Uma avaliação das relações internacionais numa data significativa
Paulo Roberto de Almeida
O dia 12 de outubro guarda um significado especial na história do mundo: marca a unificação da geografia e da própria história do mundo até então conhecido e registrado nas crônicas e relatos dos povos dotados de cultura escrita e das tecnologias adequadas ao comando da natureza e ao domínio de populações estrangeiras. A violência dos colonialismos e dos imperialismos nas primeiras ondas de globalização dominou as relações internacionais pelos quatro séculos seguintes, com o predomínio da Europa ocidental sobre parte significativa do mundo conquistado e explorado até a segunda revolução industrial.
Entre a primeira e a segunda onda da globalização, iniciada com as gestas de Cristóvão Colombo e de Fernão de Magalhães e continuada com a revolução das caldeiras a vapor, as máquinas fabris, os motores à explosão e a eletricidade, o tráfico comercial e o escravismo colonial produtivo marcaram terrivelmente o continente africano, violentado e depauperado de imensos contingentes humanos, assim como pela destruição de civilizações em estágios iniciais de desenvolvimento. A própria história do mundo, em especial nas Américas, ficou marcada pela violência do colonialismo e do imperialismo da Europa ocidental sobre praticamente todos os povos e civilizações existentes, culminando com a dominação da Ásia iniciada por Vasco da Gama. O Brasil foi parte quase passiva, durante mais de três séculos, nesse itinerário de conquista ocidental sobre o resto mundo, até conquistar sua independência pela própria força do povo aqui nascido e adquirido consciência política.
Depois de séculos lutando entre si, os impérios europeus provocaram duas guerras globais, na primeira metade século XX, que mudaram terrivelmente a geografia e a história do mundo, entre a segunda e a terceira onda de globalização. Em consequência, os velhos impérios europeus foram praticamente alijados do comando do mundo, em favor de duas grandes potências que se desenvolveram nas antípodas de concepções políticas e econômicas sobre sistemas constitucionais e sobre a organização dos seus respectivos modos de produção.
De Yalta a San Francisco, em 1945, moldou-se um sistema imperfeito, mas relativamente administrável, de relações internacionais, formalmente presidido pela ONU, de fato violado impunemente e constantemente pela ação unilateral de grandes potências, mais afetas ao seu próprio poder discricionário do que ao estrito respeito do Direito Internacional, duramente construído a partir de Kant e do liberalismo iluminista, também marcadamente ocidental.
Depois de quase 80 anos de predomínio incerto da autoridade do argumento sobre o argumento da autoridade, o funcionamento precário do sistema internacional onusiano começou a ser abalado por desejos de reconquista de seus antigos domínios coloniais por uma das potências herdeiras das vastas possessões imperiais czaristas e soviéticas.
Diferente das intervenções unilaterais na Ásia, no Oriente Médio e na própria América Latina, por parte do império ocidental, motivadas pela obsessão com o equilíbrio de poderes, na fase de disputas geopolíticas da primeira Guerra Fria, as novas intervenções unilaterais do império euro-asiático em seu entorno imediato atacaram profundamente os princípios fundadores da ordem internacional criada em Westfália e consolidada na Carta da ONU, a saber, a igualdade soberana dos Estados (cara a Rui Barbosa, e que se tornou o eixo central do multilateralismo contemporâneo), a não intervenção nos seus assuntos internos e a não usurpação pela força de territórios estrangeiros reconhecidos no Direito Internacional, ademais de cláusulas reconhecidas em declarações universais relativas a direitos humanos e às liberdades democráticas, precariamente resguardas nas relações entre os Estados membros da ONU ou de organizações regionais.
A Carta da ONU foi violada brutal e abertamente na Georgia, na Moldova, na península ucraniana da Crimeia e, finalmente, em toda a Ucrânia, no que se apresenta como a maior guerra de conquista empreendida por um poder imperial desde 1939-1941, duramente finalizada em 1945, em seus dois extremos, no continente europeu e na Ásia-Pacífico.
Países aderentes à Carta da ONU adotaram corretamente as sanções nela previstas, consideradas “ilegais” pelos relutantes em fazê-lo apenas por causa do uso abusivo do “direito” de veto justamente pela potência violadora, desconsiderando que a própria Carta prevê a solidariedade de todos os membros em socorro da parte injustamente agredida.
O Brasil, infelizmente, se coloca entre os “inadimplentes” desse dispositivo, por escusas formais e por razões atinentes a interesses politicos e inclinações ideológicas que não deveriam obstar ao seu estrito cumprimento do Direito Internacional, cujos princípios fundamentais foram, por sinal, incluídos entre as cláusulas de relações internacionais de sua Constituição.
O assim chamado “sistema internacional” atravessa atualmente uma de suas maiores crises, motivados pela ação imperialista de uma das duas grandes potências da primeira Guerra Fria, assim como pela ação destruidora do multilateralismo político e sobre o sistema multilateral de comércio pela outra grande potência daquela fase, hoje em aparente declínio em face do renascimento do antigo Império do Meio, hoje convertido em “parceiro” involuntário da segunda Guerra Fria, ainda em curso.
O cenário futuro é ainda imprevisível, mas estimo que o Brasil continuará aderente à sua tradicional autonomia decisória em matéria de política externa, em face de conflitos entre grandes potências, e que a sua diplomacia confirme a credibilidade adquirida ao longo de um infalível respeito ao Direito Internacional.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 12/10/2025
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