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domingo, 21 de abril de 2024

O Brasil como um imenso Portugal? (2023) - Paulo Roberto de Almeida

Este artigo foi publicado em abril de 2023, na revista Crusoé, por ocasião da visita de Lula a Portugal, quando também entregou o prêmio Camões ao compositor e escritor Chico Buarque.

O Brasil como um imenso Portugal?

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

Artigo para a revista Crusoé, a propósito da visita do presidente Lula a Portugal.

revista Crusoé (27/04/2023; link: https://crusoe.uol.com.br/secao/colunistas/o-brasil-como-um-imenso-portugal/). Relação de Publicados n. 1506

 

Muito tempo antes que Chico Buarque e Ruy Guerra, nos anos 1970 aventavam essa hipótese numa das mais bonitas canções (Fado Tropical) da época da ditadura brasileira, e quando Portugal se preparava para se libertar da sua longeva ditadura civil, dois “pais fundadores” da nação brasileira já tinham sugerido tal conformação no limiar da independência: em lugar de uma separação completa entre a metrópole lusitana e o então Reino Unido do Brasil, que as duas partes do reino configurassem um só Estado, com sede no Rio de Janeiro, no comando de um grande império marítimo transnacional. Com efeito, tanto Hipólito da Costa – o primeiro jornalista brasileiro independente –, quanto José Bonifácio – o primeiro membro brasileiro de um gabinete português sob a regência do príncipe D. Pedro –, concebiam, ainda poucos meses antes da separação, a continuidade de um só Estado monárquico constitucional, com a capital que abrigou a família real portuguesa quando esta teve de se resguardar da invasão napoleônica.

Em 1820-21, quando da revolução do Porto e das Cortes de Lisboa, o rei D. João VI teve de retornar relutantemente a Portugal; mas ele também mantinha essa ideia de que as duas partes do reino – e o Brasil já era bem mais rico do que Portugal – deveriam se manter juntas, para a maior glória da dinastia dos Braganças, em face de todas as outras monarquias europeias. Teria sido o primeiro reino “europeu” estabelecido numa possessão tropical, uma novidade absoluta na história europeia e mundial. Mas, como se sabe, as Cortes forçaram, a separação, ao tentar fazer o Brasil retornar ao seu antigo estatuto colonial; daí o rompimento, mas contra o qual lutaram, enquanto puderam, tanto Bonifácio quanto Hipólito. 

A separação não era inevitável, inclusive porque D. Pedro, ao assumir em outubro de 1822 como Imperador do Brasil, era o legítimo sucessor do pai no Reino de Portugal, e a ruptura, de fato e de direito, só se deu, para todos os efeitos jurídicos e diplomáticos, em 1825, com a intermediação da potência da época, a Grã-Bretanha. Mas cabe considerar também que suas elites econômicas, os grandes proprietários de terras, tinham todo interesse na separação, para poder controlar de forma soberana e completamente as atividades mais lucrativas da época: o tráfico de escravos, a exportação dos produtos locais e a importação dos bens necessários à manutenção e desenvolvimento da nova nação. Nesse intervalo, a jovem república do hemisfério norte, os Estados Unidos, já tinha reconhecido a independência, assim como o fizeram, mas de forma bizarra, os independentistas de Buenos Aires, que logo entraram em desavenças e em guerra contra o Brasil, por causa da Cisplatina, finalmente reconhecida como República Oriental do Uruguai, sob pressão inglesa, em 1828. 

Durante quase dois séculos Portugal e Brasil se “desenvolveram” em separado, não fosse pelo aporte contínuo de emigrantes lusitanos para sua grande ex-colônia. Depois das comemorações do quarto centenário do descobrimento, em 1900, e as do primeiro centenário da independência, em 1922, os dois países começaram novamente a se “unir” por meio de tratados sobre migração e cidadania, mas também pela via de regimes políticos que, justamente, se aproximaram pelo lado autoritário. O Estado Novo português foi “entregue” a Salazar no início dos anos 1930, seguido pelo Brasil vários anos à frente, ambos fortemente anticomunistas, mas com diferentes visões da economia e da política. 

A antiga metrópole continuou parada no tempo, num sistema ultrarreacionário, mas se manteve “neutra” durante o grande turbilhão da Segunda Guerra. O Brasil deu início a um processo de industrialização nacionalista que se estendeu pelo meio século seguinte, inclusive com ajuda americana, que armou e vestiu os soldados brasileiros que foram lutar, integrados ao V Exército dos EUA, nos campos de batalha da Itália. Mas, por razões talvez sentimentais, data dessa época o apoio diplomático do Brasil à manutenção do império colonial remanescente de Portugal, o que se prolongou até os anos 1960, quando a maior parte das colônias europeias da África e da Ásia se alçou à independência. 

O Brasil só mudou de posição praticamente ao final do período salazarista, que ganhou uma sobrevida em 1968, ainda com o mesmo espírito anticomunista: passamos a reconhecer os novos Estados independentes imediatamente após a “revolução dos cravos” de 1974, ao tempo em que Chico Buarque e Ruy Guerra compunham o fado prometedor. Com a liberdade sendo saudada à beira do Tejo, eles aspiravam a que o Brasil se tornasse um “imenso Portugal”, com democracia e políticas progressistas dos dois lados do Atlântico. Refugiados da ditadura brasileira, em vários países da América Latina e da Europa e afluíram rapidamente a Portugal, dando assim início a uma aproximação verdadeiramente sentimental. Portugueses da resistência e brasileiros exilados cantaram no Tejo o fado proibido no Brasil.

Uma década depois, o Brasil adentrou num longo ciclo de baixo crescimento e de aumento da pobreza que inverteu a tendência secular de atração de imigrantes: foi a vez do Brasil passar a “exportar” os seus filhos, um volume significativo para os Estados Unidos, muitos descendentes de japoneses para a terra de seus avós e muitos mais para diversos países europeus, com destaque, justamente, para Portugal, por óbvias razões linguísticas. Depois da Grécia, Portugal e Espanha, livres de ditaduras, ingressaram na então Comunidade Econômica Europeia; teve início um processo de modernização e de desenvolvimento que converteu o pequeno país ibérico em foco de atração de investimentos estrangeiros e de mão de obra de qualidade de diversos outros membros comunitários, e do próprio Brasil.

Com sua economia reconstruída e internacionalizada, foram empresas portuguesas – bancos, comunicações, serviços – que passaram a investir no Brasil das privatizações dos anos 1990, nos governos FHC. A imigração brasileira se intensificou, assim como a instalação de empresas brasileiras em terras portuguesas. novamente abriu-se a hipótese de um “imenso Portugal”, mas no sentido inverso, a partir de certa “colonização” brasileira – novelas, dentistas, restaurantes –, um processo não isento de dificuldades, dadas as regras comunitárias. Portugal não escapou da crise dos anos 2008-2009, e teve de passar por um severo processo de ajuste, não muito diferente daquele que o Brasil enfrentou, nos anos 1990, para se livrar de problemas que se arrastavam desde a “década perdida” dos anos 1980. Ainda assim, seja com governos de direita, ou de centro direita, seja com gabinetes socialistas (moderados, e em coalizão), Portugal conseguiu superar, a duros custos, a restauração das finanças públicas, com redução de vários benefícios (salários e aposentadorias), além de novas privatizações e algum desemprego. 

No Brasil, os anos tucanos e petistas foram os melhores para as relações bilaterais e também do lado comunitário: em 2010 foi reconhecida a parceria estratégica entre a UE e o Brasil, embora o acordo de associação entre o bloco europeu e o Mercosul tenha patinado por duas décadas até ser finalizado sob o governo Temer para ser finalmente assinado nos primeiros seis meses do governo Bolsonaro; mas foi aí que ele empacou de vez, frente à antipolítica ambiental e os retrocessos registrados em todas as áreas sociais e humanitárias. Até um simples Prêmio Camões, justamente concedido ao compositor e escritor Chico Buarque pelo conjunto de sua obra, foi paralisado na sua entrega binacional, por antipatia do presidente anticultural: a entrega e celebração foram marcadas para a visita do presidente Lula, por ocasião do 49º aniversário da Revolução dos Cravos. 

Com governos social-democratas dos dois lados do Atlântico e grandes promessas de cooperação também no âmbito da CPLP, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (a partir de agora sob a presidência de São Tomé), o Brasil estaria preparado, mais do que nunca, a se converter em um “imenso Portugal”, se conseguir, realmente, fazer entrar em vigor o acordo inter-regional Mercosul-UE e completar seu acesso à OCDE, organização a que pertence Portugal desde a sua primeira encarnação, a OECE do Plano Marshall. Um desajuste entre os dois países se manifesta na questão da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, pois que Portugal apoia resolutamente sanções e resoluções condenando o agressor, como membro disciplinado que é da UE e da Otan (esta também desde a origem). 

Em qualquer hipótese, as perspectivas para a ampliação das relações, tanto bilaterais, quanto comunitárias, se mostram bastante promissoras, em que pese certo retorno do Brasil a uma possível reprodução da “década perdida” dos anos 1980. No governo anterior, o cenário brasileiro era tão desolador que um imaginativo escritor, Fernando Dourado Filho, mandou uma espécie de carta ao presidente Marcelo Rebelo, sugerindo-lhe a devolução do Brasil a Portugal. O livrinho, bastante curto, se chama, mais precisamente, “O boiadeiro que tentou devolver o Brasil a Portugal” (2022). Não sabemos, exatamente, o que lhe respondeu o atilado presidente português, mas se aceitasse a proposta teríamos, finalmente, a realização do projeto defendido 200 anos atrás por Hipólito da Costa e por José Bonifácio: o Brasil como um “imenso Portugal”. Não é de todo uma má ideia...

 

Paulo Roberto de Almeida

[Brasília, 4342: 24 março 2023, 4 p.; revisto: 22/04/2023]

 

 

 

FADO TROPICAL

Chico Buarque e Ruy Guerra 

 

Oh, musa do meu fado, 

Oh, minha mãe gentil, 

Te deixo consternado 

No primeiro abril, 

 

Mas não sê tão ingrata! 

Não esquece quem te amou 

E em tua densa mata 

Se perdeu e se encontrou. 

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal: 

Ainda vai tornar-se um imenso Portugal! 

 

"Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo (além da sífilis, é claro). Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, o meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..." 

 

Com avencas na caatinga, 

Alecrins no canavial, 

Licores na moringa: 

Um vinho tropical. 

 

E a linda mulata 

Com rendas do Alentejo 

De quem numa bravata 

Arrebata um beijo... 

 

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal: 

Ainda vai tornar-se um imenso Portugal! 

 

"Meu coração tem um sereno jeito 

E as minhas mãos o golpe duro e presto, 

De tal maneira que, depois de feito, 

Desencontrado, eu mesmo me contesto. 

Se trago as mãos distantes do meu peito 

É que há distância entre intenção e gesto 

E se o meu coração nas mãos estreito, 

Me assombra a súbita impressão de incesto. 

Quando me encontro no calor da luta 

Ostento a aguda empunhadora à proa, 

Mas meu peito se desabotoa. 

E se a sentença se anuncia bruta 

Mais que depressa a mão cega executa, 

Pois que senão o coração perdoa". 

 

Guitarras e sanfonas, 

Jasmins, coqueiros, fontes, 

Sardinhas, mandioca 

Num suave azulejo 

 

E o rio Amazonas 

Que corre Trás-os-Montes 

E numa pororoca 

Deságua no Tejo... 

 

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal: 

Ainda vai tornar-se um império colonial! 

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal: 

Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!

 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Onde andará? (Canta o poeta compositor) - Paulo Roberto de Almeida

 “Onde andará?” aquele genial frasista do “comunavirus”, segundo uma estrofe de Chico Buarque, o compositor preferido dos bolsonaristas-raiz (alguns desenraizados precocemente): 

Paulo Roberto de Almeida

Numa de suas últimas postagens, antes das invasões e depredações do dia 8/01, o patético ex-chanceler acidental (o primeiro do desgoverno Bozo) dizia preferir o caos à “ordem comunista” do governo eleito e empossado. 

Deve estar completamente satisfeito agora, com o caos realizado pelos seus antigos companheiros de jornada e de militância bolsonarista extremada.

EA, o símbolo diplomático da Era dos Absurdos, acompanha os acontecimentos de longe, no conforto invernal de Hartford, CT-USA, doravante como apêndice de sua “conja”, ainda ativa no Serviço Exterior que ele se esforçou para desmantelar, enquanto conspurcou a Casa de Rio Branco.

Onde andarão seus pensamentos vagos, num momento em que as trapalhadas do bolsonarismo-raiz acabam de reforçar, paradoxal e extraordinariamente, a “ditadura da esquerdalha comunista”?

EA estaria preparando um novo romance, distópico, como os dois anteriores, ilisíveis, segundo um jornalista que os resenhou?

Já telefonou para uma simples saudação cordial ao seu ex-chefe, temporariamente “refugiado” num condomínio em Orlando?

Reativou seus contatos com Steve Bannon, o estrategista-chefe do trumpismo ascendente?

E aquela sua brilhante ideia de estabelecer uma nova Santa Aliança entre as três grandes nações cristãs do planeta, o Brasil católico, a América protestante e a Rússia ortodoxa? Não valeria um novo ensaio de história das ideias (malucas?), a exemplo daquele que o fez ascender no cenáculo intelequitual do olavismo triunfante, que tratava Trump como o “salvador do Ocidente”?

Quando termina sua LIP (licença para trato de assuntos particulares) no Serviço Exterior brasileiro? 

O Gabinete do atual chanceler manteve a sua foto na galeria dos ministros das relações exteriores, agora bicentenário, começando por José Bonifácio?

Onde andará?, cantaria Chico Buarque?


Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 12/01/2023


sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Até o fim, Chico Buarque

Até o fim

Quando nasci veio um anjo safado
O chato do querubim
E decretou que eu estava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim

Inda garoto deixei de ir à escola
Cassaram meu boletim
Não sou ladrão, eu não sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
Mas vou até o fiM

Eu bem que tenho ensaiado um progresso
Virei cantor de festim
Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso
Em Quixeramobim
Não sei como o maracatu começou
Mas vou até o fim

Por conta de umas questões paralelas
Quebraram meu bandolim
Não querem mais ouvir as minhas mazelas
E a minha voz chinfrim
Criei barriga, a minha mula empacou
Mas vou até o fim

Não tem cigarro acabou minha renda
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim?
Eu já nem lembro pronde mesmo que eu vou
Mas vou até o fim

Como já disse era um anjo safado
O chato dum querubim
Que decretou que eu estava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim

Composição: Chico Buarque

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Essa Gente: o novo romance de Chico Buarque (Companhia das Letras)

Um escritor decadente passa por um deserto criativo e emocional enquanto o Rio de Janeiro colapsa ao seu redor. Em seu sexto romance, Chico Buarque constrói uma engenhosa trama em cujas entrelinhas se revelam as contradições do Brasil de agora.
Nas livrarias a partir de 14 de novembro.
Há pontos de contato entre Chico Buarque e o protagonista de Essa gente. Além de ser escritor, Manuel Duarte tem esse sobrenome de perfil vocálico idêntico e gosta de bater perna atrás de inspiração nos arredores do Leblon, onde voltou a morar após o fim de seu último casamento. Embora seja quase inevitável buscar alusões autobiográficas no novo romance de Chico — o primeiro após a consagração do prêmio Camões —, o leitor não demorará a descobrir que tal linha de pensamento conduz a um beco sem saída. Na melhor das hipóteses, lhe dá a posse de uma chave que pode abrir uma ou outra porta, mas não todas. Essa não será a única pista falsa antes do ponto-final.
Essa gente é, entre os romances de Chico, o mais áspero e possivelmente o mais enigmático. A história contada em forma de pequenos capítulos de diário, quase todos datados de um passado tão recente que se pode chamar de atualidade, é mais um de seus quebra-cabeças narrativos com fumaças de literatura policial. No entanto, a reflexão sobre a linguagem que é uma dimensão estruturante das ficções buarquianas se ancora desta vez no estilo mais imediato de todos: o do apontamento rápido, feito para auxiliar a memória do próprio apontador no futuro, quando houver distância e lucidez para transformar o tumulto do presente numa história redonda. Sim, estamos no nebuloso país do agora. A parte da brincadeira que cabe ao leitor é mais decisiva do que nunca.
Autor de diversos livros, entre eles um best-seller já entrado em anos chamado O Eunuco do Paço Real, Duarte é um escritor decadente às voltas com uma pindaíba total, tanto financeira quanto afetiva. Tem um filho pré-adolescente com quem é incapaz de trocar uma única palavra. Está sempre em busca de um modo de descolar dinheiro — seja arrancando mais um adiantamento de seu editor paulista, seja apelando à generosidade arisca de um amigo bem-sucedido. Com uma mistura de hiperatividade e inação, ricocheteia entre suas duas ex-mulheres, uma tradutora intelectual e uma decoradora perua, e um número não especificado de putas. Enquanto isso, à sua volta, o Rio de Janeiro sangra e estrebucha sob o flagelo de feridas sociais finalmente supuradas, exibidas por muitos com uma espécie doentia de orgulho.
O distanciamento emocional vagamente camusiano com que Duarte fala dessas ruínas, tanto a pessoal quanto a coletiva, eximindo-se de juízos históricos ou mesmo de indignação, dá ao livro um tom de farsa — não ligeira mas grave, encharcada de humor negro. Logo de saída, a comédia sombria se escancara na subtrama dos castrati: um pastor neopentecostal e um maestro italiano estão castrando jovens pobres dos morros cariocas, com a anuência de suas famílias, a fim de abastecer o mercado do canto lírico internacional.
Será que estamos diante de uma alegoria poderosa da emasculação de um povo? Pode ser, mas talvez isso só exista na ficção que Duarte tenta escrever, alegoria de alegoria, retomando um tema presente em O Eunuco do Paço Real. Essa e outras fronteiras entre vida, imaginação, sonho e delírio vão sendo borradas pelo autor — e aqui falamos de Chico Buarque — com um sorriso que quase se deixa entrever nas páginas.
A montagem do quebra-cabeça se complica mais um pouco quando outros narradores se apresentam, das ex-mulheres de Duarte a uma vizinha enxerida que lhe é uma completa estranha, sem falar de uma voz que narra em terceira pessoa. Vai ficando claro que o “diário” é um estratagema literário de Duarte, o próprio livro que ele tenta escrever, embora também essa chave encontre seu limite quando, nas últimas páginas, o formato se prolonga além de toda verossimilhança para dar o toque final numa charada que o autor capricha em deixar sem solução. Uma informação jogada então com sugestiva ausência de ênfase, a de que o computador do protagonista estava vazio de textos, chega a acenar com a não existência do próprio livro que se acabou de ler.
Romance urgente, colado corajosamente na opacidade do agora, Essa gente é, numa primeira leitura, uma comédia de costumes tão divertida quanto cruel. É também um engenho narrativo feito para empurrar até o futuro possível — algum momento após o fim da leitura — o caimento da ficha derradeira: a compreensão de que, enquanto Duarte nos conduzia pelas tortuosas vielas literárias de sua história mundana, alegórica, metalinguística, o mais importante ocorria ao seu redor. O foco se desloca então da “literatura” para a paisagem, a chapa quente carioca compartilhada pela classe média alta do Leblon e pela mistura de classe média baixa, pobreza e miséria da vizinha favela do Vidigal. Terminada a leitura, o livro nos intima a virá-lo do avesso, transformando fundo em forma e desviando os olhos da história para a História.
Nessa nova perspectiva, os personagens principais se tornam com clareza dolorosa a violência letal da polícia contra “essa gente”, a humilhação dos porteiros, o espancamento gratuito do mendigo pelo sócio do Country Club, o bullying sofrido na escola pelo filho de esquerdistas, o alagamento apocalíptico das ruas em dias de chuva, as pedras que ameaçam deletar o morro, a falência material e moral de uma cidade que já foi símbolo de uma nação — talvez ainda seja. Que a única redenção possível venha do olhar de uma ruiva gringa apaixonada pela fantasia do Orfeu do Carnaval é parte do humor dilacerante da primeira obra literária de vulto a encarar o tema do Brasil bolsonarista. Pensando bem, essa gente somos todos nós.
 
Sérgio Rodrigues
Ouça um trecho do livro, com narração de Marília Garcia
SOBRE O AUTOR
Francisco Buarque de Hollandanasceu no Rio de Janeiro, em 1944. Compositor, cantor e ficcionista, publicou, além das peças Roda viva(1968), Calabar, escrita em parceria com Ruy Guerra (1973), Gota d’água, com Paulo Pontes (1975), e Ópera do malandro (1979), a novela Fazenda modelo (1974) e os romances Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003), Leite derramado (2009) e O irmão alemão (2014).
OBRAS DE CHICO BUARQUE PUBLICADAS PELA COMPANHIA DAS LETRAS