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quarta-feira, 6 de maio de 2015

O Brasil e a agenda economica internacional, 4: o que fazer para maximizar as oportunidades? - Paulo Roberto de Almeida (Mundorama)



O Brasil e a agenda econômica internacional: o que o Brasil deveria fazer para maximizar a “sua” agenda? , por Paulo Roberto de Almeida

Mundorama, 6/05/2015


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Perguntas de uma investigação tentativa
Nos últimos 80 anos, ou seja, desde os anos 1930, o Brasil deixou de ser um país “essencialmente agrícola”, como então se dizia, para engajar um dos mais bem sucedidos processos de industrialização da América Latina, e do conjunto de países em desenvolvimento. Com a aceleração do crescimento, sobretudo a partir dos anos 1950 e nos anos 1970, diminuiu a distância econômica, tecnológica e de nível de renda, entre o Brasil e os EUA, embora em escala bem modesta: de apenas um décimo da renda per capita dos americanos, no início do século 20, os brasileiros alcançaram um patamar de quase 30% do PIB per capita dos EUA em torno de 1980. Infelizmente, muito desse esforço se perdeu, nos anos de crise econômica, de hiperinflação e de desequilíbrios externos. Atualmente, mesmo depois de ter conseguido estabilizar a economia – ainda que caindo novamente numa fase de crescimento medíocre, que não se sabe até quando irá – a distância que nos separa dos níveis de bem-estar na América do Norte continua muito alta: cerca de um quinto, apenas, da renda per capita daquela região, com uma distância similar, talvez maior, em termos de produtividade total de fatores, devido ao péssimo desempenho educacional, como revelado pelos indicadores setoriais.
O que falta ao Brasil fazer para que ele possa realizar todo o seu potencial? Existiriam barreiras ao seu progresso que estariam ligadas ao sistema internacional? O comércio mundial por acaso tem sido um fator negativo no desempenho econômico do país? O acesso a tecnologias de ponta tem sido cerceado por razões políticas, ligadas a algum “projeto secreto” de países avançados de limitar nossos avanços nessa área, como acreditam alguns, ou estariam eles “chutando a escada” que poderia nos levar a níveis mais elevados de desenvolvimento material? O Brasil se sente prejudicado por não integrar o chamado “inner core”, o círculo restrito de potências que possui poder de decisão sobre a agenda da maior parte das instituições econômicas mais relevantes do multilateralismo contemporâneo? Em resumo: quão relevante é a agenda econômica internacional para os objetivos prioritários de desenvolvimento do Brasil?
Uma recapitulação sumária da história econômica contemporânea
O ano de 1929 representa um marco na história econômica mundial, não tanto pela queda dos valores dos ativos negociados em bolsa e nos mercados de bens reais (um fenômeno já conhecido em ciclos anteriores), quanto pelo que representou de implementação de medidas equivocadas pelos governos nacionais, na tentativa de cada um se resguardar dos efeitos mais perniciosos da degringolada e de buscar “empurrar a crise para o seu vizinho” (beggar-thy-neighbour), como se dizia então. De fato, a começar pelo Congresso americano, que aprovou um aumento nas tarifas de importação, passando pelos demais governos, que desvincularam suas respectivas moedas do padrão ouro, como forma de desvalorizá-las, e assim ganhar alguma vantagem competitiva, a atitude mais comum foi a de tentar isolar cada um dos países dos efeitos eventualmente nefastos que estavam em curso em praticamente todos eles. O resultado de todas essas políticas erradas foi que, em lugar de uma simples crise de mercados, o que se teve foi uma depressão geral que se estendeu durante anos a fio, carregando para baixo todos os indicadores econômicos e sociais.
As lideranças mais esclarecidas dos Estados Unidos aprenderam a lição e, em plena guerra, começaram a traçar planos para uma reorganização da ordem econômica mundial, baseada no multilateralismo, na não-discriminação, no acesso igualitário aos mercados, na reciprocidade de tratamento e em diversas outras cláusulas que deveriam ser fundadas na cooperação e na coordenação de políticas. Daí nasceram Bretton Woods e os princípios do sistema multilateral de comércio, por meio século regido unicamente por um acordo provisório, o Gatt, que foi sendo mantido, até passar a ser administrado pela OMC, o terceiro pé do sistema concebido em 1944 para regular cooperativamente as relações econômicas internacionais. De certa forma, o tripé resultou bem sucedido, levando a economia mundial a patamares jamais conhecidos de crescimento e de prosperidade, até que os choques do petróleo dos anos 1970 e os abusos cometidos pelos governos nos terrenos fiscal e monetário levaram às crises de estagflação – algo não previsto nos modelos keynesianos – e a uma profunda revisão das políticas econômicas. Os vinte anos seguintes foram de profundos ajustes nessas políticas, tanto nas economias avançadas, quanto nos países em desenvolvimento, processo que ficou conhecido no jornalismo superficial como sendo dominado pelo “neoliberalismo”, e que de fato implicou, em todos esses países, a revisão dos mecanismos de intervenção dos Estados na vida econômica, geralmente num sentido redutor e privatizador.
Combinada à crise final e derrocada dos sistemas socialistas, o mundo entrou no que foi chamado de terceira onda de globalização – sendo as duas anteriores a dos descobrimentos do século 16, que unificaram o mundo pela primeira vez, e a da segunda revolução industrial, no final do século 19, quando intercâmbios de todos os tipos se expandiram enormemente – caracterizada pela integração progressiva de todos os mercados, em escala nunca vista até então. O Brasil também enfrentou as duas crises do petróleo, e depois uma ainda mais grave, derivada do seu endividamento excessivo, provocado justamente pela tentativa de continuar seguindo o mesmo modelo de expansão exagerada da economia, sem fazer os ajustes requeridos pela nova situação. O resultado foi a aceleração da inflação, a moratória sobre os pagamentos externos, e uma queda geral nos indicadores de crescimento e de emprego, a chamada “década perdida” dos anos 1980, que na verdade estendeu-se até meados da década seguinte.
Feita a estabilização, pelo Plano Real, o Brasil começou novamente a trilhar o caminho das políticas econômicas responsáveis, embora sem resolver adequadamente o problema das despesas públicas, sempre em excesso em relação ao nível de receitas. A solução veio pela manutenção de uma taxa de juros muito elevada, de forma a permitir o financiamento público. A desconfiança quanto à capacidade do governo em honrar seus compromissos, aliada a uma nova onda de crises financeiras – iniciada pelo México, em 1994, prolongada na Ásia, a partir de 1997, e culminando na moratória da Rússia, em agosto de 1998 – engolfou novamente o Brasil em sérios desequilíbrios de balanço de pagamentos, o que o obrigou a negociar acordos emergenciais de empréstimo junto às instituições de Bretton Woods e outros credores institucionais. A crise ainda voltou a se manifestar no momento da derrocada argentina, no final de 2001, e quando das eleições presidenciais de 2002, quando os valores dos títulos brasileiros negociados internacionalmente chegaram a seus níveis mais baixos, e o dólar ascendeu a alturas inéditas. Os desafios eram importantes, mas eles foram sendo vencidos.
O governo empreendeu, durante essa fase de desequilíbrios, diversas reformas importantes nas políticas econômicas, o que preparou o país para uma nova etapa de crescimento econômico. A começar pela adoção da flutuação cambial e do regime de metas de inflação, complementada, logo em seguida, pela Lei de Responsabilidade Fiscal – que deveria impedir os dirigentes políticos de assumirem despesas sem indicar precisamente as fontes de receitas – e pelo compromisso assumido no orçamento de se liberar todo ano um superávit fiscal (para o pagamento dos juros da dívida pública), essas medidas deveriam manter o Brasil no caminho da estabilidade e das políticas econômicas responsáveis, condição de qualquer processo sustentado de crescimento econômico. O chamado tripé macroeconômico – flutuação cambial, metas de inflação e responsabilidade fiscal – foi de certa forma preservado durante a primeira metade da década do novo milênio, mas importantes reformas estruturais em regimes regulatórios e na modernização da infraestrutura deixaram de ser empreendidas, em favor de uma nova política de redistribuição de rendas que ultrapassou em muito as possibilidades de sua sustentação, por não ter correspondência com o ritmo de crescimento da economia e os seus níveis, medíocres de produtividade. Em feliz coincidência, o Brasil beneficiou-se de um crescimento inédito na economia mundial, em especial em países emergentes.
No bojo de uma nova crise financeira internacional, iniciada em 2007 nos sistemas imobiliário e bancário dos Estados Unidos, e disseminada internacionalmente a partir de 2008 e 2009, o Brasil reagiu de forma adequada, tanto porque vinha de uma fase de crescimento satisfatório, puxado pela demanda voraz da China por seus produtos de exportação: foi uma época em que a tonelada de soja chegou a valer 600 dólares, e a de minério de ferro quase 200. Depois de uma mini-recessão em 2009, o crescimento em 2010 registrou uma taxa praticamente “chinesa”: mais de 7%, inclusive com uma diminuição notável do desemprego. Infelizmente, a nova administração que teve início em 2011 atuou de forma totalmente irresponsável, como se pretendesse destruir os fundamentos do tripé econômico, e de certa maneira conseguiu: manipulando câmbio e juros, expandindo o crédito e aumentando de forma exagerada as despesas – pois que partindo de um diagnóstico errado de que o crescimento econômico deveria ser puxado pela demanda e não pelo investimento e pela oferta – e intervindo do modo totalmente improvisado em diversos setores da indústria, conseguiram produzir mais inflação, menos crescimento, volta do desemprego, aumento da dívida pública, déficits duplos no orçamento e nas transações externas, enfim, um desastre econômico completo.
Este era o estado lastimável da economia ao início da mesma administração, reconduzida nas eleições de outubro de 2014, mas fortemente contestada por uma oposição cívica que não aceita mais as falsas explicações do governo para o atual quadro de dificuldades de toda sorte. No início do segundo trimestre de 2015, não se tem certeza quanto à trajetória do governo atual, e do seu partido de sustentação, envolvidos nos mais clamorosos casos de corrupção jamais vistos na história do país.
O que tudo isso tem a ver com a agenda econômica internacional, é o caso de se perguntar? Em princípio muito pouco, ou nada, a despeito dos esforços das lideranças políticas, de forma canhestra, em tentar explicar o péssimo desempenho econômico por causa de uma alegada “crise internacional”, quando a maior parte dos países já enveredou novamente pela retomada do crescimento. EUA e UE, as duas economias avançadas mais atingidas pela crise, apresentam níveis razoáveis de recuperação, e os emergentes dinâmicos continuam a exibir saudáveis taxas de crescimento econômico. Cabe examinar, então, o que o Brasil poderia fazer para maximizar a sua agenda, em face dos atuais desafios que o país enfrenta.
O que uma agenda econômica adequada poderia fazer pelo Brasil?
Não existe, obviamente, uma única agenda econômica internacional que atenda às necessidades do Brasil e aos seus requerimentos de desenvolvimento. Existe, em contrapartida, uma diversidade de agendas setoriais, de organismos multilaterais, ou de entidades regionais que podem, se combinadas, contribuir para que o Brasil tenha um mix de políticas públicas adequadas, cobrindo tanto as reformas internas quanto a sua política econômica externa. Vamos repassar, portanto, os principais requisitos de um processo sustentado de desenvolvimento econômico, com transformações estruturais e distribuição social dos benefícios do crescimento, e que cobrem cinco frentes principais: a estabilidade macroeconômica, a competitividade microeconômica, a boa governança institucional, a qualidade do capital humano e a inserção na interdependência global.
Estabilidade macroeconômica: esta é composta dos componentes usuais nessa área, mas encontráveis mais facilmente nos países de economia avançada e estabilizada: uma inflação baixa (e a média mundial das economias desenvolvidas tem se situado entre 1,5% e 2% ao ano); câmbio e juros o mais possível dentro dos níveis fixados pelos próprios mercados, e não por manipulações dos governos; equilíbrio nas contas públicas (ou um déficit orçamentário inferior a 3% do PIB) e uma dívida interna não superior a um montante que permita o seu serviço também numa faixa inferior a 3% do PIB como pagamento de juros. A fiscalidade deve incidir antes sobre o consumo do que sobre os investimentos, o trabalho ou o lucro das empresas, e mais sobre o fluxo de rendas do que sobre o patrimônio, para evitar elisão fiscal ou diversas formas de fuga de capitais. As alíquotas também precisam ser moderadas, sobretudo sobre os bens de consumo popular, inclusive para evitar fraudes fiscais e contrabando. Os diversos comitês de trabalho da OCDE possuem uma larga experiência em todas essas matérias, e uma aproximação mais estreita do Brasil a essa entidade com sede em Paris poderia contribuir enormemente para a melhoria de qualidade de suas políticas macroeconômicas. Mas tudo isso, obviamente, em circunstâncias normais, o que não parece ser o caso do Brasil atualmente, que necessita antes passar por um sério ajuste em todas as suas contas públicas, e por uma rigorosa correção de todos os equívocos cometidos por meio de políticas mal concebidas e improvisadas.
Competitividade microeconômica: está se falando aqui de políticas setoriais, e o princípio básico é melhorar o ambiente de negócios para as empresas, o que também passa pela correção de alguns atavismos governamentais, como o caráter extorsivo da política tributária. Não é preciso desfilar o imenso rol de medidas a serem tomadas, bastando, para isso, consultar um relatório anual do Banco Mundial: Doing Business. Esse estudo detalha, com rigor, todas as esquizofrenias cometidas no Brasil, que tornam a vida dos empresários um verdadeiro inferno em dose dupla, ou tripla: na constituição de empresas, sua gestão e até no seu fechamento. Basta dizer que a classificação do país no ranking geral se situa em torno de 125 entre 187 países, mas isto apenas porque o empresariado, acostumado a um ambiente de hostilidade governamental, faz milagres para garantir um mínimo de eficiência gerencial, o que reduz a componente “micro” do estudo para níveis inferiores a 90; se formos considerar, no entanto, os critérios que dependem de medidas governamentais (tributação, infraestrutura, regulação, legislação laboral, etc.), o ranking do Brasil despenca para algo acima de 150. O ideal para o Brasil seria adotar o Doing Business como benchmark absoluto em todas as áreas, e estudar o que fizeram todos os países que possuem rankings setoriais abaixo de 60, o que já seria um progresso notável para o país. Não é difícil identificar as medidas a serem implementadas; se o Brasil não tiver técnicos competentes em todas as áreas do Doing Business, o Banco Mundial pode organizar um programa em torno dele.
Cabe referir, incidentalmente, que o melhor remédio para a competitividade microeconômica é justamente a abertura à competição, o que recomenda liquidar com todos os monopólios indevidos – a começar do setor de energia e combustíveis – e com todos os carteis em determinados serviços coletivos (telefonia e telecomunicações, em geral, mas também em todos os tipos de transportes). Não é preciso dizer que compras governamentais limitadas a fornecedores nacionais, beneficiados ainda por um prêmio abusivo de sobre-preço aceitável (25%, ao que parece) são um convite aberto a práticas viciadas e sujeitas a corrupção. O nacionalismo pernicioso no setor da construção civil, mas também vigente em outras áreas (saúde e educação, por exemplo) é um dos casos mais nefastos de anti-competitividade, além de inerentemente promíscuo e corruptor.
Boa governança: este é o núcleo das reformas estruturais, e que não se limita, e nem deveria começar pela “metafísica” da reforma política, ainda que os critérios de representação eleitoral e de presença no parlamento estejam totalmente deformados no Brasil atual. Dar início a um processo de reforma política pode significar a paralisia de todas as demais reformas setoriais indispensáveis à estabilidade econômica e aos ganhos de competitividade de que o Brasil necessita: pode-se limitar o processo ao voto distrital misto e a cláusulas de barreira para a atividade parlamentar (atualmente, apenas cinco ou seis partidos ultrapassam o limite de 5% do eleitorado, e se deveria ficar por aí, sem exceções para os partidos de aluguel ou minúsculos); não é preciso dizer que nada justifica o financiamento público de partidos ou de campanhas eleitorais, uma vez que se trata de entidades de direito privado, cabendo aos militantes e apoiadores essa tarefa.
O núcleo da boa governança passa pela reforma do Estado – com uma redução radical do ogro famélico e suas centenas, ou milhares, de órgãos associados –, por uma reforma administrativa que reduza e limite severamente a estabilidade do funcionalismo (e o recurso a diferentes formas de contratação em setores abertos ao mérito individual, como na educação e na saúde, por exemplo), e por uma urgente reforma previdenciária que corrija as distorções ainda remanescentes nos tratamentos (inclusive os privilégios vinculados ao setor público). O Judiciário, extremamente moroso nos processos, precisa passar por uma reforma nos procedimentos, com vistas a agilizar o seu término, hoje se estendendo, na média, por até oito anos. A área trabalhista é a que necessita de amplas reformas, basicamente no sentido do contratualismo, da livre negociação direta e da solução de pendências por via arbitral; a justiça do trabalho é um órgão antes causador do que solucionador de conflitos e deveria simplesmente ser extinta.
A própria federação é um mito, tendo em vista a concentração de recursos na União, o que faz surgir “jabuticabas” absurdas como um “ministério das cidades” no âmbito federal. Esse estado republicano “unitário” cria distorções contínuas no plano da repartição de recursos e competências, o que obriga deputados a se converterem em vereadores federais, mendigando financiamento federal para programas paroquiais. A emenda constitucional que torna impositivo o orçamento unicamente reservado aos projetos dos parlamentares é um absurdo político de tal monta que por si só explica a “desgovernança” absoluta a que chegou o Brasil no terreno das práticas federativas: coexiste a chantagem recíproca do governo federal e dos parlamentares em torno da negociação orçamentária e da atribuição efetiva desses recursos para fins paroquiais.
Qualidade do capital humano: o Brasil é um país terrivelmente penalizado pela péssima qualidade do ensino, em todos os níveis, o que se reflete na produtividade medíocre da mão-de-obra, em geral, e nos níveis anormalmente baixos de inovação tecnológica em face do seu grau relativamente avançado de industrialização. Não é preciso dizer que em termos de cobertura da educação formal – ensino compulsório – já acumulamos um atraso quantitativo absurdo em termos de taxa de matrículas em face de países mais avançados (mais de um século de atraso, e ainda carentes nos níveis médio e superior), mas o mais grave se refere mesmo à qualidade do ensino, cujo estado deplorável se reflete de forma recorrente nos exames do PISA (programa de avaliação internacional da educação média, conduzido pela OCDE), onde invariavelmente ocupamos os últimos lugares, na companhia de países com renda per capita inferior à nossa diversas vezes. O Brasil, na verdade, não necessita de uma reforma educacional, e sim de uma revolução nesse setor, o que passa basicamente pela formação adequada de mestres nos vários níveis; atualmente, a pedagogia educacional está contaminada por uma ideologia nefasta identificada ao “patrono” da área, o deseducador Paulo Freire e seu imenso rol de bobagens pedagógicas. Enquanto o Brasil não se libertar de quimeras e adotar o critério do rendimento nos estudos básicos, com aferição rigorosa de metas e critérios de progressão no ensino, e com remuneração de professores também vinculada ao mérito e aos resultados, não haverá progresso possível. O isonomismo-igualitarismo radical pregado pelos sindicatos é especialmente nefasto na tarefa de soerguimento da qualidade dos mestres empregados no setor. A OCDE também possui excelentes estudos nessa área, e o Brasil tem aí uma excelente agenda para seguir.
Inserção na interdependência global: estamos falando aqui, basicamente, de abertura a investimentos estrangeiros e ao comércio internacional. Trata-se, como nos demais casos, de uma agenda essencialmente interna, pois que não é preciso esperar nenhuma rodada multilateral de negociações, no plano internacional ou regional, para conduzir, por decisão própria, um amplo programa de abertura econômica unilateral e uma liberalização comercial compatível com os requisitos de upgrade tecnológico, para melhorar os padrões de competitividade das empresas exportadoras brasileiras. Nem é preciso esperar por acordos de livre comércio bilaterais – se o Mercosul for reformulado – ou do bloco para tais objetivos; basta reduzir as barreiras para-tarifárias, e reduzir as alíquotas da Tarifa Externa Comum (como exceção para baixo ou decisão conjunta) para que o Brasil se aproxime, idealmente, dos coeficientes de abertura externa vigentes no resto do mundo (na média, o dobro dos praticados atualmente pelo país).
Tanto a OCDE, quanto os bancos multilaterais, assim como a própria OMC, possuem o know-how em todas essas matérias comerciais e de investimentos, e bastaria comparar, por exemplo, nosso exercício periódico de revisão da política comercial no âmbito da OMC e compará-lo, em todos os critérios, aos dos países melhor situados no grau de abertura externa. O fato é que o Brasil recuou nos últimos doze anos, tanto em matéria de protecionismo comercial – junto com a Argentina, no Mercosul, diga-se de passagem – quanto no terreno dos investimentos estrangeiros, uma vez que o partido no poder continua recusando até hoje ratificação a mais de uma dúzia de tratados bilaterais de proteção a investimentos que foram assinados pelo Brasil.
Conclusões não conclusivas: precisamos de uma agenda global para avançar?
Do rol de medidas elencadas nos parágrafos precedentes, se deduz que todos os problemas do país são de origem doméstica, e que nenhum é causado por um ambiente externo negativo ou pouco cooperativo para nossos requisitos de desenvolvimento. O Brasil enfrenta aquilo que os economistas institucionalistas chamam de altos custos de transação, e estes são causados essencialmente – para não dizer deliberadamente – por um Estado disfuncional e por regras e normas totalmente prejudiciais ao funcionamento de um ambiente de negócios minimamente satisfatório para as empresas nacionais (e as estrangeiras aqui instaladas, obviamente, o que diminui a atratividade do investimento).
Custos de transação são, em princípio, aferíveis, identificáveis e quantificáveis no plano técnico, ou seja, para o estabelecimento de um diagnóstico seguro, para em seguida merecer um conjunto de prescrições corretivas que deveriam colocar o país no caminho do crescimento sustentado e sustentável. Se o Brasil conseguir cumprir, por exemplo, pelo menos a metade do rol de recomendações constantes do Doing Business já terá feito enormes progressos nesse caminho. Mas muito mais é possível fazer num plano estritamente técnico de políticas setoriais recomendáveis, inclusive a decisão de não ter nenhuma política setorial, em certos casos: na área industrial, por exemplo, em lugar de estímulos generosos – via BNDES – ou de proteção tarifária absurda para as empresas instaladas no Brasil, se poderia começar por uma regulação liberalizadora e pela baixa geral da absurda carga fiscal a elas impostas, para que o ambiente se tornasse mais respirável e mais propenso à reconquista da competitividade externa. Não existem obstáculos culturais nessa área, apenas comportamentos atávicos e antiquados.
Existem, sim, idiossincrasias nacionais que serão mais difíceis de serem contornadas, e elas têm a ver com o atavismo estatal profundamente entranhado nos mais diversos estratos sociais do país: tanto trabalhadores quanto capitalistas pedem, esperam, imploram, todos os dias, por “políticas públicas” em uma área qualquer, em todas elas aliás, e tudo precisa ser constitucionalizado, ou tornado obrigatório, para que algo se faça, como se um fiat legislativo fosse capaz de resolver problemas estruturais. Essa cultura nefasta do estatismo, junto com seu irmão siamês, o nacionalismo rústico, constituem poderosos fatores de atrasos materiais, quando não são viseiras mentais a impedir soluções pelo lado dos mercados livres, da abertura econômica de modo geral.
Alguns simples exemplos devem bastar. Por que a Anvisa precisa proibir as farmácias de vender chiclete? Seria ele um perigo tão grande à saúde pública? Por que a Ancine tem de regular cotas mínimas para exibição de filmes nacionais? Seria para elevar a qualidade da filmografia à disposição do público? Por que pena de prisão para carona remunerada? A ANTT pretende proibir cidadãos de disporem de seus carros livremente, ou está defendendo carteis de transportadores mancomunados a políticos? Por que os motéis são obrigados a fornecer camisinhas aos seus clientes? Por que o cidadão comum é cotidianamente enganado pela mentira dos “dez vezes sem juros”, quando todas as lojas escondem o custo do financiamento no crediário? Enfim, haveria uma infinidade de exemplos absurdos que apenas comprovaria que o Brasil não é um país normal, definitivamente.
Um grande esforço de transformação, inclusive mental, precisaria ser feito, para aproximá-lo, um pouco que fosse, dos padrões de liberdades econômicas vigentes na maioria dos países. Aliás, uma consulta ao relatório anual das liberdades econômicas no mundo (http://www.freetheworld.com/) revelaria quão atrasados estamos nesses quesitos: chegamos a perder inclusive da China comunista em diversos requisitos setoriais – embora não o geral – de liberdades empresariais. O país não apenas se situa em posições humilhantes em diversos rankings econômicos internacionais, como vem recuando ano após ano nos de competitividade microeconômica e nos de liberdades econômicas de modo geral. Não apenas nossa desigualdade distributiva apresenta níveis africanos no coeficiente de Gini, mas os níveis de corrupção são também africanos, num país que tem uma renda per capita superior à média daquele continente. Existe algo de muito errado no Brasil, como comprovam todos os indicadores comparativos no plano mundial. Na maior parte deles, uma simples consulta aos relatórios produzidos por essas entidades oficiais e privadas nos indicaria o caminho para melhorar nossos índices.
Mais uma vez se constata que as reformas dos problemas internos passam por soluções absolutamente domésticas, ainda que elas possam ser guiadas por métodos e prescrições retirados das experiências nacionais de outros países, e que conformam um roteiro de boas práticas à disposição de qualquer administração engajada nos princípios e metas da boa governança. O que existe, finalmente, de internacional, na ampla gama de medidas que tornariam o Brasil um país melhor para si mesmo e para a comunidade internacional? Talvez começar por uma política externa promotora das democracias e dos direitos humanos, e não defensora de ditaduras e de regimes deploráveis nesses dois quesitos; já seria um progresso enorme em relação ao que assistimos nos últimos doze ou treze anos.
Em síntese, nossa agenda para avançar nas reformas pode até ser global, ou internacional, mas apenas nos princípios e nas orientações básicas, uma vez que o mundo abunda em exemplos positivos e negativos de governança, o que se reflete claramente em todos os indicadores de qualidade de vida. Sem ser um desastre completo em todos os quesitos, o Brasil deixa claramente a desejar – até recuando – em vários deles, e os diagnósticos não são difíceis eles também se encontram em todos esses relatórios, à disposição de qualquer administração esclarecida, aberta, e disposta a empreender reformas (partimos do princípio evidente que todos os países necessitam de reformas, o tempo todo). Poderá o Brasil empreendê-las?
Um simples julgamento de circunstância, com base no exame da situação em abril de 2015, indica claramente que não. O Brasil se arrasta penosamente no caminho de um sério ajuste em suas contas públicas, o que constitui uma condição preliminar, e indispensável, a qualquer processo de reformas estruturais e institucionais. Se e quando ele for bem sucedido na tarefa preliminar, e dependendo da qualidade de suas lideranças políticas, ele poderá começar a discutir o conjunto de reformas aqui elencadas. Antes disso, parece utópico ou simplesmente inútil. Oitenta anos atrás, o escritor, folclorista e musicólogo Mário de Andrade já tinha chegado a uma conclusão relativamente frustrante para os nossos brios: “progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade” (poema “O Poeta Come Amendoim”, 1924). Se nada for feito, em tempo hábil, vamos continuar, no futuro previsível, progredindo um tiquinho, por saltos e recuos, como no espaço das duas últimas décadas.
Pode-se fazer melhor? Certamente, mas isso depende de estadistas…
Leia os demais artigos da série: 
Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor do Centro Universitário de Brasília – Uniceub (@pauloalmeida53).

quarta-feira, 22 de abril de 2015

O Brasil e a agenda economica internacional 2: como se insere o Brasil? - Paulo Roberto de Almeida



O Brasil e a agenda econômica internacional: como o Brasil se insere no cenário mundial, agora e no futuro próximo? , por Paulo Roberto de Almeida


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O Brasil, como qualquer outro país, precisa estar sempre atento à evolução – ou seja, às transformações, às mudanças – do cenário internacional, em especial na área econômica, para definir, fixar, manter ou reorientar, pelo menos tentativamente, suas grandes opções de inserção ou atuação nesse cenário, em função de uma visão própria que possa ter dos desafios colocados a ele – como economia, como nação – e dos instrumentos de que dispõe para retirar as melhores vantagens desse ambiente cambiante, por vezes surpreendente, que é o cenário internacional ou regional.
Estar atento significar, em primeiro lugar, ter um responsável primeiro e último pelos destinos do país – nosso rei supostamente republicano, eleito, ou reeleito, a cada quatro anos (mas já tivemos por prazos maiores, sem reeleição, alguns que até se prolongaram indevidamente) –, um mandatário dotado de poderes legítimos e cercado de assessores próximos, em especial na área econômica e nas relações exteriores. Estes não devem ser apenas as antenas e os conselheiros de confiança do dirigente oficial, mas também chefes de equipe comandando assistentes competentes. Esse trabalho de prospecção, de diagnóstico, de previsão e de prescrição quanto ao que deve ser feito, ou seja, de políticas públicas, deve ser conduzido de maneira constante e meticulosa, praticamente o tempo todo. Estas são tarefas básicas de qualquer governo que se pretenda responsável pelos destinos da nação, ao assumir temporariamente as rédeas do Estado. Nas democracias de mercado, funcionando segundo o sistema representativo, são os partidos que disputam as preferências dos eleitores para exercer essas funções.
As tarefas da governança já foram discutidas ao longo dos séculos, de diversas formas, desde Aristóteles e suas descrições do corpo estatal e dos regimes políticos, passando por Maquiavel, e suas recomendações sinceras e brutais sobre como se deve conquistar, manter e monopolizar o poder sobre os homens, até os cientistas políticos funcionalistas da atualidade, em geral americanos. Estes últimos já tabularam todas as correlações existentes e possíveis entre os poderes, os agentes e suas motivações, por meio de elegantes curvas de regressão sobre os processos decisórios, tudo isso complementado por análises sobre a eficiência das instituições e suas ramificações.
Não é o caso, portanto, de retomar aqui esses princípios gerais, e sim de examinar como o Brasil se insere no cenário internacional, o atual, o do passado recente, e o de um provável futuro, para estabelecer algumas constatações muito simples, sobre como temos reagido, ou como temos suportado o cenário mundial e seus desdobramentos regionais. Nesta quesito, pode-se deixar de lado a conjuntura imediata e passar a examinar as tendências de médio e longo prazo, para aferir como o Brasil vem se adequando, se ajustando, se adaptando às mudanças no cenário internacional, em especial o econômico, uma vez que não se espera que ele consiga moldar esse cenário, um empreendimento que atualmente foge ao alcance mesma das maiores potências econômicas. Hipoteticamente, EUA e China seriam capazes de, agindo conjuntamente, influenciar decisivamente a economia política e os dados econômicos do atual cenário, mas essa perspectiva não é nem plausível, nem possível, por uma série de razões que caberia tratar em análise específica.
Vamos nos concentrar, portanto, no caso do Brasil, e a principal pergunta que deve ser feita a este respeito seria esta: estaria o Brasil bem inserido na região e no mundo, seus estadistas – se ele os possui – têm controle sobre os vetores principais de nossa inserção, eles têm, ao menos, consciência sobre os principais desafios que enfrentamos e os grandes problemas que precisamos superar para nos tornarmos não apenas uma nação mais próspera, mas também mais participante dessa coisa chamada comunidade mundial? Resumido: como o país trata, sofre ou “negocia” com o atual cenário internacional?
Vamos por partes, seguindo, para tanto, o roteiro delineado nas perguntas acima enunciadas. A primeira tem a ver com a nossa região, a mais suscetível de ser “influenciada” por esse gigante que faz metade do continente, nas suas diversas dimensões: demográfica, econômica, territorial, industrial, talvez científica e, ainda talvez, tecnologicamente (seria preciso compulsar estatísticas relativas a produção de artigos científicos, registro de patentes, produção industrial, mas vamos supor, para fins deste exercício, que o Brasil represente aproximadamente a metade do potencial sul-americano). A pergunta é, portanto: o Brasil está bem inserido na região?
Quem observa os movimentos diplomáticos, os fluxos de comércio de bens e de serviços, os investimentos diretos, os empréstimos realizados e, sobretudo, as ações diplomáticas e as iniciativas tomadas nos últimos cinco anos (este é o prazo médio das conjunturas econômicas) tem a impressão que o Brasil tem, sim, algum peso na região, e algum grau de influência sobre certos países, talvez mais por inércia do passado do que propriamente por indução ou capacidade de atuação deliberadamente direcionada. A despeito de contar com um grande banco que realiza operações externas, de manter um fluxo regular de intercâmbios econômicos dentro da região, é um fato que o Brasil vem perdendo espaços no continente, não apenas em favor da China – o grande ator emergente não só nesta região, como em quase todos os cenários continentais – mas também como resultado de iniciativas independentes adotadas por outros países, mesmo sendo parceiros relevantes.
O grande vetor da construção de um espaço econômico integrado na América do Sul, como tal pensado desde sua concepção, deveria ser o Mercosul, um projeto de mercado comum – enfim, fiquemos na união aduaneira, que deveria ser pelo menos completa e acabada, mas leva o nome de “incompleta” há mais de vinte anos – que tinha vocação a ser o núcleo organizador de uma rede regional de acordos de liberalização comercial (nas suas diversas modalidades operacionais) e podendo servir de base para o que foi chamado, uma vez, de Alcsa, a Área de Livre Comércio Sul-Americana, em lugar de aderir ao projeto americano da Alca (consoante nossa indisfarçável rejeição a qualquer projeto que tivesse os EUA como centro, isso em qualquer governo, mesmo um “neoliberal”). Ora, não é preciso ser nenhum gênio da análise política e econômica, ou dispor de uma central de informações, para constatar que o Mercosul é, hoje, uma sombra do que foi, um esquema quase moribundo de trocas comerciais, no qual os grandes parceiros parecem ter abdicado de sequer fazer menção aos objetivos sempre inconclusos (e cada vez mais distantes) do artigo 1o. do Tratado de Assunção, cada vez que se reúnem para exercícios repetidos de retórica vazia.
O outro grande esquema favorecido em 2004 pelo Brasil, a Comunidade Sul-Americana de Nações, e que deveria ter sede no Rio de Janeiro – mas depois convertida em Unasul, com sede em Quito, por manobras do ex-caudilho da Venezuela – tornou-se praticamente um instrumento de fácil manipulação pelos países ditos bolivarianos, e não é capaz de sequer observar sua própria cláusula democrática ante situações de clara, e grave, deterioração da democracia num dos maiores membros da organização. Não se pode dizer, tampouco, que o Brasil possua alavancas próprias que possam fazer com que essa entidade sirva, pelo menos, para cumprir seu outro objetivo estatutário, que são projetos de integração física no continente. Não se tem notícia de nenhum grande empreendimento que tenha resultado do planejamento ou da ação da Unasul, embora tenham sido criadas diversas novas entidades – inclusive uma supostamente de defesa – que todas tem o objetivo implícito de retirar os países da área de influência dos EUA.
Se essa diminuição de estatura e de influência ocorre no plano regional, não parece claro que o panorama seja mais positivo no plano mundial, não necessariamente universal, mas o do mundo que pode receber impulsos relevantes por parte do Brasil. Esse mundo é o do Ibas (com Índia e África do Sul), o do Brics, juntando mais a Rússia e a gigantesca China (que sozinha faz mais da metade de tudo o que representa o Brics), o de alguns países africanos de expressão portuguesa – onde existe algum espaço para a cooperação bilateral e plurilateral no âmbito da CPLP – e, talvez, o “mundo” do G20, em princípio comprometido com a coordenação de políticas econômicas em escala global, mas que aparece cada vez como mero esforço de coreografia para discursos bem intencionados dos principais líderes mundiais, sem grandes consequências práticas. Em todos esses cenáculos o Brasil aparece com um discurso em favor da “democratização das relações internacionais”, que é o slogan politicamente correto para sua reivindicação de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas que não parece dispor de apoios suficientes atualmente (sequer dentro do próprio Brics) para se concretizar no futuro previsível.
Durante muito tempo, desde o início da década passada, o Brasil – ou, para ser mais exato, sua direção política – insistiu numa tal de diplomacia Sul-Sul, como sendo o vetor privilegiado de sua inserção internacional, e assim foi feito e agitado, nos vários continentes daquilo que outrora se chamava de Terceiro Mundo. Não se tem um balanço honesto, independente, de como essa diplomacia com nítido determinismo geográfico conseguiu, realmente, realçar a capacidade de influência do país no mundo, ou de como isso reforçou nossa presença econômica nas diversas interfaces de relacionamento no plano externo, em especial no campo econômico. O Brasil continua a exibir a mesma modesta participação no comercio internacional – pouco mais de 1% desde sempre – e se situa num patamar inferior – menos de 50% da média mundial – em termos de coeficiente de abertura externa, o que é um resultado inteiramente determinado por nossa própria política econômica, em especial a comercial e a industrial.
Para sermos absolutamente sinceros, e precisos no diagnóstico, é importante reconhecer que todos os nossos problemas – esses que impedem uma maior presença e participação, e capacidade de influência do Brasil nos assuntos regionais e mundiais – derivam de causas essencialmente internas, e de nenhuma maneira se devem a um ambiente hostil no plano externo ou a uma hipotética “crise internacional”. Enquanto os estadistas – se os há, como já questionado – nacionais não forem capazes de equacionar, com realismo, a origem dos nossos problemas, e eles são todos de natureza interna, o país vai ter dificuldades em empreender as reformas necessárias para ter uma maior capacidade de inserção internacional e de influenciar a agenda econômica mundial.
A realidade atual, sem qualquer disfarce ou desculpa, é esta aqui: o Brasil não possui nenhuma grande estratégia de inserção global, pelo menos uma que se desdobre em ações concretas, para além dos discursos meramente retóricos com que dirigentes e ministros enganam a si mesmos, e tentam enganar os demais, nos cenáculos abertos ao engenho e arte de nossa diplomacia. Se existem alguns projetos parciais – que vão sendo desenhados pela proverbial excelência de nossa diplomacia, se ela de fato existe – eles vão se adaptando aos desafios de cada momento, como podem ser as questões do meio ambiente, da segurança na internet, das negociações comerciais multilaterais e de alguns poucos outros temas nos quais os profissionais da diplomacia conseguem se elevar acima da introversão também proverbial de nossa burocracia governamental.
Na verdade, os desafios brasileiros, como já afirmado, são basicamente internos, e o mundo tem sido leniente, bastante generoso para com o Brasil; o comércio mundial, a despeito da “reprimarização” da economia brasileira, tem permitido saldos positivos nos terrenos em que somos competitivos. Se não conseguimos fazer mais, foi porque uma política econômica totalmente equivocada retirou competitividade das empresas brasileiras vinculadas ao comércio exterior. No plano das finanças globais, não se pode dizer que o mundo esteja carente de capitais, e o Brasil não precisaria, de nenhuma forma, aderir a bancos ad hoc – Banco del Sur, Banco dos Brics (NDB), ou o novo banco asiático de investimento em infraestrutura – para poder atrair todos os capitais de que necessita para impulsionar seus próprios projetos de desenvolvimento.
Quando não existe confiança na qualidade da política econômica, pode-se cair rapidamente numa fuga de capitais, o que leva inevitavelmente a uma desvalorização cambial, um cenário já bem conhecido pelo Brasil e outros países latino-americanos. O que se observa na conjuntura recente, são ajustes erráticos tanto no plano das contas internas – um ajuste fiscal feito de mais impostos e encargos – quanto no plano das transações correntes, infelizmente na direção de mais protecionismo. Os investimentos diretos, que já colocaram o Brasil nos primeiros lugares do ranking nos últimos anos, podem se retrair progressivamente, à medida em que se confirme a retração – a palavra correta é recessão – da economia interna e a morosidade na região.
O mais relevante, porém, deriva de uma inacreditável característica da psicologia nacional, traço ainda mais reforçado depois de uma década e meia de dominação de uma vertente do keynesianismo rústico que vigora ainda na América Latina, a que transforma medidas anticíclicas típicas de conjunturas emergenciais em políticas  de desenvolvimento: os brasileiros, em geral, aderem a um tipo de nacionalismo canhestro que os faz ser receptivos ao capital estrangeiro, mas profundamente adversos ao capitalista estrangeiro, o que parece ser esquizofrênico. É esse tipo de crença que sustenta medidas de preferência nacional, leis de conteúdo local, exclusões reiteradas a investimentos estrangeiros em determinados setores e históricos controles de capitais e de transações cambiais. Não há perspectiva, na atual conjuntura, que esse tipo de mentalidade possa reverter no futuro próximo.
O Brasil tem condições de se projetar de maneira mais afirmada nos cenários econômicos e diplomáticos  mundiais? Talvez, mas muito depende, de um lado, de reformas internas que possa ser capazes de apoiar um processo dinâmico e sustentado de crescimento e de participação nos intercâmbios globais e, do outro, do surgimento de lideranças políticas que se alcem à condição de estadistas responsáveis, uma hipótese aparentemente distante na presente conjuntura. Em conclusão: a despeito de sua presença relativamente importante entre as grandes economias do mundo, o Brasil exibe uma capacidade limitada de influenciar o cenário internacional, seja pela via econômica, seja pela via diplomática. Sem ser irrelevante, o Brasil carece de maiores alavancas materiais ou políticas para construir uma força própria no plano global.

Este é o segundo de uma série de quatro artigos. Os próximos serão os seguintes: 
  • Como e qual seria uma (ou a) agenda ideal para o Brasil?
  • O que o Brasil deveria exatamente fazer para maximizar a “sua” agenda?
Leia o primeiro artigo da série: 
Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor do Centro Universitário de Brasília – Uniceub (@pauloalmeida53).

quarta-feira, 15 de abril de 2015

O Brasil e a agenda economica internacional: cenario atual - Paulo Roberto de Almeida

Ficha do mais recente trabalho publicado:
2807. “O Brasil e a agenda econômica internacional, 1: como se apresenta o cenário econômico internacional da atualidade?”, Hartford, 6 abril 2015, 4 p. Análise da situação econômica atual do mundo, em preparação para a discussão da posição e dos desafios para o Brasil. Mundorama (15/04/2015; link). Relação de Publicados n. 1172. 
Para outros artigos meus em Mundorama, ver: http://mundorama.net/?s=Paulo+Roberto+de+Almeida+
Paulo Roberto de Almeida  

O Brasil e a agenda econômica internacional: Como se apresenta o cenário econômico internacional da atualidade?, por Paulo Roberto de Almeida


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Depois de oito anos de deslanchada a crise imobiliária e bancária nos Estados Unidos, da qual eles se recuperam lenta mas seguramente, os demais países avançados (o Japão certamente, os países europeus em ritmo mais diversificado) continuam a trilhar o caminho da superação dos piores problemas acumulados na passagem da década, mas ainda no baixo crescimento e enfrentando a tradicional irresolução de políticos timoratos em conduzir um programa consistente de reformas estruturais. O mundo só não está pior porque uma parte das economias emergentes dinâmicas serve de motor limitado para a economia global. Aquela expectativa de que, funcionando de maneira simbiótica, EUA e China poderiam representar uma poderosa locomotiva de expansão contínua do comércio e dos investimentos internacionais não se confirmou, e a própria China parece acumular alguns desequilíbrios – nas áreas financeira e imobiliária justamente – que podem prolongar a atual lentidão na retomada de um ritmo mais sustentado da economia global.
Todos os países desenvolvidos podem ter exagerado nas medidas de “estímulo econômico” – ou seja, a velha injeção keynesiana de liquidez nos mercados – e de incentivo ao investimento – reduzindo as taxas de juros a praticamente zero, quando não são negativas em alguns – o que promete continuar desestimulando a poupança e agregar aos níveis já altos, até exagerados, de endividamento público. O consolo é que o custo dessas dívidas ainda é relativamente baixo, mas o retorno a condições normais de juros, combinado ao declínio demográfico em vários deles, não augura um futuro brilhante para a atual geração de entrantes no mercado e suas respectivas aposentadorias.
Uma eventual recessão na China – aparentemente improvável, mas não de todo impossível, ou descartável – pode piorar, e bastante, o cenário de médio prazo para os países que se tornaram parceiros comerciais privilegiados, em especial os exportadores de produtos primários da África e da América Latina, que se beneficiaram bastante bem do boom das commodities dos anos fastos, quando a China absorvia entre um quarto e um terço de várias mercadorias e insumos de base. O Brasil – o governo Lula em especial – foi um desses felizardos que se locupletaram de dólares com a soja a 600 dólares e o minério de ferro a 200 dólares a tonelada; ao que parece, esse tempo já passou, embora os preços dos agrícolas e das carnes não tenham declinado para profundezas tão tenebrosas quanto as dos fósseis e de alguns metálicos. Em todo caso, o mundo pode se beneficiar do petróleo barato e da nova demanda de manufaturados por parte das novas “classes médias” pipocando aqui e ali em diversos continentes (alô Apple, alô Samsung!).
No terreno do comércio internacional, as perspectivas não são entusiasmantes: as negociações da Rodada Doha estão em crise, seus resultados até aqui foram mais do que decepcionantes e não se vislumbra sua conclusão próxima ou mesmo hipotética, muito embora se tenha registrado a preservação do básico, que é um respeito mínimo pelas regras multilaterais, com salvaguardas e antidumping registrando estatísticas mais ou menos “normais” (com exceção de alguns recalcitrantes e protecionistas renitentes, como pode ser o caso aqui mesmo na América Latina); mas, pela primeira vez em décadas, a taxa de crescimento do comércio mundial fica abaixo da expansão do produto, ainda que com grandes desigualdades regionais (na Ásia Pacífico, por exemplo, a expansão comercial se mantém em ritmo razoável dentro da própria região).
No terreno das finanças e das moedas não se registraram as catástrofes que alguns profetas do apocalipse do passado – o da repetição da Grande Depressão dos anos 1930 – tinham anunciado quando das crises bancárias de 2008 e 2009, mas vários economistas falam da atual Grande Recessão com um prazer quase mórbido. Tensões e conflitos localizados se manifestam aqui e ali, a descoordenação é garantida nas políticas macroeconômicas dos integrantes do G20, mas não se tem mais a acrimônia de uma suposta “guerra cambial” do yuan contra as principais moedas ocidentais; aqueles que falavam de “tsunami financeiro” se preocupam agora com a retração dos fluxos de dinheiro fácil que, jorrando, alimentavam alguns belos déficits de transações correntes aqui e ali (não é keynesianos de botequim de conhecidos países equilibristas bêbados?).
Nos principais países desenvolvidos se observa, nesse capítulo, a continuidade da livre movimentação de capitais, com os controles esperados nos emergentes, e com as paridades cambiais evoluindo gradualmente, embora surpresas desagradáveis não sejam de se descartar (o tango dólar-euro é um dos mais interessantes). A inflação baixa está garantida nos principais países responsáveis, e só malucos localizados conhecem taxas a dois dígitos (mas esses são casos terminais de esquizofrenia econômica); inovadores monetários – como alguns que achavam que uma expansão irrefletida do crédito poderia sustentar um boom de consumo e de investimentos – se encontram hoje em maus lençóis, tendo de suportar greves e o descontentamento dessa classe média alimentada na ilusão do crediário “sem juros”. Aprendizes de feiticeiros econômicos acabam aprendendo da pior maneira, tendo de administrar a velha conhecida estagflação, ou seja, a combinação da estagnação econômica, com baixo crescimento e alto desemprego e uma inflação persistente, como tinha sido o caso nas principais economias avançadas pós-choques do petróleo dos anos 1970. Seria agora a vez do Brasil?
Keynes deve ter escrito em algum lugar que nunca se é profeta duas vezes, mas tem gente que não lê nem orelhas dos manuais econômicos, quanto mais as obras completas do mais irreverente professor de Cambridge. Seus atuais seguidores de araque se contentam com as platitudes neo-Prebischianas de um coreano da mesma universidade, que também acha que existe um complô dos ricos contra os pobres, aqueles chutando a escada pela qual deveriam subir os novos desenvolvimentistas. Alguns até continuam repetindo as mesmas bobagens dos anos 1990 contra o Consenso de Washington, como se essas simples regras de bom senso reformista tivessem algo a ver com as agruras passadas ou com as angustias presentes dos neo-estagnacionistas.
A despeito de todos esses percalços, o regime econômico multilateral se mantém mais ou menos intacto, tal como concebido em Bretton Woods mais de setenta anos atrás e reformado aqui e ali com remendos de ocasião por quem podia fazê-los. Outros países se contentam em absorver os choques e aproveitam para dar continuidade às mesmas políticas oportunistas que foram as suas nas fases de industrialização triunfante, o que de toda forma lhes assegurou certo aumento no bolo da interdependência global. Alguns certamente avançaram, como os emergentes da Ásia Pacífico, bem mais, em todo caso, do que os saudosistas da América Latina, que parecem não sair do lugar, ou retroceder.
No terreno da segurança, que também tem impactos econômicos, em lugar da diminuição gradual dos focos de tensão entre as grandes potências, observa-se o que alguns chamam de retorno à Guerra Fria, não se sabe se como farsa, ou se como simples sobressaltos de suspiros imperiais, na antiga periferia soviética. O Oriente Médio nunca decepciona em confirmar as piores expectativas que sempre marcaram aquela região, com o longo impasse entre Israel e Palestina, e os novos problemas do fundamentalismo islâmico agora convertido em califado expansionista e guerreiro. Com isso, o rebrote de tensões e de conflitos civis ou inter-religiosos, em estados semifalidos (ou por completo, como parece ser o caso da Síria e do Iêmen) promete dar continuidade a velhos problemas de pobreza, de miséria e de desesperança em sociedades já de ordinário martirizadas – se o termo se aplica – por intratáveis contradições entre a manutenção da tradição e as explosões de modernidade na população juvenil e conectada.
No meio ambiente, finalmente, os compromissos são frágeis, as reconversões são difíceis e todos os atores prefeririam ter os custos da adaptação transferidos, segundo os casos, para os mais ricos, para os emergentes, para os poluidores históricos, para os novos poluidores, para os destruidores de florestas, etc. Se e quando alguns acordos forem ratificados, eles já estarão superados pelos esforços adaptativos dos agentes primários da globalização ambiental, que são as empresas de consumo de massa, no caso pressionadas pela opinião pública (atuando mais em função do politicamente correto do que de sólidos princípios econômicos relativos a preços de mercados de bens escassos).
Alguma esperança nisso tudo? Talvez. Afinal de contas, o novo papa, que parece ser peronista em economia, promete ao menos fazer um aggiornamento necessário nos “costumes” da sua Igreja e continuar o diálogo com as outras comunidades de fé, o que talvez suscite algum avanço por parte de certos representantes do Islã no sentido de dar início a um também necessário trabalho de exegese da palavra do profeta. Nunca é demais esperar um pouco de racionalidade da raça humana. Mas não façam apostas…

Este é o primeiro de uma série de quatro artigos. Os próximos serão os seguintes: 
  • Como o Brasil se insere nesse cenário, agora e no futuro próximo?
  • Como e qual seria uma (ou a) agenda ideal para o Brasil?
  • O que o Brasil deveria exatamente fazer para maximizar a “sua” agenda?
Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor do Centro Universitário de Brasília – Uniceub (@pauloalmeida53).

segunda-feira, 6 de abril de 2015

O Brasil e o direito comercial: uma lenta, e longa, evolucao - Paulo Roberto de Almeida

Meu artigo mais recente publicado em Mundorama:
Paulo Roberto de Almeida

A globalização e o direito comercial: uma longa evolução, por Paulo Roberto de Almeida

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O direito comercial, em seu sentido estrito, é bem mais recente do que as formas mais primitivas de comércio entre as comunidades humanas: codificado de modo sistemático, tal como a conhecemos atualmente, ele pode ser considerado como historicamente contemporâneo da era das grandes navegações, quando, pela primeira vez na história da humanidade, o planeta se tornou efetivamente global, a partir da gesta colombina, em 1492, e do périplo marítimo de Fernão de Magalhães, em 1521. Desde então, ele vem conhecendo progressos formais e substantivos, impulsionando, no plano do rule-making, as diversas ondas de prosperidade que tanto beneficiaram as sociedades da era moderna e contemporânea nos últimos cinco séculos.
Na sua expressão mais antiga, porém, ele pode ser visto como praticamente simultâneo aos primeiros estabelecimentos estáveis de ocupação humana em um determinado território, aqueles dotados de instituições estatais permanentes e, portanto, de regras formais para administrar as relações entre as pessoas e seus ativos materiais. A despeito do fato de que linhas regulares de comércio já existiam nas primeiras comunidades humanas de tipo urbano, desde o oitavo milênio antes de Cristo – com destaque para Çatal Hoyuk, na atual Turquia – a modalidade original de uma lex mercatoria primitiva está presente numa das 282 leis do Código de Hamurabi, conhecido por existir no primeiro estado “moderno” no começo do segundo milênio a.C., na Babilônia. Com efeito, diversos dispositivos desse código regulavam aspectos privados e públicos da atividade humana, entre eles comércio, finanças e propriedade, influenciando, mais tarde, a redação do direito romano e suas derivações regionais nas mais diversas comunidades desse vasto império da antiguidade clássica.
A presença do Estado, como regulador das relações entre agentes econômicos, ou a própria iniciativa dos agentes, entre si, se fazia presente numa das “leis” desse Código, especialmente a que determinava as obrigações recíprocas entre as partes numa transação qualquer. Essa lex mercatoria da Mesopotâmia dizia o seguinte: “Se o mercador conceder, a um agente, milho, lã, óleo, ou qualquer outro tipo de bem com o qual comerciar, o agente deve registrar o valor [da mercadoria] e retornar [o dinheiro] ao mercador; o agente deve tomar um recibo selado pelo [valor do] dinheiro que ele conceder ao mercador”.[1] Como se vê, não apenas o direito comercial deita raízes nos exemplos mais precoces de intercâmbio comercial, mas o próprio intervencionismo estatal é bem mais antigo do que se imagina, com base nas formas modernas de mercantilismo e de ativismo econômico estatal, a partir da consolidação da forma atual do Estado centralizado, nas monarquias absolutas da Europa pós-medieval.
Foi justamente nessa fase de unificação comercial do mundo por meio das grandes navegações ultramarinas e no alvorecer do mercantilismo enquanto doutrina oficial de vários estados engajados na expansão imperial que uma espécie de lex mercatoria universal começa a tomar forma, em padrões relativamente similares aos atualmente conhecidos. Ela nem sempre foi escrita, sendo bem mais “codificada” informalmente numa série de práticas reciprocamente aceitas por mercadores nos mais diversos portos do mundo. Menos de duas décadas depois que Vasco da Gama abriu o caminho das Índias aos comerciantes portugueses – e, de fato, a todos os demais concorrentes europeus – um farmacêutico português convertido em negociante e diplomata informa, chamado Tomé Pires, deixou, em sua Suma Oriental (1512), uma descrição saborosa do porto de Malaca, no estreito que leva do Índico ao Pacífico, uma aglomeração de 40 a 50 mil pessoas, mas dividida em 61 “nações” representadas em seu comércio de transbordo e em cujo porto se faziam negócios em 84 línguas, do Golfo Pérsico ao conjunto da Ásia. Ele expressava sua admiração pelo exuberante comércio e os altos lucros produzidos pelo intenso intercâmbio de mercadorias entre essas diversas partes do mundo, traduzindo empiricamente o que pode ser considerado como o início do direito comercial dos tempos modernos:
Malaca é uma cidade que foi feita para mercadorias, bem mais do que qualquer outra no mundo; [é] o fim das monções e o começo de outras [os ventos e as correntes marítimas que aceleravam a navegação entre o Mar Vermelho e as costas da Índia]. Malaca está cercada e se situa no meio, e as trocas e o comércio entre as diferentes nações situadas a um milhar de léguas em todas as direções precisam se dirigir a Malaca… Quem for senhor de Malaca, tem a sua mão na garganta de Veneza.[2]
Desde então, o direito comercial abandonou suas formas mais espontâneas, tal como existentes na península itálica da Idade Média tardia, e passou a ser codificado num conjunto de regras e princípios que unem, de modo praticamente natural, uma das mais antigas comunidades globalizadas da civilização humana: a dos comerciantes, que constituem, segundo Nayan Chanda, junto com os pregadores, os guerreiros e os aventureiros, os agentes primários mais constantes da globalização.
De fato, pode-se identificar antecedentes do direito comercial em tempos recuados, entre os fenícios, por exemplo, depois com os romanos e os comerciantes do Báltico, na alta Idade Média, como os legítimos predecessores dos progressos que seriam observados a partir dos tempos modernos, sempre vinculados ao comércio marítimo e às navegações de caráter exploratório e de penetração comercial. A partir de seus passos iniciais nas cidades florescentes da Europa medieval, ele terá intenso desenvolvimento nos séculos seguintes, sempre assumindo um caráter transnacional, o que o torna, efetivamente, um dos pilares da primeira onda de globalização, a que toma impulso na era moderna, antes mesmo da revolução industrial. Ocorreu, é verdade, uma distinção entre a sua aplicação pela common law, de tradição britânica, e sua regulação estatal pelas Ordonnances sur le commerce de terre (e de mer), na época de Luís XIV, como consagra a tradição dirigista continental, mais especificamente francesa. Depois dessa legislação da época absolutista, a França napoleônica promulgou, em 1807, seu Código Comercial, base de inúmeros outros instrumentos em diversos países.
O Brasil não ficou imune a esse movimento, mas foi preciso aguardar quase meio século para que fosse aprovado o primeiro Código Comercial, em 1850. Essa importação do modelo francês de regulação mercantil não se fez sem certo prejuízo do comércio e das atividades econômicas em geral, já que internalizou igualmente o padrão dirigista e intervencionista do Estado sobre atividades eminentemente privadas. De fato, como indica um historiador do caso francês, o Code atribui preeminência às sociedades pessoais: “La société anonyme, qui est une association de capitaux, est regardée avec méfiance et doit être autorisée par l´État comme un cas d’exception. Ce régime restrictif entrave la création des grandes compagnies”.[3]
É verdade que os legisladores brasileiros aproveitaram não só elementos do código francês, mas também dos códigos espanhol (1829) e português (1833) para elaborar um instrumento próprio, mas esse processo não foi linear, pois que durante certo tempo ainda continuaram a vigorar no Brasil a legislação herdada do período português, no qual vigiam, em matéria comercial, as Ordenações Filipinas, ou ainda a Lei da Boa Razão, de 1769, em virtude da qual eram subsidiárias, nas questões mercantis, as normas legais “das nações cristãs iluminadas e polidas que com elas estavam resplandecendo na boa, depurada e sã jurisprudência”.[4]
Instalada em 1832 uma comissão de “pessoas probas e inteligentes” em matéria de comércio, concluiu-se dois anos depois um projeto elaborado sob a inspiração de que “um código de comércio deve ser redigido sobre os princípios adotados por todas as nações comerciantes, em harmonia com os usos e estilos mercantis, que reúnem debaixo de uma só bandeira os povos do novo e do velho mundo”.[5] Após longos debates parlamentares e uma tramitação delongada nas duas Câmaras, foi finalmente promulgada, em junho de 1850, a lei nº 556, Código Comercial do Império do Brasil, com 913 artigos divididos em três partes: do comércio em geral, do comércio marítimo e das quebras (isto é, das falências); completava-o um título sobre os tribunais de comércio e sobre a ordem do juízo nas causas comerciais. Ele não fazia em princípio discriminação contra os não nacionais, colocando obviamente sob sua jurisdição todos os atos de comércio praticados por estrangeiros residentes no Brasil. O Código não reconhecia, porém, o ato de comércio isolado, exigindo, como condição de comercialidade, a intervenção de pelo menos um comerciante, ou seja um agente de profissão mercantil. A condição de comerciante estava pois reservada, além das sociedades mercantis ou por ações, à pessoa física exercendo profissionalmente o comércio, sem distinção de nacionalidade.
A partir do Código de 1850, qualquer estrangeiro capaz, residente no Brasil, podia legalmente ser comerciante, assim como as empresas constituídas sob as leis brasileiras; estas últimas, tendo a maioria ou mesmo a totalidade de seus sócios de nacionalidade estrangeira, nem por isso deixavam de ser nacionais, se registradas de acordo com a legislação do Brasil. De fato, os estrangeiros dominavam certos ramos do comércio de importação de maneira absoluta, como por exemplo os portugueses para os vinhos e os britânicos nos artigos de vestuário e objetos de metalurgia. O declínio relativo, depois da guerra do Paraguai, da presença dessa última nacionalidade, comparativamente a outros comerciantes estrangeiros, como os franceses e alemães, é explicado como resultante da ligação direta, via cabo submarino, entre a Europa e o Brasil, o que permitia um contato direto entre os fornecedores europeus e seus clientes brasileiros. Mesmo entre os comissários de café, atividade que a historiografia tradicional sempre acreditou ser dominada por brasileiros, a presença estrangeira era majoritária: de maneira geral, os brasileiros eram a minoria no comércio internacional.
Salvo restrições específicas, decorrentes da legislação ordinária, os comerciantes de nacionalidade estrangeira se equiparavam aos nacionais. O próprio Código estabelecia algumas dessas restrições, na sua parte relativa ao comércio marítimo, por exemplo, que reservava prerrogativas e favores a embarcações brasileiras aquelas que pertencessem efetivamente aos súditos do Império. A proibição, nesse caso, era drástica: se alguma embarcação registrada como sendo brasileira pertencesse de fato a estrangeiro, ela poderia ser apreendida; a navegação de cabotagem, salvo durante um período, foi em geral reservada a embarcações brasileiras, da mesma forma como deveriam ser brasileiros e domiciliados no Império os capitães ou mestres de navios.
Esta era, contudo, uma situação relativamente excepcional, pois que, no mais das vezes, o grosso das atividades econômicas estava aberto à participação de capitais e de cidadãos estrangeiros, operando em grande medida sem necessidade de autorização prévia, mediante mero registro na junta comercial. Alguns setores podiam exigir a concessão da autoridade, como as lavras das minas, os transportes ferroviários ou navais, a iluminação pública e a instalação de cabos telegráficos, o que implicava formalmente um ato administrativo, mais raramente a promulgação de uma lei, atribuindo permissão temporária para o oferecimento de algum serviço ou o desempenho de alguma atividade.
Mais para o final do Império, com o crescimento da presença estrangeira na vida econômica nacional, alguns setores começaram a expressar reservas quanto à sua conveniência para o País. Lei aprovada em 1882, que liberou a organização de empresas de responsabilidade limitada — até essa data, as empresas somente podiam operar legalmente após consentimento expresso do Conselho de Estado —, exigia em contrapartida que as empresas estrangeiras ainda conseguissem aprovação específica do Parlamento para se instalarem.[6] De forma geral, o Brasil republicano vai operar uma nacionalização de grande parte das atividades econômicas – data do início do século XX a “lei do similar nacional”, de feição claramente protecionista –, tendência que seria reforçada ainda mais pela Constituição e pelos diversos códigos de exploração de recursos naturais surgidos a partir da revolução de 1930; a ditadura estado-novista exacerbaria o protecionismo e o nacionalismo estatizante, características que só seriam revertidas, praticamente, na última década do século, para novamente emergirem com força a partir de 2003, com a mudança de maioria política, e sua ideologia econômica, no Executivo e no Parlamento.
O direito comercial no Brasil aparece e se desenvolve, portanto, não exatamente como uma emanação da própria sociedade econômica, mas possuindo estreitos vínculos com a soberania estatal, aspecto sempre cultivado na tradição jurídica brasileira, já que tivemos de esperar quase o final do século XX para, finalmente, aprovar uma lei de arbitragem, equiparando esse mecanismo facilitador aos laudos judiciais. De fato, até parece uma aberração que se tenha tido de aguardar décadas, senão um século inteiro, para que fosse finalmente incorporada a arbitragem ao ordenamento jurídico brasileiro, quando esse instituto integra desde muito tempo os procedimentos comerciais típicos nos países da Custom Law, inclusive quando estão envolvidos agentes nacionais e estrangeiros. A arbitragem é uma espécie de direito comercial alternativo aplicado pela própria classe dos comerciantes: ele não se apresenta apenas como um instrumento de utilidade prática, mas de fato como uma real necessidade, aliás plenamente compatível com os mecanismos e os processos mais característicos da globalização: rapidez, flexibilidade, liberdade dada aos próprios agentes de escolherem foro aplicável, base legal, instrumentos decisórios e os “juízes”, ou árbitros, da disputa.
Dos albores da humanidade, ainda nos tempos de Hamurabi e suas tabletes de argila, rabiscadas em caracteres cuneiformes, aos nossos tempos, de escrita virtual e de tabletes digitais, o comércio, de bens físicos ou intangíveis, continuará a se expandir em ritmo sempre superior ao do próprio crescimento da produção física no mundo. Sua expressão regulatória, o direito comercial, é consubstancial a esse desenvolvimento e o conhecimento adequado de suas normas por parte dos agentes diretos do comércio é essencial agentes primários da globalização. Mas mesmo não o conhecendo a fundo, todos o praticam, consciente ou inconscientemente: como o personagem de Molière, que fazia prosa sem saber, somos todos, um pouco, contrafações de Monsieur Jourdan na era da globalização.
[1] Citado por Nayan Chanda, Bound Together: How Traders, Preachers, Adventurers, and Warriors Shaped Globalization (New Haven: Yale University Press, 2007), p. 30 e 339, com base em R. H. Pfeiffer, “Hammurabi Code: Critical Notes”, American Journal of Semitic Languages and Literatures (1920): 310-15; “Business in Babylon”, Bulletin of the Business Historical Society 12 (1938): 25-27. Existe uma edição brasileira desse livro: Sem Fronteira (Rio de Janeiro: Record, 2011).
[2] Citado igualmente por Nayan Chanda, Bound Together, op. cit., com base em Armando Cortesão (tradutor e editor), The Suma Oriental of Tomé Pires… and the Book of Francisco Rodrigues (Londres: Hakluyt Society, 1944, p. 286-87), p. 52 e 342.
[3] Cf. Gabriel de Broglie, Le XIXe Siècle: l’éclat et le déclin de la France (Paris: Perrin, 1995), p. 175.
[4] Cf. João E. Borges, Curso de Direito Comercial Terrestre (Rio de Janeiro: Forense, 1969), p. 35.
[5] Idem, p. 37.
[6] Cf. John Schulz, A crise financeira da abolição: 1875-1901 (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Instituto Fernand Braudel, 1996), p. 16.
Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor do Centro Universitário de Brasília – Uniceub (@pauloalmeida53).