Extrema direita global se articula para minar agenda diplomática mundial
O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e o presidente da Argentina, Javier Milei, em conferência conservadora nos EUA Imagem: 24.fev.2024-Handout / Argentina's Presidency Press Office / AFPMovimentos da extrema direita mundiais articulam uma aproximação para minar a agenda diplomática globais, desmontando ou pelo menos enfraquecendo de maneira importante acordos adotados por governos nos últimos anos. O foco é neutralizar a Agenda 2030, um plano de ação capitaneado pela ONU e que tem como meta criar um sistema de desenvolvimento sustentável.
Em 2015, governos de todo o mundo estabeleceram 17 objetivos a serem trabalhados até o ano de 2030, incluindo a erradicação da pobreza extrema, a transformação da produção, a igualdade de gênero, o uso adequado de recursos naturais, a garantia de educação e o fortalecimento dos direitos humanos.
O plano passou a ser o principal eixo dos esforços internacionais de desenvolvimento, na esperança de dar um salto qualitativo inédito para o planeta até o final da década.
Desmontar o pacote, porém, passou a ser uma das principais bandeiras da extrema direita, sob o argumento de que se trata de um "plano globalista" para minar as soberanias nacionais, destruir famílias e permitir a "invasão migratória" que abalaria o mundo cristão.
Nos últimos meses, uma ofensiva de desinformação nesse sentido ganhou força, inclusive fazendo uma relação entre o pacto para acabar com a pobreza e o surgimento da covid-19. Com teorias da conspiração, os difusores da mentira sugerem que a pandemia não existiu e seria apenas um instrumento para que a agenda progressista pudesse ser implementada.
Não faltam ainda postagens que alegam que o fluxo migratório ao Sul da Itália nada mais é que um suposto eixo da Agenda 2030, camuflado de "redução de desigualdade". A meta de educação de qualidade passou a ser acusada pela extrema direita de ser um instrumento para "doutrinar" as crianças, enquanto "igualdade de gênero" foi denunciada como uma suposta forma de promover a "destruição de famílias".
Nos últimos anos, líderes de diferentes partidos de ultradireita começaram a incorporar essa narrativa em seus discursos. Em 2021, por exemplo, num discurso no Parlamento espanhol, a deputada Magdalena Nevada del Campo, do partido Vox, alegou que "o globalismo - ou a Agenda 2030- não apenas não interessa aos patriotas, mas também destrói a soberania das nações". "Trata-se de uma agenda que quer destruir tudo o que dá a um homem sua identidade e destino: a família, a nação e a transcendência", disse.
A Agenda 2030, portanto, estaria baseada em ameaças ameaças falsas ao planeta, incluindo mudanças climáticas.
Desmonte começa a ser implementadoNa semana passada, porém, esse desmonte deixou de ser apenas uma narrativa e passou a ser implementado.
Ao retornar para a Argentina depois de ir aos comícios da extrema direita europeia, em Madri, o presidente Javier Milei apagou de todo seu programa de política externa as referências ao papel do país nos compromissos assumidos em 2015 sobre a Agenda 2030.
Uma circular ainda ordenou que todas as embaixadas e missões argentinas pelo mundo se distanciem de eventos, seminários, debates e negociações que tenham a Agenda 2030 como foco.
A decisão foi tomada depois de pressão feita pela cúpula do Vox, o movimento espanhol herdeiro do franquismo, e foi lamentada pela ONU.
"Na Argentina, as recentes medidas propostas e adotadas correm o risco de prejudicar a proteção dos direitos humanos", disse o alto comissário da ONU para Direitos Humanos, Volker Turk. "Essas medidas incluem cortes nos gastos públicos, que afetam particularmente os mais marginalizados, o fechamento anunciado de instituições estatais dedicadas aos direitos das mulheres e ao acesso à Justiça e uma instrução do Ministério das Relações Exteriores para suspender a participação em todos os eventos no exterior relacionados à Agenda 2030", lamentou.
"Peço às autoridades que coloquem os direitos humanos no centro de suas políticas, para construir uma sociedade mais coesa e inclusiva", pediu.
No início do ano, durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, Milei já havia classificado os compromissos sociais como "uma agenda socialista".
Ainda assim, o fato chamou a atenção do Itamaraty e de chancelarias de outros países, que passaram a entender que a conexão entre os movimentos de extrema direita não se limita apenas a subir em palanques de forma a mostrar apoio mútuo. "Começa a existir coordenação e pressão inclusive para que medidas diplomáticas de países governados pelos ultraconservadores sejam modificadas", estima um negociador brasileiro.
A "passagem ao ato" por parte da Argentina ampliou a preocupação por parte do governo brasileiro em relação ao comportamento da extrema direita e sua capacidade de congelar a agenda internacional.
O que ocorreu na Argentina, segundo experientes embaixadores, pode ser apenas o começo de um processo maior. Com a extrema direita no poder em alguns países europeus, com uma influência maior no Parlamento Europeu e a possibilidade de uma vitória de Donald Trump, nos Estados Unidos, não se descarta que a própria construção da agenda internacional dos últimos anos esteja ameaçada.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva aproveitou a reunião do G7, no final de semana, para conversar com Emmanuel Macron, da França, e Olaf Scholz, da Alemanha, sobre a necessidade de se construir algo mais sólido, numa espécie de "front democrático". Não há ainda um acordo sobre como isso poderia ocorrer. Mas uma das ideias seria uma conferência internacional, no segundo semestre, às margens da Assembleia Geral da ONU.
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