O falecido autocrata
chileno Augusto Pinochet é responsável por proibir a oposição política,
por fazer "desaparecer" inimigos políticos (“desaparecendo” com alguns
deles até em Washington, DC), por ordenar milhares de mortes e
transformar estádios de futebol em sombrios centros polivalentes de
detenção em que prisioneiros políticos eram torturados e mortos.
O falecido economista e
jornalista Milton Friedman é responsável por insights inovadores em
economia e apoiava a defesa pela liberdade dos indivíduos de escolher
como viver suas vidas, livres da interferência do governo.
E ainda, tanto na vida
quanto na morte, Pinochet e Friedman tem sido aceitos por muitos como
dois lados “negros” de uma direita malvada em que o despotismo, a
tortura, e o livre mercado irrestrito estão intimamente ligados. O
colunista do The New York Times Anthony Lewis declarou em 1975 que "a
política econômica da junta chilena é baseada nas idéias de Milton
Friedman (...) e sua Escola de Chicago (...) se a teoria econômica
“pura” de Chicago pode ser realizada no Chile apenas sob o preço da
repressão, deveriam os seus autores sentir alguma responsabilidade?"
Tais atitudes assombraram Friedman até sua morte e além.
A reação de alguns dos
conservadores usuais até a morte de Pinochet não ajudou a desmarcarar
esta infeliz associação. Já que Pinochet era um autocrata pró-americano,
que honrou um plebliscito e renunciou, parte da direita americana
sempre teve um afeto doentio pelo general. A revista National Review
realizou um simpósio e um relatório oficial organizado pelo ex-editor
John O'Sullivan marcando o falecimento de Pinochet, sem muita indignação
pelos crimes do ditador. O'Sullivan disse, explicitamente, em uma troca
de acusações morais e bizarras que disputas partidárias costumam gerar,
que é claro, Pinochet deveria sofrer por sua vilania – mas somente se
Castro e Allende também o fossem.
Mas se os comunistas imorais
são hipócritas por apenas se opor à tirania quando se trata de
não-comunistas, como a direita é tão ágil em denunciar, no que se tornam
os direitistas quando fazem isso, quando só parecem opor-se à tirania
quando se trata de comunistas (ou muçulmanos)? Uh, bem ... Ei, olhem lá!
Castro! Não o deixe escapar!
Sim, é verdade, Friedman deu
conselhos a Pinochet. Mas não diziam respeito a como encontrar o melhor
lugar no oceano para despejar os corpos dos inimigos políticos
assassinados. Apesar das multidões enfurecidas de estudantes que
perseguiram Friedman em todos os lugares de Estocolmo (a sua cerimônia
de aceitação do Nobel em 1976 foi marcada pela presença dos estudantes) a
Chicago porque eles o consideravam uma espécie de mestre-de-marionetes
das sinistras políticas chilenas, a realidade das “ligações” de Friedman
com Pinochet é muito menos dramática.
Durante anos, a Universidade
de Chicago tinha um programa em parceria com a Universidade Católica do
Chile no qual concedia bolsas para os chilenos estudarem em Chicago. Os
conselheiros econômicos de Pinochet foram, assim, treinados pela
Universidade de Chicago, e conhecidos como “Chicago Boys”. Mas o único
contato direto de Friedman com o Chile foi quando ele foi convidado pelo
seu colega, também professor da Universidade de Chicago, Arnold
Harberger – que estava mais envolvido com o programa chileno – a dar uma
semana de palestras e participar de debates públicos no Chile em 1975.
Enquanto esteve lá, Friedman
teve um encontro com Pinochet, por menos de uma hora. Pinochet pediu a
Friedman que lhe escrevesse uma carta sobre as suas opiniões sobre como a
política econômica chilena deveria ser gerida, o que Friedman fez. Ele
defendeu cortes rápidos e severos nos gastos do governo e inflação, bem
como instituições mais abertas ao comércio internacional e políticas
para "estabelecer o alívio de qualquer dificuldade real e angústia entre
as classes mais pobres." Ele não escolheu essa como uma oportunidade de
censurar Pinochet por qualquer uma de suas políticas repressivas, e
muitos dos admiradores de Friedman, inclusive eu, teria se sentido
melhor se ele o tivesse feito.
Mas essa foi a extensão de
seu envolvimento com o regime chileno – e que se encaixa com um padrão
recorrente na carreira de Friedman de aconselhar todos os que o
quisessem ouvir. Não era um sinal de aprovação ao autoritarismo militar.
Friedman, ao se defender contra as acusações de cumplicidade com, ou
aprovação do governo de Pinochet, disse em uma carta em 1975 para o
jornal da Universidade de Chicago que ele "nunca ouviu queixas" sobre
ter dado ajuda e conforto para governos comunistas com quem tinha se
comunicado, e que "eu não aprovo nenhum desses regimes autoritários, nem
os regimes comunistas da Rússia e da Iugoslávia, nem os regimes
militares do Chile e do Brasil. Mas eu acredito que posso aprender
observando-os e que, na medida que a minha análise pessoal de sua
situação econômica permita-lhes melhorar o seu desempenho econômico, é
provável que isso promova e não retarde um movimento na direção de maior
liberalismo e da liberdade. "
Se você acredita que é um
dever moral boicotar criminosos no governo, sem restrições, então
Friedman fez a coisa errada em falar com Pinochet e escrever-lhe uma
carta. Mas se qualquer chileno teve uma vida melhor devido a qualquer
reforma de livre mercado que Friedman ou os conselheiros de Pinochet
treinados em Chicago ajudaram a tornar realidade, esse é um preço
pequeno a pagar por qualquer dano à reputação de Friedman.
Mas será que algum chileno
teve de fato uma vida melhor por causa das políticas de livre mercado? É
uma questão de fé entre a esquerda que o Chile teve de fato a sua
economia destruída pelo “Friedmanismo” galopante. Em um excelente artigo
(não disponível online) que apareceu em 1983 na edição de agosto da
revista Inquiry, durante a primeira recessão grave do Chile após algumas
reformas de mercado iniciais, chamado "Será que Milton Friedman
realmente arruinou o Chile?", Jonathan Marshall salientou que tanto
Friedman, que foi muito rápido em declarar a vitória definitiva da
reforma de livre mercado no Chile, e seus detratores, que achavam que
suas políticas haviam levado a nação à ruína, estava esquecendo alguns
detalhes importantes: "os próprios protegidos de Friedman abandonaram a
economia de viés laissez-faire em certas conjunturas, e foram estes
desvios, não um monetarismo doentio, que produziram o sofrimento do
Chile."
Marshall salientou a grande
insistência “não-Friedmaniana” do Chile no que se refere à fixação do
preço do peso chileno em dólares americanos no início dos anos 80,
acarretando em uma sobrevalorização do peso que devastou o mercado
exportador chileno. Ele também notou que a continuação do sistema
capitalista de camaradagem no Chile, no qual aqueles que contavam com
influências tinham crédito especial do governo, bem como resgates quando
os riscos do livre mercado os prejudicavam. Esses tipos de políticas,
bem como um colapso mundial nos preços do cobre, a principal exportação
do Chile, foram responsáveis pela recessão do Chile no início dos anos
80, não uma corrida maluca em prol do livre mercado.
De qualquer forma a
tendência de reformas de livre mercado – especialmente quando
incorporada com intervenções contínuas de vários tipos – não é garantia
de resultados imediatos. Muitos das críticas (denúncias) populares da
idéia de que as reformas de mercado ajudaram o Chile residem em procurar
por pontos fixos do passado, como se eles resolvessem a questão sobre
qualquer benefício no longo prazo. Se Friedman foi rápido demais em
rotular a economia do Chile como um milagre instantâneo, como fez em uma
coluna na revista Newsweek em 1982 (salientando que é um "mito" que
"somente um regime autoritário pode implementar com sucesso uma política
de livre mercado", já que um livre mercado é "o contrário" do
autoritarismo militar), seus adversários foram bem mais rápidos em
condená-lo como um desastre.
Alguns delas tiveram pontos
fortes, particularmente sobre as taxas de crescimento nos anos 70 e 80
que eram, possivelmente, resultados tanto da recuperação do terreno
perdido devido às recessões como produto do novo e sustentável
crescimento de longo prazo. Mas as estatísticas da última década e meia
mostraram um Chile que, no longo prazo tem superado, do ponto de vista
econômico, a maioria da América Latina – inflação mais baixa, maior
crescimento real per capita do PIB, bem menor incidência de pobreza
extrema e menos dependência do FMI.
Nenhum sucesso econômico do
Chile serve de desculpa ou minimiza os crimes de Pinochet. Mesmo os
defensores libertários ferrenhos de Friedman podem questionar a
conveniência de sua associação, por mais breve ou tênue, com o ditador.
Como o economista austríaco Peter Boettke me disse uma vez, muitos
economistas de sua geração – muitos dos quais são libertários na sua
essência – têm a noção de trabalhar em até mesmo algo inócuo como
finanças públicas de mau gosto – como uma "ajuda para a máfia". Friedman
não sentia tal repugnância visceral pelo governo ou por quem governa.
Ele era realista sobre a política, e tentou lidar com o mundo como ele
era – lubrificando com seu radicalismo político as engrenagens do poder
do jeito que era possível.
Friedman estava pronto e
disposto a dizer às pessoas responsáveis por todas as políticas erradas
do mundo o que elas precisavam fazer para acertar as coisas, o que
significava que ele tinha que dialogar com eles, fazendo ataques abertos
a seus crimes imprudentes. Ele tentou mover o mundo em uma direção mais
livre do ponto em que a realidade se apresentou.
"Não tenho nada de bom a
dizer sobre o regime político que Pinochet impôs", disse Friedman em
1991. "Foi um terrível regime político. O verdadeiro milagre do Chile
não é o quão bem ele foi economicamente, o verdadeiro milagre do Chile é
que uma junta militar estava disposta a ir contra seus princípios e
apoiar um regime de livre mercado projetado por seguidores dos
princípios de um mercado livre... No Chile, o impulso para a liberdade
política que foi gerado pela liberdade econômica e o conseqüente sucesso
econômico ao final resultou em um referendo que introduziu a democracia
política."
Poderia ter sido mais
gratificante moralmente não ter nenhuma relação com Pinochet,
simplesmente condená-lo de longe. Mas optando por deixar seus conselhos
econômico acima de revolução política, Friedman quase certamente ajudou
o Chile a longo prazo – mas é importante lembrar que os "Chicago boys"
foram mais responsáveis do que o próprio Friedman, e que eles não
estavam seguindo suas prescrições implacavelmente ou sob a sua instrução
direta.
Indubitavelmente, a decisão
de Friedman de interagir com os funcionários de governos repressivos
cria tensões desconfortáveis aos seus admiradores libertários; eu
poderia, e na maioria das vezes, preferiria que ele não o tivesse feito.
Mas dado o que provavelmente significou para a riqueza econômica e a
liberdade no longo prazo para o povo do Chile, esta é uma reação
egoísta. As políticas econômicas de Pinochet não amenizaram seus crimes,
apesar daquilo que seus admiradores de direita dizem. Mas Friedman,
como conselheiro econômico para todos os que o ouviram, não cometeu os
crimes de ninguém, nem admirou nenhum criminoso.
* Publicado originalmente em 22/11/2012.
Brian Doherty é editor sênior da revista Reason e autor de diversos
livros, entre eles, Radicals for Capitalism: A Freewheeling History of
the Modern American Libertarian Movement.
Nenhum comentário:
Postar um comentário