Movimentos que convocaram as duas grandes manifestações de protesto contra o governo Dilma decidiram iniciar uma segunda fase de sua luta: o caminho agora é Brasília. Já demonstraram que estão em conexão com a larga maioria do povo brasileiro, conforme atesta pesquisa Datafolha. É chegada a hora de — atenção para este verbo — tensionar as instituições. Isso supõe um diálogo altivo com elas. O Movimento Brasil Livre (MBL) dará início, no próximo dia 17 a uma Marcha — sim, a pé — a Brasília. O objetivo é chegar à capital federal um mês depois e lá promover uma grande manifestação. O Vem pra Rua pretende apresentar, no próximo dia 15, uma pauta que reúne reivindicações de 50 organizações que se opõem ao atual estado de coisas.
Esse é o caminho natural. Falei há pouco com Kim Kataguiri, um dos coordenadores do MBL. Perguntei se a pauta principal da marcha é o impeachment de Dilma, como foi noticiado por aí. Ainda que o movimento veja razões para tanto — e elas existem —, a moçada não é ingênua. É evidente que ninguém marcha para Brasília para pedir “o impeachment ou nada”. Os coordenadores do MBL reconhecem que o impedimento é uma questão jurídica e política. Logo, depende das leis e das circunstâncias. Assim, chegou a hora de esses movimentos exigirem uma interlocução com as instituições, que não pertencem ao governo do PT, mas ao estado brasileiro.
O mesmo vale para o Vem pra Rua. Na entrevista que concedeu ao programa “Os Pingos nos Is”, da Jovem Pan, Rogério Chequer já havia falado da necessidade de articular as dezenas de grupos que hoje se organizam cobrando mudanças efetivas no país. Isso tem de virar uma pauta. Assim, esses movimentos se preparam para o diálogo dos fortes, não para a cooptação.
E, à diferença do que pretendem os reacionários de esquerda, inclusive os incrustados na grande imprensa, eles já avançaram bastante até aqui. Organizaram, em menos de um mês, duas grandes manifestações. E o fizeram contra a máquina oficial de propaganda e contra a incredulidade de analistas políticos e uma safra de colunistas intelectualmente safados como raramente se viu.
Sou antigo nesse troço de manifestação. Sei bem o que é participar de um movimento com a imprensa unanimemente a favor. Foi assim nas Diretas- Já. Era moleza! Parecia que o mundo inteiro estava com a gente. No impeachment de Collor, eu já era jornalista. Aí posso falar, vamos dizer, da adesão “por dentro”. Ainda que houvesse, e havia, o cuidado para não distorcer os fatos em prejuízo do então presidente, era evidente que a seleção da pauta se dava em favor do impeachment.
Agora, a coisa é bem diferente. Há, sim, jornalistas simpáticos aos que se manifestam. Mas, na média, a chamada grande imprensa vê movimentos como o Vem pra Rua, o Brasil Livre e o Revoltados Online com o pé atrás. Jornalistas têm certa compulsão por aquilo que julgam ser o “progressismo”. Se os que se manifestam não adotam a pauta que consideram universal — geralmente ligada à área de costumes —, tendem a entortar o nariz e a colar na turma a pecha de “reacionária”.
O que estou dizendo, com todas as letras, é que a imprensa, nas décadas de 80 e 90, respectivamente, turbinava os atos em favor das Diretas e do impeachment de Collor. Desta feita, faz o contrário. As manifestações de rua se impuseram apesar do jornalismo, não com a sua ajuda. A primeira tentação, basta olhar os arquivos, foi ver nas ruas a pressão da elite branca.
A moçada venceu o pelotão de fuzilamento moral e a barreira da desqualificação. O fel do colunismo de esquerda e o jogo pesado dos blogs sujos se mostraram irrelevantes. A patrulha do petismo nas redes sociais chamou atenção mais pelo seu lado patético do que por sua eficiência.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso recomendou que os partidos de oposição não se confundam com esses movimentos da sociedade civil. Ele está certo. Como estão certos esses movimentos ao criticar o que consideram frouxidão das oposições. É preciso não confundir os papéis. As democracias avançam — e não estou dizendo nenhuma novidade; há sólida teoria a respeito — quando indivíduos, organizados em grupos, levam adiante a bandeira da convicção; às forças institucionais, cabem os limites da responsabilidade. É a tensão desses dois vetores que produz avanços. Nem a convicção deve sair por aí a cortar cabeças, como um Robespierre mais ensandecido do que o original, nem a responsabilidade deve engessar as demandas vivas da sociedade, congelando o statu quo e imobilizando os atores sociais.
É saudável que grupos de pressão na sociedade tenham uma pauta mais ousada e avançada — dados seus pressupostos e seus valores — do que as oposições institucionais. É assim que tem de ser. A pauta do Vem pra Rua, do Movimento Brasil Livre ou do Revoltados Online não se resume ao impeachment de Dilma, que pode acontecer ou não. Caso se dê, é preciso ter um amanhã; caso não se dê, também. E, é claro!, se as oposições que temos não souberem ler a realidade, serão superadas pelos fatos.
Os reacionários de esquerda, em especial alguns colunistas do nariz marrom, estão expelindo sua baba hidrófoba contra esses movimentos. Acham um absurdo e uma violência que uma de suas palavras de ordem seja “Fora PT”, mas viam uma verdadeira poesia quando os petistas gritavam “Fora Sarney”, “Fora Collor” e “Fora FHC”.
Podem ladrar à vontade. A caravana vai passar.
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