Mauricio David, meu amigo pessoal, toca num ponto crucial em torno das comemorações dos 30 anos do Plano Real (que se mantém até hoje, a despeito de uma inflação acumulada de alguns 500% talvez; mas não sei dizer exatamente). Em todo caso, o Plano se mantém.
Mas, as comemorações se fazem INTEIRAMENTE em torno dos economistas, como se o trabalho de convencer o presidente Itamar, um populista honesto, mas teimoso e até irascível, tivesse sido deles. NÃO FOI. Se não fosse a condução do embaixador Rubens Ricupero, talvez o plano tivesse morrido antes de ser lançado, pois Itamar queria congelamento de preços e outras medidas impossíveis (aumentos de salários e outros tratamentos especiais).
Maurício Davi trata essa postura como sendo uma manifestação de STALINISMO TARDIO, o que talvez seja uma imagem forte, mas quem fez a supressão dos personagens foram justamente eles. Transcrevo a nota inicial do Mauricio David, e depois a resposta que lhe deu o próprio embaixador Ricupero.
Paulo Roberto de Almeida (23/06/2024)
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De: Mauricio David
Enviada em: domingo, 23 de junho de 2024 14:48
Assunto: Sobre o homem que assinou o Real e outras histórias
Prezo muito a meus ex-colegas do Departamento de Economia da PUC/RJ, uma geração de brilhantes economistas. Mas mesmo os mais brilhantes entre os mais brilhantes estão sujeitos a falhas de caráter e de comportamento. Assim se passa com os eventos comemorativos dos 30 anos do Plano Real, obra redentora que inaugurou uma etapa nova na economia brasileira. É assim que vi muito entristecido certa arrogância e auto-suficiência dos meus ex-colegas e amigos do Departamento de Economia da PUC de “apagar” da história o importante (importantíssimo, ousaria dizer eu) papel desempenhado pelo embaixador Rubens Ricupero na implementação do Plano Real. Ex-comunista que sou, confesso que a atitude dos meus ex-colegas me lembrou muito os episódios da ex-União Soviética, nos tempos sombrios do stalinismo. Naquele período triste da história soviética, sabe-se que o próprio Stalin cuidava de mandar apagar de fotos históricas da vida política do antigo PCUS (Partido Comunista da União Soviética) as figuras caídas em desgraça (ou simplesmente de que Stalin desgostava ou passava a mal-querer). Assim é que, nesta época maldita, figuras históricas do peso de Trotsky e de Bukharin – grandes figuras da história da Revolução Russa de 1917- e muitas outras desapareciam da documentação fotográfica do período stalinista. Estes absurdos estão bem documentados e são fatos históricos conhecidos. O absurdo é que tantos anos depois – e agora que o stalinismo é apenas fato do passado (será ?)- , um novo episódio do “apagamento” de figuras das fotos históricas venha de novo acontecer. E promovida por intelectuais brilhantes vinculados à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Exagero meu ? Ouso dizer que não. Se não vejamos : nas comemorações dos 30 anos do Real eis que de súbito novamente ressurge o mecanismo do “apagar” das fotos a presença – incômoda, talvez – de figuras que exerceram papéis tão importantes quanto o Presidente Itamar Franco e seu Ministro da Fazenda, embaixador Rubens Ricupero. Já era um certo exagero o deboche com certos economistas do Real tratavam a figura do Presidente Itamar. Agora aparece o “esquecimento” do importante papel deste personagem extraordinário que foi e é o embaixador Ricupero. Já no importante evento que foi a mesa-redonda realizada na PUC/RJ recentemente (e que reproduzi aqui) o Ricupero – exemplo de servidor público devotado, artífice central da implementação do Real – foi simplesmente ignorado. Múltiplos artigos de imprensa e até livros recém lançados (todos analisados aqui neste espaço democrático, sem exceção) seguiram esta linha. Muito me recordo como o presidente Itamar era enxovalhado quando, desde o começo do seu período presidencial, insistia reiteradamente para que a sua equipe ministerial preparasse e implementasse um plano de estabilização para a economia brasileira. Era um Deus nos acuda ! A imprensa toda, a imprensa, escrita, televisada – a começar pela Globo- e as rádios martelavam diariamente que o Presidente era um tolo, um bobalhão, um caipira mineiro. Com idéias atrasadas. Ora, fazer mais um plano, diziam... Coisa deste irresponsável do Itamar... Do próprio Fernando Henrique – de quem eu era amigo e colega no Diretório Nacional do PSDB, nosso partido que juntos a figuras notáveis como Mário Covas e Franco Montoro fundamos – ouvi dúvidas quanto ao que pretendia Itamar. Posso confirmar que o Fernando Henrique foi nomeado “quase à força” e contra a sua vontade- para o Ministério da Fazenda com a missão dada pelo Itamar de articular a preparação de um plano de estabilização. Sei de fontes presenciais aos eventos que se foram sucedendo rapidamente que o Fernando Henrique estava em Nova York jantando na casa do embaixador Ronaldo Sardemberg (nosso encarregado da missão junto às Nações Unidas e irmão de uma colega nossa do BNDES, com quem trabalhei diretamente e de quem muito gosto) quando o Itamar telefonou dizendo que iria nomeá-lo para a Fazenda. A reação do Fernando Henrique : “não, presidente, em absoluto. Não aceito !”). Lá pelas tantas, o Fernando Henrique dá uma escapada até o banheiro. Pouco depois, o Itamar toca o telefone outra vez. O Fernando Henrique atende e estatelado escuta o Itamar dizer : “Fernando, já assinei a sua nomeação para a Fazenda. Ela sai publicada no Diário Oficial de amanhã”. Por isto afirmo e reafirmo : o Itamar é um dos autores políticos do Plano Real ! E, diga-se de passagem, o Fernando Henrique – homem honrado e sério que é – sempre reconheceu isto. E o episódio da nomeação do embaixador Ricúpero para a Fazenda, no lugar do FHC que teve que se desincompatibilizar para concorrer à Presidencia da República, deixando uma tarefa quase quixotesca e considerada quase impossível nas mãos do Ricupero – implementar e consolidar o Plano Real... E o Ricupero o fez com notável competência (neste ponto, lembro uma vez mais a autobiografia recém lançada pelo Ricupero (”Memórias”, editora da UNESP, que bem descreve os momentos dramáticos que se sucederam). Ricupero tem um papel primordial na consolidação do Real, ficando no Ministério até o tristemente episódio das declarações das parabólicas (aproveito para destacar que, homem profundamente católico, que gostava de assistir às missas do Mosteiro de São Bento quando estava no Rio - corrija-me se estou errado, meu caro e dileto amigo Ricupero – considero o mea culpa efetuado por êle como simplesmente um reconhecimento raro por um homem de Estado de erro cometido no exercício da função pública...
Como se justifica, tantos depois, o “esquecimento” dos amigos e colegas do Departamento de Economia da PUC/RJ ? Coisa do Malan ? Impossível !, o Pedro é uma das figuras mais respeituosas e dignas que conheci no exercício da profissão de economista. Coisa do Bacha ? Também impossível, o seu caráter e a sua ascendencia mineira jamais permitiriam. O Pérsio ou o André Lara Resende ? Não acredito. E nem tinham influencia na equipe para tal. Quem sobra então ? O Gustavo Franco ? Acabo de ver esta semana na TV a cabo um filme sobre o Gustavo e o Plano Real. Parecia mais um L’État c’est moi (“O Estado sou eu”, ou melhor, O Real sou eu...). Várias vezes, durante o filme-documentário, o Gustavo assume seu papel de pretenso Louis XIV dizendo “a minha moeda”, “ninguém toca na minha moeda”... O Rogério Werneck ? O ex-marido da Dorothéia seria capaz disto ?
A história há de recolocar em seus papéis tanto o Ministro da Fazenda que pegou em suas mãos a tarefa hercúlea de implementar e consolidar o Plano Real como o presidente que garantiu a implementação do Plano. Quanto ao Fernando Henrique, a história já o colocou no papel central de o homem que salvou o Brasil.
Como se perguntava o personagem do Dias Gomes em sua novela de maior sucesso : “estou certo ou estou errado ?...)
MD
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De: Rubens Ricupero
Enviada em: domingo, 23 de junho de 2024 18:01
Para: 'Mauricio David'
Assunto: RES: Sobre o homem que assinou o Real e outras histórias
Caro Maurício,
Mais uma vez agradeço a você pela generosidade com que se refere a meu respeito. Também quero dizer que me alegrou que você fizesse justiça ao papel fundamental de Itamar. Aliás, há hoje uma matéria longa na Folha de SP sobre o Itamar, baseada em parte no meu livro, que merece divulgação.
Confirmo o que escreve sobre minhas idas ao belíssimo mosteiro de São Bento, uma das joias do Rio de Janeiro que a maioria das pessoas ignora. Sou ligado aos beneditinos, oblato do mosteiro de Santa Cruz, de Brasília, por obra do saudoso Dom Basílio Penido OSB.
Sobre o “cancelamento” do Itamar e meu, não tencionava falar a respeito, por razões óbvias. Mas, já que tocou no assunto, vou dizer o que penso. Não sei se a omissão foi deliberada e a quem se deve. Ocorrem-me duas explicações possíveis e benevolentes. A primeira é que a intenção tenha sempre sido de realçar apenas o papel exclusivo dos economistas brilhantes da PUC do Rio, como parece ter sido o caso no evento lá, organizado pelo professor Werneck. É compreensível pois ele é dos professores mais associados ao Departamento de Economia da PUC Rio. De acordo com essa visão, compreende-se que se fale somente dos economistas, não se mencionando Itamar, FHC ou eu. A outra hipótese é que, não podendo associar aos eventos o Fernando Henrique, por motivos de idade e outros que você certamente conhece, tenham preferido não falar nem de Itamar nem de ninguém mais a não ser da equipe escolhida por FHC e que ficou com ele o tempo todo.
O problema maior de todas essas explicações é que tenham escolhido como motivo ou pretexto da comemoração os “30 anos do lançamento do Real”. Ora, o lançamento, goste-se ou não, ocorreu no dia 1º de julho de 1994, e, como todas as imagens da TV e da imprensa mostram, foi efetuado pelo Presidente Itamar Franco e por mim. Para ser mais exato, a primeira operação pública de troca da moeda antiga pela nova se realizou na agência da Caixa Econômica Federal do Palácio do Planalto. Suprimir as duas pessoas que, merecida ou imerecidamente, foram os autores do evento, equivale a imaginar que o lançamento ocorreu num passe de mágica, por algum deus ex machina... Por que, então, não se escolheu outra data, por exemplo, o lançamento da URV em fevereiro, a data da primeira medida provisória da URV (1º de março de 1994) ou a eleição de Fernando Henrique? Alguns minimizam o lançamento da moeda. Como narro nas memórias, a equipe no início queria esperar até um ano para lançar a moeda, diziam que o principal era deixar a URV se consolidar, que a moeda em si não tinha tanta importância. Pode ser, mas, se fosse verdade, a data de 1º de julho não teria se convertido no símbolo do Real, como aconteceu. A prova de que estão errados é que foram obrigados a escolher essa data e não outras. Nunca pretendi, nem pretendo agora, que meu papel tenha sido mais do que limitado. Como publiquei nas memórias, “no romance do Real participei como um desses personagens secundários que ingressam quando a narrativa já começou e que, da mesma forma inexplicável que entrou, depois de algum tempo, desaparecem sem deixar traços”. Sucede que, naquele período de poucos meses, quem insistiu em marcar data para lançar a moeda fui eu. Como lembro no livro, José Serra me contou que Fernando Henrique pensava em renunciar à candidatura pois ela não deslanchava. Foi só quando soube que tínhamos marcado a data do lançamento é que cobrou ânimo.
Só para completar, alguém deve ter percebido que havia essa omissão porque acabaram me convidando para o evento de amanhã, dia 24/6, na Fundação FHC. Tenciono ir mas se tiver de falar, vou me limitar a prestar homenagem à equipe, a Itamar e a FHC. Também me convidaram para um seminário no dia 1º, no qual tenciono mais falar do futuro, na linha daquele texto que lhe enviei e do qual gostou. Está mais perto da minha área de preocupações.
Digo tudo isso para seu governo pois não quero agravar ninguém, nem sair por aí reclamando reconhecimento.
Muito obrigado pela sua infalível amizade.
Abraço forte,
Rubens
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