Amado Luís Cervo e O Espírito das Relações Internacionais
O Espírito das Relações Internacionais [online]
Brasília: Editora da UnB, 2022
O livro-síntese de Amado Luiz Cervo representa um condensado reflexivo sobre o conjunto de sua obra acumulada em praticamente meio século de intensos e extensos esforços em torno das relações internacionais em geral, sobre a história diplomática e das relações exteriores do Brasil, assim como em torno das pontes construídas com países vizinhos nos mesmos terrenos, em especial a Argentina e o Mercosul. Ele representa a confluência de suas análises e indagações entre a história e a teoria das relações internacionais, iniciada décadas atrás com alguns fundamentos da escola francesa nessas áreas, mas logo tornada original com base em suas próprias pesquisas documentais e arquivísticas, assim como apoiada em vasta literatura especializada, tanto a claramente factualista, événementielle, como a propriamente analítica e interpretativa. Amado foi um construtor de conceitos e paradigmas, e eles estão reproduzidos em cada um dos conceitos que são os títulos aos onze capítulos desta obra.
Ao percorrer cada um dos capítulos pude perceber a maestria com a qual ele se refere tanto às obras de outros historiadores, brasileiros e estrangeiros, quanto aos trabalhos de cientistas políticos, sociólogos, economistas, ou seja, uma pletora de analistas das relações internacionais em geral, assim com às políticas exteriores dos principais Estados presentes. Impossível não ficar impressionado com a vastidão de seus argumentos sobre cada um dos principais conceitos ali trabalhados: valores, segurança, defesa, interesses, sobrevivência, convivência e guerra, entre os que estão diretamente nos fundamentos das relações exteriores dos Estados, seguidos por outros conceitos ou temáticas que terminam por circunscreve sua análise teórico-pedagógica: teorias, experiências concretas de países e suas diplomacias, e os itinerários seguidos por alguns deles. A bibliografia é seletiva, mas conta com nada menos do que 138 títulos, entre obras completas, ensaios e publicações diversas.
O prefácio a cargo do grande historiador diplomático chileno, Raúl Bernal-Meza – autor de uma monumental Historia de las Relaciones Internacionales de Chile, 1810-2020 (Santiago: RIL Editores; Universidade Arturo Prat, 2020) –, enfatiza as principais contribuições de Amado Cervo para o engrandecimento do campo no Brasil e nos países vizinhos: formou discípulos e pesquisadores, se exerceu em todos os níveis da formação universitária e em redes acadêmicas desse campo, produziu novos caminhos no estudo dos processos históricos dos países do Cone Sul e ofereceu interpretações coerentes sobre as políticas públicas em todas as frentes das posturas internacionais desses países, inclusive integrando-as no contexto mundial mais amplo, e isso durante mais de meio século.
A contribuição de Amado Luiz Cervo para as relações internacionais pode ser percebida em três grandes linhas: história da política exterior do Brasil; história das relações internacionais da América Latina; e elaboração de conceitos e categorias analíticas para o estudo das relações internacionais. Para identificar tipos ideias de Estado, a partir da evolução política e social do Brasil, o professor Cervo elevou-se ao nível de abstração, da qual derivam interpretações sobre práxis da política exterior, bem como sobre diplomacia de cada modelo, em perspectiva histórica que se articula com os estudos das tendências da história da política exterior e das relações internacionais. Amado Cervo construiu e compartilhou com outros intelectuais latino-americanos os argumentos críticos que refutam a validade das teorias de relações internacionais anglo-saxônicas para interpretar a história e a realidade das relações internacionais em nossa região, bem como sua inserção global. Por meio de suas obras, Cervo fundamenta a elaboração e a reelaboração de conceitos propriamente latino-americanos; ou seja, produzidos pela inteligência de nossa região, com o fim de explicar seus próprios acontecimentos. (...) Com sua reflexão, convocou colegas e discípulos a trocar as teorias estrangeiras por conceitos próprios que expressam e que tenham sido extraídos da realidade própria de nossos países. (Prefácio)
Os onze capítulos da obra de Amado Cervo tratam dos onze impulsos que ele detectou nesta síntese abrangente dos fatores que correspondem a comandos superiores das políticas exteriores dos Estados membros da comunidade política internacional, e que orientam os seus agentes no trabalho de representação e de ação no plano externo de cada um deles. São eles os seguintes:
1. Valores: é o substrato cultural que influencia os padrões de conduta dos Estados no plano externo;
2. Segurança: trata-se da proteção do território, a defesa nacional e a dissuasão contra possíveis ameaças;
3. Defesa: percepções sobre vulnerabilidade guiam a ação do Estado, individualmente ou em coalização com parceiros externos;
4. Interesses: estão conectados às assimetrias entre Estados, como a dominação colonial, mas também guiam ações de cooperação entre eles;
5. Sobrevivência: o princípio básico de indivíduos e Estados;
6. Convivência: possui vínculo com a sobrevivência, mas pode resultar em blocos do países possuindo interesses similares’
7. Guerra: Resulta de líderes desequilibrados, autoritários, mas também pode ocorrer pelo instinto de sobrevivência, no caso da defesa nacional;
8. Teorias: elas espelham interesses, valores e padrões de conduta; podem ser ilusórias;
9. Conceitos: conferem explicações sistêmicas para orientar a conduta dos agentes; eles são vários: potência, ingerência, intervenção, neutralidade, responsabilidade de proteger, ordem ou desordem internacional, historicidade e outros;
10. Pedaços: são países, regiões, blocos, que podem ser agressivos, ou pacifistas, de forma amplamente diversa;
11. Itinerários: são o reflexo das grandes orientações de cada Estado, algumas com mais autonomia do que outras, segundo as capabilidades de cada um.
Todos esses comandos operam como instrumentos de atuação dos agentes estatais ou servem de suporte intelectual para a ação dos Estados, num contexto bastante complexo e multifacetado, que é o das relações internacionais contemporâneas, quer elas se exerçam num ambiente multilateral, por meio das organizações intergovernamentais existentes, quer mediante canais bilaterais ou plurilaterais (entre grupos ou blocos de países). A interação entre essas diferentes esferas de intervenção guia a conduta dos agentes envolvidos na trama, ou no “espírito”, das relações internacionais. Aqui se situa a contribuição epistemológica central desta obra-síntese, um livro que exibe um título quase hegeliano, combinando, como era o caso do filósofo prussiano, teoria e história, ou teoria da história e o desenvolvimento concreto do Estado racional e de suas políticas públicas, entre elas a externa.
Amado Cervo talvez não seja um hegeliano de formação, sequer um marxista juvenil, mas ele é um teorizador experimentado das relações internacionais dos países em geral, não apenas as do Brasil. Sua obra reflete o esforço de sistematização dos grandes vetores que atuam sobre a conduta dos Estados e de seus agentes, os componentes básicos das interações entre eles. Esses vetores influenciam ou até determinam a política externa e a diplomacia dos Estados, conduzida pela tecnocracia diplomática e orientada pela clarividência, se for o caso, de seus dirigentes, entre eles estadistas, mas também alguns líderes autoritários, que soem ser os condutores das guerras interestatais.
Seu capítulo sobre a guerra, justamente, é um dos mais extensos e bibliograficamente mais bem argumentados de toda a obra, combinando referências exaustivas aos principais autores de estudos sobre esse aspecto fundamental das relações entre Estados, assim como, no terreno empírico dos fatos militares mais relevantes da era contemporânea, remetendo aos conflitos mais emblemáticos e representativos da geopolítica do último século e meio. Em resumo, a obra-síntese de Amado Cervo pode ser considerado uma leitura essencial para estudiosos teóricos e condutores práticos das relações internacionais contemporâneas.

