Transcrevo uma análise dos problemas atuais do Brasil pelo senador José Serra.
Não endosso todos os seus argumentos, mas acredito que as questões que ele coloca são reais, e merecem debate. Apenas por isto eu as coloco aqui.
Na miséria intelectual que é o Brasil hoje -- ou seja, com governantes incapazes de se pronunciarem de modo claro sobre a situação presente, senão mentindo -- o artigo oferece, ao menos, um diagnóstico claro dos problemas atuais.
Paulo Roberto de Almeida
ELES
PASSARÃO, E A NOSSA DEMOCRACIA PASSARINHO
José Serra
O Estado de S.Paulo,
9/04/2015
Completam-se, por estes
dias, 30 anos de regime democrático no Brasil. Não há dúvida de que o país avançou
bastante no período. Temos muito mais liberdade e justiça. O progresso social
foi acentuado, como demonstram os indicadores de educação, saúde e rendimentos
dos mais pobres. A superinflação, deflagrada pelo choque externo do começo dos
anos 1980, com seus três ou quatro dígitos anuais, foi finalmente vencida a
partir dos governos Itamar e Fernando Henrique. Isso se deu com ampliação das
conquistas democráticas, ao contrário do que se viu entre 1964 e 1968. E que se
destaque o papel fundamental da agricultura brasileira, que se tornou poderosa
e altamente competitiva, em escala mundial. Temos, pois, razões para estar
satisfeitos pelo caminho até aqui seguido. E nosso papel é cercar as margens de
erro rumo ao futuro e evitar armadilhas.
Há, desde logo, um pesado
déficit que coincide com a era democrática: o crescimento medíocre do conjunto
da economia. Nos 30 anos que antecederam 1980, crescemos a mais de 7% ao ano;
de meados da década de 80 até o ano passado, essa taxa recuou, na média, a 3%.
Mesmo deflacionando os números pelo crescimento da população, declinante no
cotejo desses dois períodos, a degradação da performance econômica brasileira é
evidente.
Tal degradação deveu-se à
desindustrialização prematura que atingiu o Brasil, a ponto de a participação
da indústria manufatureira no PIB voltar ao nível do imediato pós-guerra: em
torno de 12%. Digo "prematura" porque não se trata de um fenômeno
parecido com o que se viu nos países desenvolvidos, com renda per capita
equivalente a quatro vezes a nossa. A dinâmica das economias emergentes bem
sucedidas, note-se, é outra: as que mais têm crescido nas últimas décadas devem
seu desempenho precisamente ao dinamismo do setor industrial.
Sem reindustrializar o
Brasil, não vamos obter vaga no segundo turno do campeonato das nações. Vivemos
num país continental, com 200 milhões de habitantes e renda por habitante ainda
na casa de US$ 12 mil/ano (paridade do poder de compra). Por melhor que seja a
nossa condição de exportadores de produtos agrominerais, esse vetor nunca será
capaz de puxar a produtividade do conjunto da economia, gerar os milhões de
empregos de que necessitamos e turbinar as receitas tributárias para cobrir
carências sociais e regionais. Não é uma questão de gosto, mas de fato. Aliás,
a propósito da utopia da economia primário-exportadora como o principal fator
do desenvolvimento brasileiro, vale ler o interessante artigo de Ilan Goldfajn
publicado nesta página na última terça: a tendência de longo prazo dos preços
internacionais de alimentos é de lento e persistente declínio em termos reais.
Em parte, a
desindustrialização prematura se deveu a uma combinação de quatro fatores, com
pesos diferentes ao longo do tempo: 1) o mau entendimento das mudanças no mundo
na direção de maior abertura comercial e ampla e irresistível liberdade para
movimentos de capitais; 2) a superinflação e suas consequências; 3) as
ideologias, à esquerda e à direita, que menosprezam políticas coerentes de
desenvolvimento; 4) o despreparo e a pura inépcia do governo.
Um dos problemas mais
graves que decorrem de políticas públicas deficientes se revela no
custo-Brasil, que expõe nossa baixa competitividade em relação à média dos
parceiros comerciais. Os produtos manufaturados brasileiros são 25% mais caros
do que poderiam ser não em razão da ineficiência empresarial — nas condições
dadas, há eficiência — mas por causa das carências de infraestrutura, das
despesas financeiras e de uma tributação aloprada. Para arremate dos males,
subsistiu durante boa parte dessas três décadas a sobrevalorização cambial.
E há um custo que tem sido
subestimado pelos analistas que é a conversão reacionária do PT. O que quer
dizer? Explico: associado ao declínio econômico e aos fatores que o provocaram,
assistimos, com a ascensão do partido ao poder, ao fortalecimento e ao infeliz
“aggiornamento” do patrimonialismo, que tanto infelicitou a história
brasileira. Ele se expressa de dois modos principais: 1) com a formação de uma
espécie de burguesia do capital estatal; 2) com a submissão da máquina do
Estado a instrumentos que servem à manipulação eleitoral e aos desvios de
recursos públicos para partidos e indivíduos. Vejam o calvário da Petrobras.
A crise de
representatividade da democracia brasileira, cujo primeiro sinal foram as
manifestações populares de meados de 2013, chegou ao seu ponto máximo neste
semestre. Tudo de ruim veio junto, começando pela percepção generalizada do
estelionato eleitoral.
Reeleita, a presidente
Dilma não conta com um fator que costuma beneficiar um novo governante: o
crédito de confiança. Como dispor dele, depois de quatro anos de tropeços que
só agravaram a herança recebida do governo Lula-Dilma? Herança que, diga-se, já
não era leve no início de 2011: real supervalorizado, déficit externo
crescente, rigidez fiscal, investimentos industriais em declínio e
subinvestimento na infraestrutura. E isso tudo se dava apesar da notável
bonança externa, derivada do boom de preços de nossas commodities.
Paradoxalmente, esses preços elevados serviram para desequilibrar ainda mais a
economia brasileira.
O panorama hoje é
especialmente perverso: queda da produção; inflação renitente, com viés para
cima; déficit público em ascensão, caminhando para 8% do PIB; déficit externo
idem, rumo aos 4,5% do PIB; juros siderais e desemprego como drama anunciado. A
cereja amarga desse bolo maligno fica por conta do monitoramento subjacente da
política econômica feito pelas agências internacionais de risco. Os petistas já
devem andar com saudades do FMI...
A má notícia é que
atravessaremos, sim, dias difíceis. A boa notícia é que os críticos relevantes
dessa governança capenga entendem que não há saída fora das regras da
democracia, esta respeitável senhora de 30 anos. Eventuais tentações
autoritárias se revelam, isto sim, é no discurso dos poderosos de turno. Mas,
como diria o poeta Mário Quintana, também eles “passarão”, e o regime
democrático “passarinho”. E ele canta bons amanhãs.
SENADOR DA REPÚBLICA,
EX-PREFEITO E EX-GOVERNADOR DE SÃO PAULO
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