Recebo hoje (14/08/2017), este trabalho de TREZE anos atrás, de Regina Caldas, mas que traduz maravilhosamente bem ensinamentos sobre a arte da política e sobre o "perfeito" eleitor de quase 800 anos atrás, ou seja, em plena Idade Média, de um florentino, Brunetto Latini, do qual ainda não havia ainda falar (ou seja, nunca li a respeito, e agradeço muitíssimo por essa transmissão de novo conhecimento).
Ao enviar-me o texto abaixo, a autora escreveu o que segue numa mensagem:
"Embora haja
descrença sobre a conduta de nossos políticos, não podemos perder a esperança
por dias melhores. Vale lembrar, que os políticos são escolhidos e eleitos por
nós. Façamos a nossa parte através de uma educação política que nos leve
a melhores escolhas.
Entretanto,
vale lembrar, que o nível desejavel para a seleção de políticos capazes e
íntegros tem baixado na maioria dos países." (RC, 14/08/2017)
Antes de postar o texto, fiz, de minha parte uma busca rápida sobre o autor em questão, e confirmei a excelente impressão que me causou o pensador florentino a partir do texto abaixo. Recomendo a leitura de uma tese sobre o seu Tesouro.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 14/08/2017
PERCEPÇÃO POLÍTICA
O exemplo de Brunetto Latini
Regina Caldas, 2004
A
vida de Brunetto Latini ( 1220-1294), coincide com um dos períodos mais
agitados da história política florentina . Tendo recebido formação para se
tornar notário, Brunetto foi treinado para escrever em latim nas mais variadas
formas de contratos e na redação de atos e documentos governamentais. Como
praticante de notário, atestou mortes, atos de ultima vontade, acordos de
negócios particulares e do estado, entre Florença e outras cidades.
Brunetto Latini foi uma proeminente figura da vida pública florentina. Ocupou
vários cargos de confiança como chefe de chancelaria, conselheiro e por duas
vezes, embaixador. Foi também escritor, e seus livros são relatórios baseados
em experiências adquiridas na vida pública. Foi na França, durante um curto
período de exílio, como Dante e Machiavelli, que escreveu seus melhores livros: Li Livres dou Tresor (no estilo das enciclopédias medievais), o inacabado Il
Tesoretto, um trabalho alegórico e didático em versos, e Rettorica, um
comentário do livro de Cícero, De inventione. Seus escritos revelam a sua
maior paixão na vida pública: a palavra e seu efeito na vida comunitária.
Aos olhos de Brunetto, a vida urbana significava a verdadeira forma de
sociedade civilizada. Exagerando uma visão de Cícero, ele considerava a
retórica, a suprema ciência de governar uma cidade. A arte de falar sem a qual
a cidade não existia, pois faltariam justiça e solidariedade. Para ele a
civilização originava-se na palavra, unindo os homens e levando-os a viverem
juntos em algum lugar e debaixo de leis.
Li Livres dou Tresor, foi a primeira enciclopédia a ser escrita para ensinar as
leis, e dirigida aos burgueses. Entretanto, também trata de teologia,
ciências naturais e história, mas os temas centrais são a ética, retórica e
governo urbano. Seus mentores intelectuais foram Aristóteles e Cícero. O
primeiro ajudou o autor a perceber as conexões entre ética, vida comunitária e
política, enquanto com o segundo aprendeu a importância da retórica. Mas
ele foi além de endossar seus inspiradores revelando uma extrema
preocupação com os problemas políticos e morais dos espaços urbanos. Discutiu a
dinâmica dos negócios e do dinheiro, a civilidade, a usura, o serviço
comunitário, os departamentos de estado, a autoridade política e a justiça
civil. A parte mais importante do Tresor aparece no livro III. Aqui ele trata
da retórica e da “boa fala”, e se envolve com as cidades italianas e seus
regimes comunais durante o período central do século XIII , discutindo as
funções do “podestà”. Seus escritos nos oferecem uma percepção do homem como
indivíduo e também uma visão acurada dos problemas de seu tempo. Ele aborda a
natureza e origem dos governos, a ligação ideal entre o “podestà” e a
comunidade, incluindo eleições e qualidades requeridas num bom governante.
Trata também de todas as formalidades necessárias à chegada de um novo
governante, a relação com o seu staff, reuniões com os conselhos comunitários,
indicação de embaixadores, administração da justiça, suas responsabilidades
sobre os direitos e propriedades dos cidadãos, preparo de seu sucessor, e tudo
o que deve executar antes de deixar o governo. O livro é dirigido ao “podestà”
e aos cidadãos. É um tratado prático e preciso, que além de ensinar as
solenidades do cargo, também fala de justiça, imparcialidade, vontade divina e
os benefícios da paz. ´
Uma preocupação de Brunetto a respeito das eleições para o cargo de governar
uma cidade, referia-se a seleção dos candidatos, quase sempre de origem nobre.
Ele recomendava aos cidadãos que, ao fazerem suas escolhas considerassem acima
de tudo a nobreza do coração, uma vida de costumes honrados, seu trabalho
e seu lar. Para tanto ele concluía: “Muitas pessoas não consideram os hábitos
do candidato, mas sim o poder que ele comanda para a sua linhagem ou para os
seus desejos. Eles estão, entretanto enganados, pois o ódio e a guerra têm se
multiplicado entre nós, sendo isto o sinônimo de uma divisão entre os
burgueses. E os cidadãos que amam uma facção odeiam as outras. Tiranos como
Ezzelino da Romano, Torriani e outros, desfilavam aos olhos de Brunetto como
resultado da tendência popular de eleger candidatos na base do seu poder, de
suas ambições ou sua popularidade. Para ele, o poder deveria ser partilhado
entre a experiência, os bem sucedidos e as eminências. Nas sociedades
fortemente marcadas pelo status, deferências e intelectualidade, a
tendência é que as altas classes tornem-se elitistas e cuidem apenas de
proteger seus próprios interesses.
Outra preocupação do notário, relativa ao governo, era de que os governantes
deveriam manter afastadas suas relações de amizade enquanto ocupassem cargos de
poder, já que isto diminuiria a dignidade do cargo, levantava suspeitas e
estimulava a discórdia civil. A implicação era de que o “podestà” poderia ser
tentado a ajudar os amigos violando as leis. Um podestà jamais deveria vender
justiça ou receber presentes, afirmava ele.. E concluia que sendo a comunidade
sempre dividida pelos interesses dos vários grupos sociais, a melhor maneira de
se impor barreiras à corrupção e às dissidias seria obedecer a lei e temer a
Deus.
O
código de Brunetto, a ser seguido pelo bom governante determinava:
Não aceite um segundo termo;
Não faça amigos enquanto estiver governando;
Não mantenha contactos pessoais;
Não adquira débitos com pessoa alguma;
Não se permita ser louvado pelo conselho;
Esteja acima das partes e facções;
Sempre consulte os cidadãos mais capazes;
Favoreça a opinião e o conselho da maioria;
Obedeça estritamente a lei em todas as
circunstancias;
Não aumente as taxas e impostos deixando a
população endividada, salvo por manifesto benefício à cidade e pela aprovação
do conselho.
Como fica muito claro na concepção do notário, justiça não soluciona todos os
problemas existentes dentro de uma comunidade, pois as pessoas diferem umas das
outras e assim sempre será. O homem sempre tem uma concepção arbitrária ao
reclamar para si os bens terrenos. Mas, estando a justiça no meio deles
torna-se possível a convivência social.
Em vários aspectos de seus escritos, Brunetto manifestou pensamentos e atitudes
que retrataram a percepção local própria do século XIII. Porém, quando fala de
política e sociedade, seus pensamentos são extraídos de um forte apego à cidade
tendo-a como um fim em si mesma. E, numa época em que todo ato de governo era
considerado fruto da vontade divina, sua visão política vai além de seu tempo.
A noção medieval de que todo poder político provinha de Deus não era uma
abstração. Continuamente, nas falas públicas o homem era conduzido a aceitar
plenamente a vontade divina em seu destino. A doutrina era enunciada sob o
juramento de que reis e governantes reconheciam a origem divina de sua
autoridade. As conseqüências eram de ordem prática. Se toda a atividade
política origina-se de uma concepção religiosa e sujeita à uma ordem de
valores eternos, quem governava estava imbuído de um poder superior
incontestável para criar as leis, julgar, administrar e decidir os
destinos da cidade e de seus cidadãos, conduzi-los à guerra ou à paz. E as
conseqüências para os cidadãos eram claras, os heréticos eram condenados à
morte. Foi Brunetto Latini que, durante o tempo em que esteve exilado na
França, primeiro manifestou sua compreensão da necessidade de separar a gestão
do Estado de suas origens de cunho espiritual tornando-o secular. Mas, para que
a semente de seu pensamento se espalhasse e provocasse mudanças para governos
seculares levou tempo.
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Addendum bibliográfico, enviado pela autora:
Em "Power and Imagination" referindo-se ao capítulo em que o autor menciona Brunetto Latini, ele cita o livro de N. Rubinstein "Marsilius of Padua and Italian Political Thought in His Time" :
reeditado em 1965.