O
Brasil, como qualquer outro país, precisa estar sempre atento à
evolução – ou seja, às transformações, às mudanças – do cenário
internacional, em especial na área econômica, para definir, fixar,
manter ou reorientar, pelo menos tentativamente, suas grandes opções de
inserção ou atuação nesse cenário, em função de uma visão própria que
possa ter dos desafios colocados a ele – como economia, como nação – e
dos instrumentos de que dispõe para retirar as melhores vantagens desse
ambiente cambiante, por vezes surpreendente, que é o cenário
internacional ou regional.
Estar atento significar, em primeiro
lugar, ter um responsável primeiro e último pelos destinos do país –
nosso rei supostamente republicano, eleito, ou reeleito, a cada quatro
anos (mas já tivemos por prazos maiores, sem reeleição, alguns que até
se prolongaram indevidamente) –, um mandatário dotado de poderes
legítimos e cercado de assessores próximos, em especial na área
econômica e nas relações exteriores. Estes não devem ser apenas as
antenas e os conselheiros de confiança do dirigente oficial, mas também
chefes de equipe comandando assistentes competentes. Esse trabalho de
prospecção, de diagnóstico, de previsão e de prescrição quanto ao que
deve ser feito, ou seja, de políticas públicas, deve ser conduzido de
maneira constante e meticulosa, praticamente o tempo todo. Estas são
tarefas básicas de qualquer governo que se pretenda responsável pelos
destinos da nação, ao assumir temporariamente as rédeas do Estado. Nas
democracias de mercado, funcionando segundo o sistema representativo,
são os partidos que disputam as preferências dos eleitores para exercer
essas funções.
As tarefas da governança já foram
discutidas ao longo dos séculos, de diversas formas, desde Aristóteles e
suas descrições do corpo estatal e dos regimes políticos, passando por
Maquiavel, e suas recomendações sinceras e brutais sobre como se deve
conquistar, manter e monopolizar o poder sobre os homens, até os
cientistas políticos funcionalistas da atualidade, em geral americanos.
Estes últimos já tabularam todas as correlações existentes e possíveis
entre os poderes, os agentes e suas motivações, por meio de elegantes
curvas de regressão sobre os processos decisórios, tudo isso
complementado por análises sobre a eficiência das instituições e suas
ramificações.
Não é o caso, portanto, de retomar aqui
esses princípios gerais, e sim de examinar como o Brasil se insere no
cenário internacional, o atual, o do passado recente, e o de um provável
futuro, para estabelecer algumas constatações muito simples, sobre como
temos reagido, ou como temos suportado o cenário mundial e seus
desdobramentos regionais. Nesta quesito, pode-se deixar de lado a
conjuntura imediata e passar a examinar as tendências de médio e longo
prazo, para aferir como o Brasil vem se adequando, se ajustando, se
adaptando às mudanças no cenário internacional, em especial o econômico,
uma vez que não se espera que ele consiga moldar esse cenário, um
empreendimento que atualmente foge ao alcance mesma das maiores
potências econômicas. Hipoteticamente, EUA e China seriam capazes de,
agindo conjuntamente, influenciar decisivamente a economia política e os
dados econômicos do atual cenário, mas essa perspectiva não é nem
plausível, nem possível, por uma série de razões que caberia tratar em
análise específica.
Vamos nos concentrar, portanto, no caso
do Brasil, e a principal pergunta que deve ser feita a este respeito
seria esta: estaria o Brasil bem inserido na região e no mundo, seus
estadistas – se ele os possui – têm controle sobre os vetores principais
de nossa inserção, eles têm, ao menos, consciência sobre os principais
desafios que enfrentamos e os grandes problemas que precisamos superar
para nos tornarmos não apenas uma nação mais próspera, mas também mais
participante dessa coisa chamada comunidade mundial? Resumido: como o
país trata, sofre ou “negocia” com o atual cenário internacional?
Vamos por partes, seguindo, para tanto, o
roteiro delineado nas perguntas acima enunciadas. A primeira tem a ver
com a nossa região, a mais suscetível de ser “influenciada” por esse
gigante que faz metade do continente, nas suas diversas dimensões:
demográfica, econômica, territorial, industrial, talvez científica e,
ainda talvez, tecnologicamente (seria preciso compulsar estatísticas
relativas a produção de artigos científicos, registro de patentes,
produção industrial, mas vamos supor, para fins deste exercício, que o
Brasil represente aproximadamente a metade do potencial sul-americano). A
pergunta é, portanto: o Brasil está bem inserido na região?
Quem observa os movimentos diplomáticos,
os fluxos de comércio de bens e de serviços, os investimentos diretos,
os empréstimos realizados e, sobretudo, as ações diplomáticas e as
iniciativas tomadas nos últimos cinco anos (este é o prazo médio das
conjunturas econômicas) tem a impressão que o Brasil tem, sim, algum
peso na região, e algum grau de influência sobre certos países, talvez
mais por inércia do passado do que propriamente por indução ou
capacidade de atuação deliberadamente direcionada. A despeito de contar
com um grande banco que realiza operações externas, de manter um fluxo
regular de intercâmbios econômicos dentro da região, é um fato que o
Brasil vem perdendo espaços no continente, não apenas em favor da China –
o grande ator emergente não só nesta região, como em quase todos os
cenários continentais – mas também como resultado de iniciativas
independentes adotadas por outros países, mesmo sendo parceiros
relevantes.
O grande vetor da construção de um espaço
econômico integrado na América do Sul, como tal pensado desde sua
concepção, deveria ser o Mercosul, um projeto de mercado comum – enfim,
fiquemos na união aduaneira, que deveria ser pelo menos completa e
acabada, mas leva o nome de “incompleta” há mais de vinte anos – que
tinha vocação a ser o núcleo organizador de uma rede regional de acordos
de liberalização comercial (nas suas diversas modalidades operacionais)
e podendo servir de base para o que foi chamado, uma vez, de Alcsa, a
Área de Livre Comércio Sul-Americana, em lugar de aderir ao projeto
americano da Alca (consoante nossa indisfarçável rejeição a qualquer
projeto que tivesse os EUA como centro, isso em qualquer governo, mesmo
um “neoliberal”). Ora, não é preciso ser nenhum gênio da análise
política e econômica, ou dispor de uma central de informações, para
constatar que o Mercosul é, hoje, uma sombra do que foi, um esquema
quase moribundo de trocas comerciais, no qual os grandes parceiros
parecem ter abdicado de sequer fazer menção aos objetivos sempre
inconclusos (e cada vez mais distantes) do artigo 1o. do Tratado de Assunção, cada vez que se reúnem para exercícios repetidos de retórica vazia.
O outro grande esquema favorecido em 2004
pelo Brasil, a Comunidade Sul-Americana de Nações, e que deveria ter
sede no Rio de Janeiro – mas depois convertida em Unasul, com sede em
Quito, por manobras do ex-caudilho da Venezuela – tornou-se praticamente
um instrumento de fácil manipulação pelos países ditos bolivarianos, e
não é capaz de sequer observar sua própria cláusula democrática ante
situações de clara, e grave, deterioração da democracia num dos maiores
membros da organização. Não se pode dizer, tampouco, que o Brasil possua
alavancas próprias que possam fazer com que essa entidade sirva, pelo
menos, para cumprir seu outro objetivo estatutário, que são projetos de
integração física no continente. Não se tem notícia de nenhum grande
empreendimento que tenha resultado do planejamento ou da ação da Unasul,
embora tenham sido criadas diversas novas entidades – inclusive uma
supostamente de defesa – que todas tem o objetivo implícito de retirar
os países da área de influência dos EUA.
Se essa diminuição de estatura e de
influência ocorre no plano regional, não parece claro que o panorama
seja mais positivo no plano mundial, não necessariamente universal, mas o
do mundo que pode receber impulsos relevantes por parte do Brasil. Esse
mundo é o do Ibas (com Índia e África do Sul), o do Brics, juntando
mais a Rússia e a gigantesca China (que sozinha faz mais da metade de
tudo o que representa o Brics), o de alguns países africanos de
expressão portuguesa – onde existe algum espaço para a cooperação
bilateral e plurilateral no âmbito da CPLP – e, talvez, o “mundo” do
G20, em princípio comprometido com a coordenação de políticas econômicas
em escala global, mas que aparece cada vez como mero esforço de
coreografia para discursos bem intencionados dos principais líderes
mundiais, sem grandes consequências práticas. Em todos esses cenáculos o
Brasil aparece com um discurso em favor da “democratização das relações
internacionais”, que é o slogan politicamente correto para sua
reivindicação de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das
Nações Unidas, mas que não parece dispor de apoios suficientes
atualmente (sequer dentro do próprio Brics) para se concretizar no
futuro previsível.
Durante muito tempo, desde o início da
década passada, o Brasil – ou, para ser mais exato, sua direção política
– insistiu numa tal de diplomacia Sul-Sul, como sendo o vetor
privilegiado de sua inserção internacional, e assim foi feito e agitado,
nos vários continentes daquilo que outrora se chamava de Terceiro
Mundo. Não se tem um balanço honesto, independente, de como essa
diplomacia com nítido determinismo geográfico conseguiu, realmente,
realçar a capacidade de influência do país no mundo, ou de como isso
reforçou nossa presença econômica nas diversas interfaces de
relacionamento no plano externo, em especial no campo econômico. O
Brasil continua a exibir a mesma modesta participação no comercio
internacional – pouco mais de 1% desde sempre – e se situa num patamar
inferior – menos de 50% da média mundial – em termos de coeficiente de
abertura externa, o que é um resultado inteiramente determinado por
nossa própria política econômica, em especial a comercial e a
industrial.
Para sermos absolutamente sinceros, e
precisos no diagnóstico, é importante reconhecer que todos os nossos
problemas – esses que impedem uma maior presença e participação, e
capacidade de influência do Brasil nos assuntos regionais e mundiais –
derivam de causas essencialmente internas, e de nenhuma maneira se devem
a um ambiente hostil no plano externo ou a uma hipotética “crise
internacional”. Enquanto os estadistas – se os há, como já questionado –
nacionais não forem capazes de equacionar, com realismo, a origem dos
nossos problemas, e eles são todos de natureza interna, o país vai ter
dificuldades em empreender as reformas necessárias para ter uma maior
capacidade de inserção internacional e de influenciar a agenda econômica
mundial.
A realidade atual, sem qualquer disfarce
ou desculpa, é esta aqui: o Brasil não possui nenhuma grande estratégia
de inserção global, pelo menos uma que se desdobre em ações concretas,
para além dos discursos meramente retóricos com que dirigentes e
ministros enganam a si mesmos, e tentam enganar os demais, nos cenáculos
abertos ao engenho e arte de nossa diplomacia. Se existem alguns
projetos parciais – que vão sendo desenhados pela proverbial excelência
de nossa diplomacia, se ela de fato existe – eles vão se adaptando aos
desafios de cada momento, como podem ser as questões do meio ambiente,
da segurança na internet, das negociações comerciais multilaterais e de
alguns poucos outros temas nos quais os profissionais da diplomacia
conseguem se elevar acima da introversão também proverbial de nossa
burocracia governamental.
Na verdade, os desafios brasileiros, como
já afirmado, são basicamente internos, e o mundo tem sido leniente,
bastante generoso para com o Brasil; o comércio mundial, a despeito da
“reprimarização” da economia brasileira, tem permitido saldos positivos
nos terrenos em que somos competitivos. Se não conseguimos fazer mais,
foi porque uma política econômica totalmente equivocada retirou
competitividade das empresas brasileiras vinculadas ao comércio
exterior. No plano das finanças globais, não se pode dizer que o mundo
esteja carente de capitais, e o Brasil não precisaria, de nenhuma forma,
aderir a bancos ad hoc – Banco del Sur, Banco dos Brics (NDB), ou o
novo banco asiático de investimento em infraestrutura – para poder
atrair todos os capitais de que necessita para impulsionar seus próprios
projetos de desenvolvimento.
Quando não existe confiança na qualidade
da política econômica, pode-se cair rapidamente numa fuga de capitais, o
que leva inevitavelmente a uma desvalorização cambial, um cenário já
bem conhecido pelo Brasil e outros países latino-americanos. O que se
observa na conjuntura recente, são ajustes erráticos tanto no plano das
contas internas – um ajuste fiscal feito de mais impostos e encargos –
quanto no plano das transações correntes, infelizmente na direção de
mais protecionismo. Os investimentos diretos, que já colocaram o Brasil
nos primeiros lugares do ranking nos últimos anos, podem se retrair
progressivamente, à medida em que se confirme a retração – a palavra
correta é recessão – da economia interna e a morosidade na região.
O mais relevante, porém, deriva de uma
inacreditável característica da psicologia nacional, traço ainda mais
reforçado depois de uma década e meia de dominação de uma vertente do
keynesianismo rústico que vigora ainda na América Latina, a que
transforma medidas anticíclicas típicas de conjunturas emergenciais em
políticas de desenvolvimento: os brasileiros, em geral, aderem a um
tipo de nacionalismo canhestro que os faz ser receptivos ao capital
estrangeiro, mas profundamente adversos ao capitalista estrangeiro, o
que parece ser esquizofrênico. É esse tipo de crença que sustenta
medidas de preferência nacional, leis de conteúdo local, exclusões
reiteradas a investimentos estrangeiros em determinados setores e
históricos controles de capitais e de transações cambiais. Não há
perspectiva, na atual conjuntura, que esse tipo de mentalidade possa
reverter no futuro próximo.
O Brasil tem condições de se projetar de
maneira mais afirmada nos cenários econômicos e diplomáticos mundiais?
Talvez, mas muito depende, de um lado, de reformas internas que possa
ser capazes de apoiar um processo dinâmico e sustentado de crescimento e
de participação nos intercâmbios globais e, do outro, do surgimento de
lideranças políticas que se alcem à condição de estadistas responsáveis,
uma hipótese aparentemente distante na presente conjuntura. Em
conclusão: a despeito de sua presença relativamente importante entre as
grandes economias do mundo, o Brasil exibe uma capacidade limitada de
influenciar o cenário internacional, seja pela via econômica, seja pela
via diplomática. Sem ser irrelevante, o Brasil carece de maiores
alavancas materiais ou políticas para construir uma força própria no
plano global.
Este é o segundo de uma série de quatro artigos. Os próximos serão os seguintes:
- Como e qual seria uma (ou a) agenda ideal para o Brasil?
- O que o Brasil deveria exatamente fazer para maximizar a “sua” agenda?
Leia o primeiro artigo da série:
Nenhum comentário:
Postar um comentário