Após sessões marcadas por indiretas entre ministros, recados ao Congresso, referências à ditadura militar e ao julgamento do mensalão, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) condenou na quinta, 11, pela primeira vez em sua história, um ex-presidente, Jair Messias Bolsonaro, por golpe de Estado e tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
Não só ele, como outras sete pessoas: os ex-ministros general Walter Braga Neto (Casa Civil e Defesa); general Augusto Heleno (GSI); Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira (Defesa); Anderson Torres (Justiça); o ex-comandante da Marinha Almir Garnier; o deputado federal e ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem; o ex-ajudante de ordens Mauro Cid.
Todos foram condenados por cinco crimes: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta ao Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado.
A exceção ficou por conta de Alexandre Ramagem. Beneficiado com uma decisão da Câmara, que sustou a ação penal relacionada ao período do 8 de janeiro — depois que ele assumiu o mandato de deputado federal —, Ramagem foi condenado por três dos cinco crimes: organização criminosa, tentativa de abolição violenta ao Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.
De acordo com o entendimento da maioria dos magistrados, o plano golpista perpetrado por essa organização criminosa envolveu o uso da Abin para monitorar adversários, lives realizadas pelo ex-presidente, manifestações como as de 7 de setembro de 2021 com ataques ao STF, reuniões ministeriais, reunião com embaixadores, uso indevido das forças da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para coibir a votação de eleitores alinhados ao então candidato Lula, uma reunião para apresentar uma minuta com medidas de exceção e prisão de autoridades à cúpula das Forças Armadas e culminou com os ataques às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro.
Dos cinco integrantes da Primeira Turma, quatro seguiram esse entendimento: o relator Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin. Apenas um teve entendimento contrário: Luiz Fux.
Celeridade
A investigação da chamada trama golpista tramitou com uma celeridade fora do comum no Supremo.
A Polícia Federal iniciou a investigação ainda em 2023, como consequência dos atos de 8 de janeiro daquele ano. A conclusão do inquérito ocorreu em 21 de novembro do ano passado, quando a PF ofereceu parecer para análise da Procuradoria-Geral da República (PGR).
A denúncia da PGR foi apresentada em fevereiro deste ano e o recebimento da peça por parte da Primeira Turma aproximadamente 45 dias depois. A instrução penal – momento de coleta de provas – durou aproximadamente três meses e o julgamento de mérito apenas uma semana.
Em comparação com outro caso rumoroso que tramitou no STF, o mensalão, a distância é gritante. Aquele escândalo eclodiu em 2005. A denúncia foi oferecida em 2006. O caso virou ação penal em 2007. O julgamento ocorreu apenas no segundo semestre de 2012, cinco anos depois.
O caso do mensalão interditou o plenário do STF naquele ano e durou o semestre inteiro. Obviamente que houve outras diferenças que contribuíram para que o mensalão fosse infinitamente mais complexo que a ação da trama golpista.
Naquele caso, foram 38 réus, dos quais 24 foram condenados. Na trama golpista, foram oito réus (no núcleo crucial, faltam os demais núcleos) e nenhuma absolvição.
Direito penal
Aliás, mensalão e ação penal do golpe foram vistas nos corredores da Corte como, de fato, duas ações irmãs.
Ambos os julgamentos foram vistos como os mais importantes no que se refere ao direito penal.
No mensalão, pela primeira vez, o STF colocou na cadeia políticos graúdos como José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil do governo Lula.
Aquele caso é visto até hoje por especialistas em direito penal como um marco no combate à corrupção, que criou balizas importantes para a Operação Lava Jato, como, por exemplo, a aplicação da chamada Teoria do Domínio do Fato, instrumento que permitiu condenações como a do hoje presidente Lula — condenação essa revertida pelo próprio STF.
No caso da ação penal do golpe, o STF tentou dar um recado claro à classe política e aos militares, de que irá coibir qualquer tentativa golpista por parte de agentes públicos.
“Esse julgamento foi um check up da democracia”, chegou a afirmar o ministro Flávio Dino, durante a sessão desta quinta, 11.
Há ainda outras semelhanças com o caso do mensalão. E a mais contundente é a relação antagônica entre dois juízes da ação do golpe: Alexandre de Moraes e Luiz Fux.
No mensalão, o então relator – Joaquim Barbosa — protagonizou embates históricos contra o revisor do processo, o ministro Ricardo Lewandowski, hoje ministro da Justiça do governo Lula.
No caso da ação do golpe, não houve embates diretos, mas Fux agiu – ou tentou agir – como revisor da ação penal.
Ao contrário dos colegas, Fux acatou boa parte das questões preliminares apontadas pelos advogados de defesa – entre as quais a incompetência do Supremo para julgar o caso e a tese de cerceamento do direito de defesa.
Sobre esse caso, curiosamente, coube a Zanin — ex-advogado de Lula — fazer a defesa da Corte. “Quando atuei em casos semelhantes, tínhamos acesso a apenas uma sala-cofre da Polícia Federal. Agora não, os advogados tiveram acesso aos dados por meio de link encaminhado pela autoridade policial”, declarou Zanin.
Voto vencido
Fux também votou pela absolvição de Jair Bolsonaro em todos os crimes. Em seu voto, o magistrado entendeu que houve uma tentativa de golpe de Estado apenas envolvendo o ex-ajudante de ordens Mauro Cid e o ex-general Braga Netto por causa do plano que previa eliminação de integrantes da Suprema Corte – mais especificamente Moraes – e o presidente eleito Lula e seu vice, Geraldo Alckmin.
Por mais que essa manifestação isolada – que, de uma só vez, encarnou os votos longos do ex-ministro Celso de Mello e os gestos de humildade de Marco Aurélio Mello, uma voz que se acostumou com o eterno título de ‘voto vencido’ na Corte – não tenha tido efeito prático na discussão de mérito, ele abre margem para uma eventual anulação processual futura da ação penal de Jair Bolsonaro.
Diante das nulidades apontadas por advogados e reiteradas por Fux, há a possibilidade – em um futuro não muito distante – que as defesas possam apresentar novos recursos como, por exemplo, um habeas corpus com revisão criminal, um instrumento jurídico apresentado pelo hoje ministro Zanin que resultou na anulação da condenação de Lula pelo Supremo.
Obviamente que esse caminho não é simples: ele precisa de uma hecatombe de fatos favoráveis ao ex-presidente: mudança de configuração das turmas, ou mudança de entendimentos dos magistrados supremos.
A questão aqui – e isso é apontado pelas próprias defesas dos réus - é que o STF nunca admitiu em revisão criminal que cometeu excessos em suas ações penais originárias. Caso isso venha a ocorrer no futuro, seria outro fator inédito desse processo.
Congresso
Por enquanto, a condenação de Jair Bolsonaro por placar não unânime deu novo gás à pauta da anistia no Congresso. A expectativa agora é que a urgência seja votada na quarta-feira da semana, com o mérito podendo ser votado em outubro.
“Os votos foram vergonhosos e mostram que esse processo é absolutamente parcial. Não há qualquer legitimidade nessa decisão”, declarou o deputado Evair de Melo (PP-ES), que acompanhou a sessão que condenou Bolsonaro dentro da Primeira Turma.
“A sessão de hoje no Supremo Tribunal Federal entra para a história como uma das páginas mais tristes da Justiça brasileira. A oposição já sabia que o presidente Jair Bolsonaro e outros investigados entravam condenados de antemão, diante de uma simulação de julgamento conduzida de forma ilegal, sem foro privilegiado, numa Turma absolutamente incompetente, repleta de nulidades e irregularidades”, disse o líder da oposição, Luciano Zucco (PL-RS), em nota oficial divulgada ao longo do julgamento.
Além disso, o voto de Fux deu munição à bancada bolsonarista para questionar a ação penal como um todo e para ajudar Eduardo Bolsonaro (PL-SP) a buscar novas sanções contra o STF pela condenação do ex-presidente.
Ou seja: para os bolsonaristas, o voto de Fux desmoralizou os demais ministros da Primeira Turma e enfraqueceu a condenação do ex-presidente e dos outros sete réus. Para os advogados, a divergência de Fux também abre margens para protelar uma eventual execução de sentença. As defesas devem apresentar pelo menos dois ou três embargos declaratórios para esclarecer obscuridades no processo. Além disso, há advogados que pretendem questionar a dosimetria da pena de todo o núcleo crucial no plenário do Supremo Tribunal Federal.
Para os petistas, porém, a condenação é uma reparação histórica não somente pela tentativa de golpe como também pela forma como Jair Bolsonaro lidou com a pandemia de Covid. “Fez-se Justiça nesse país”, disse o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), que acompanhou todos os dias de julgamento.
Assim, a condenação de Jair Bolsonaro e demais integrantes do chamado núcleo crucial da trama golpista não é desfecho desse capítulo da história do Brasil.
Muito pelo contrário. É apenas o início de processo que promete mais sanções ao país e mais turbulência política.
Pesquisas
O julgamento desta semana encontra uma sociedade descrente e polarizada.
Pesquisa feita pela Atlas Intel em agosto apurou a opinião dos brasileiros sobre todos os ministros do Supremo, algo que ninguém se dava ao trabalho nos tempos do mensalão. Todos foram mal avaliados.
Em relação a Alexandre de Moraes, a imagem negativa de 51% supera a positiva, de 49%. Dino tem 50% negativa e 46% positiva.
“Nos julgamentos anteriores, do mensalão e do petrolão, o Brasil estava motivado a lutar contra a corrupção que vinha corroendo as instituições públicas e privadas. A ideia de restaurar as finanças públicas e passar a limpo todos os ranços de uma corrupção enraizada em solo brasileiro, aumentava a confiança e a credibilidade do Poder Judiciário, a partir do momento em que se teriam finalmente, agentes públicos capazes de levar à frente o combate à corrupção e às suas mazelas de natureza política, econômica, social e cultural”, diz a advogada constitucionalista Vera Chemim.
“Hoje, o cenário político é totalmente diferente. A Corte passou a adotar uma conduta politizada que tem sido favorável à esquerda, o que tem provocado inúmeras críticas e a descredibilidade da instituição”, diz Vera.
Defesa da democracia
Os brasileiros estão ressabiados até mesmo em relação ao papel que ministros do STF se arvoram, o de defensores da democracia.
Na narrativa de Moraes, a Corte impediu um golpe de Estado similar ao de 1964, preservando o Brasil de uma nova ditadura militar.
“Nós estamos esquecendo aos poucos que o Brasil quase volta a uma ditadura que durou 20 anos porque uma organização criminosa, constituída por um grupo político, não sabe perder as eleições”, afirmou Moraes em seu voto na segunda, 8.
Mas essa versão não tem colado entre a população. No mês passado, segundo a Atlas Intel, 49% dos brasileiros viam como “péssima” a atuação do STF em relação à defesa da democracia, enquanto 45% consideravam como “ótima”.
“Vejo situações históricas muito diferentes, a de 1964 e a atual. O STF passa por uma profunda crise e fomos nós todos, como nação, que na verdade salvamos a democracia. Foi uma ação de todos nós, a maioria, que não queremos um retorno à ditadura militar”, diz o advogado Alexandre Wunderlich, que participou da elaboração da lei com os tipos penais de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e da tentativa de golpe de Estado.
Por: Wilson Lima e José Inácio Pilar
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