera 35%. Algum comentário a respeito disto?


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 de junho de 2007

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