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domingo, 11 de junho de 2023

Helga Hoffmann tratou, em 2014, da onda declinista americana - artigo-resenha, livros sobre os EUA

 PRA: começo pelo final, transcrevendo apenas os titulos originais doslivros examinados criticamente por Helga Hoffmann em seulongo artigo para a revista Politica Externa, quejá não existe mais (mas que Rogerio Farias scannerizou completamente, embora não tenha obtido autorização para divulgar). Depois da chamada dos livros, todo o resto do texto é da Helga Hoffmann.

Bibliografia

The Short American Century: A Postmortem - Andrew J. Bacevich (ed) - Harvard University Press, 2013, 287 pp.;

That Used to Be US: How America Fell Behind in the World in Invented and How We Can Come Back – Thomas L. Friedman and Michael Mandelbaum - Ferrar, Straus and Giroux, Nova York, 2011, 381 pp.;

When the Money Runs Out: The End of Western Affluence – Stephen D. King - Yale University Press, London, 2014, 416 pp.;

The Next Convergence: The Future of Economic Growth in a Multispeed World – Michael Spence - Ferrar, Straus and Giroux, Nova York, 2011, 296 pp.;

The Growth Map: Economic Opportunity in the BRICs and Beyond – Jim O‘Neill - Portifolio/Penguin, Nova York, 2011, 248 pp.; 

When China Rules the World: The End of the Western World and The Birth of a New Global Order – Martin Jacques - Penguin Books, Nova York, 2012, 2a ed. 812 pp.

ESTA MATÉRIA FAZ PARTE DO VOLUME 23 Nº1 DA REVISTA POLÍTICA EXTERNA

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Helga Hoffmann rules:

NÃO É VERDADE QUE SÃO OS CHINESES OS QUE FALAM EM DECLÍNIO AMERICANO. ALIÁS, NÃO HOUVE DECLINIO. O QUE ACONTECEU É QUE OUTROS SE DESENVOLVERAM, SOBRETUDO NA ÁSIA. E AÍ HENRY KISSINGER, RECENTEMENTE, TEVE QUE LEMBRAR AOS AMERICANOS QUE O MUNDO NÃO É APENAS EUROPA E ESTADOS UNIDOS

Discursos prematuros sobre o fim do século americano

por Helga Hoffmann 

A onda “declinista” trouxe esses 6 livros e ensaios sobre o ocaso do Ocidente.

The Short American Century: A Postmortem - Andrew J. Bacevich (ed)

That Used to Be US: How America Fell Behind in the World in Invented and How We Can Come Back - Thomas L. Friedman and Michael Mandelbaum

When the Money Runs Out: The End of Western Affluence - Stephen D. King

The Next Convergence: The Future of Economic Growth in a Multispeed World - Michael Spence

The Growth Map: Economic Opportunity in the BRICs and Beyond - Jim O‘Neill

When China Rules the World: The End of the Western World and The Birth of a New Global Order - Martin Jacques

 

É hora de abandonar a falsa ideia de que estamos apenas passando por um breve revés cíclico.

Stephen D. King, de Londres, em 2013


A onda “declinista” que trouxe esses livros e ensaios sobre o ocaso do Ocidente talvez tenha amainado, mas, como disse Samuel Brittan, do Financial Times, “zilhões de palavras… ainda terão que ser escritas à medida que os governos ocidentais sejam responsabilizados pelas proporções cada vez menores de suas próprias economias”.[1] Aqui, uma amostra parcial. Na esteira da Grande Recessão de 2007-2009, o ruído foi forte, títulos ou subtítulos escolhidos para assustar: O fim do mundo ocidental (M.Jacques), O curto século americano: uma autópsia (Bacevich et al.), Era uma vez USA (T.L.Friedman), O fim da afluência ocidental (S.D.King). Os livros de títulos menos alarmantes puseram o foco na recente convergência entre países avançados e países em desenvolvimento e no avanço de economias emergentes como oportunidade de investimento, para além dos BRICS, dando as boas-vindas a um mundo multipolar (Jim O’Neill) e à difusão do crescimento econômico do ocidente industrializado para o resto do mundo (M. Spence).

Cada um dos autores, de uma maneira ou de outra, chega à China, com maior ou menor grau de ansiedade, preconceito ou pragmatismo.

O colunista Thomas Friedman, com seu habitual estilo de contador de casos e de frases retumbantes, avisa desde o primeiro parágrafo: “Este é um livro sobre a América que começa na China”. E passa a descrever, deslumbrado, sua viagem de Beijing a Tianjin, para uma conferência do World Economic Forum: a ultramoderna estação Beijing South Railway Station, suas paredes de vidro, seu teto provedor de energia solar, o trem bala que cobre a distância de 115 km entre as duas cidades em apenas 29 minutos, o centro de convenções em Tianjin e suas gigantescas escadas rolantes em cada canto, 230 mil metros quadrados construídos em meros oito meses.

Cena seguinte: a estação Bethesda do metrô de Washington, D.C., duas pequenas escadas rolantes em reparos durante seis meses, os tapumes trazendo tremenda confusão na hora dorush. E depois disso 16 capítulos de crítica alarmada (e/ou alarmista), com inúmeras historietas, comentários de filmes e de histórias em quadrinhos, a nos convencer do seu diagnóstico e de suas soluções: “Nosso problema não é a China, e nossa solução não é a China, nosso problema somos nós”.[2]

Está tudo errado, cf. Friedman: os americanos têm atitude de avestruz, evitam ver seus problemas e esquecem sua história, do tempo em que tinham motivação e ética do trabalho, e assumiam riscos; falta inovação, a educação não prepara trabalhadores para pensar criticamente e tem prioridades erradas. Como alguém que nota a variedade das atividades curriculares e extracurriculares a que são submetidos os estudantes nos Estados Unidos e acha que elas causam estresse, Friedman se desespera: “Estresse? Estresse é o que você vai sentir quando não conseguir entender o sotaque chinês do seu primeiro chefe depois de terminar a faculdade, no único emprego que lhe for oferecido. Aí que será estresse”. (p. 132)

Friedman acha que cada um tem que criar seu próprio emprego, seu próprio projeto, pois não mais será possível encontrar emprego seguro nas empresas; que os Estados Unidos já não têm mais condições de arcar com os atuais gastos militares nem seguir com suas emissões de poluentes; o endividamento é insustentável e também a extrema polarização política. E de novo se desespera: “Como isso aconteceu? Nosso sistema político se tornou paralisado e sofreu erosão nosso sistema de valores”. As medidas que propõem esses autodeclarados “otimistas frustrados” não guardam proporção com o alarma: a conclamação altissonante para restaurar orgulho e valores do passado é de uma terapia de choque para o sistema político e a educação.

Mesmo assim, Friedman e Mandelbaum são mais específicos que Michael Spence que, depois de dividir o Nobel de Economia com Stiglitz e Akerlof em 2001, achou de bom alvitre tratar de todos os problemas dos países desenvolvidos e em desenvolvimento na globalização. Exemplo de sua cautela é uma platitude como a de que o crescimento de longo prazo no mundo vai depender de os países emergentes administrarem seu próprio sucesso e de a economia global poder acomodar esse sucesso. Não há como discordar. Menos adepto do laissez faire que economistas americanos em geral, desemboca na necessidade de políticas públicas, mas pouco consegue especificar além do diagnóstico de que a “governança internacional” atrasou em relação ao novo panorama mundial, de que há descasamento entre as “estruturas de governança” e o aumento de interconexão e interdependência em um “mundo de velocidades múltiplas”.

A crítica que está em Friedman e Mandelbaum também aparece em King, mas sem linguagem sensacionalista, e seu foco é política econômica. É homem prático, do mundo financeiro, mas participa do debate público (inclusive em comissão do Parlamento britânico) sobre como lidar com a estagnação dos anos recentes. Sua análise dos limites dos incentivos é a mais direta, a mais rica em fatos, sem reverência a celebridades da análise econômica acadêmica. Concentra-se no que o Ocidente, sobretudo os Estados Unidos e a Zona do Euro, podem fazer eles próprios para enfrentar “distopia” e o fim da afluência.

“Distopia”, no caso, remete a “fraquezas sistêmicas”, a “desequilíbrios de longo prazo”, mas também a “ilusões abaladas”. Não é bem antônimo de utopia. Utopias em geral podem ser lidas como condenação da cultura existente ou ao menos sinal de inquietude com as normas e práticas vigentes, podendo a profecia ser uma artimanha para atacar a realidade atual. A distopia de King tem a crítica do presente, mas, sendo negativas as tendências que identifica, o mundo presente é uma utopia se comparado com o futuro arruinado por aqueles que seriam hoje os responsáveis pelos desenvolvimentos futuros. “Distopia” é a sociedade a que se chegará no futuro, como lógica extensão de hoje, uma sociedade descrita como declinante, instável, conflituosa, e perigosa. Isso se nada se fizer no presente para sua correção, que é mais que tudo conseguir confiança suficiente para, de comum acordo, reduzir as assimetrias na economia internacional e dentro de cada país.

Parece que a China não é propriamente parte da “distopia” que King quer evitar, mesmo porque ele tem experiência prática no sistema financeiro internacional e é bastante pragmático para não pretender determinar a política econômica chinesa. Suas referências à China são esparsas e factuais, no contexto de uma etapa de crescimento da economia global em que as fronteiras entre países foram se rompendo, de tal modo que a demanda e a poupança chinesas afetam os preços e o consumo no mundo ocidental. Já aponta entre as tendências a de que a China seria a maior economia do mundo (o que se confirma). Vale registrar que até agora a China vem surpreendendo os que ousaram previsões. Goldman Sachs sugeriu, em 2007, que a economia chinesa ultrapassaria a economia americana em 2027. Martin Jacques reviu essa previsão e adiantou esse ano para 2018. Veio antes, mas esse número não é o que mais importa no seu estudo da China.

A crise de 2007-2009 agravou os desequilíbrios; mas, segundo King, o crescimento dos países ocidentais havia desacelerado bem antes e essa tendência tão cedo não vai passar. Esse diagnóstico retira relevância ao debate do qual ele participa, e que prossegue, entre os que querem conter a crise com estímulos e os que recomendam austeridade. Na verdade, promete austeridade para sempre: as sociedades avançadas terão que aceitar que seu padrão já não pode melhorar continuamente como no passado.

Costuma-se colocar o início do Século Americano no fim da Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, os Estados Unidos tinha o monopólio de armas nucleares, ainda que isso não tenha durado muito tempo; tinha a maior Marinha do mundo e uma maciça Força Aérea de longo alcance. Tinha metade da capacidade manufatureira do mundo e proporção semelhante da capacidade de carga do transporte marítimo. Detinha o grosso das reservas de ouro e de moeda estrangeira. Era a única economia industrial avançada do globo que permanecera intacta, enquanto a guerra havia devastado todas as demais nações beligerantes, inclusive os vencedores da guerra junto com os Estados Unidos, a União Soviética e a Grã-Bretanha. E era o principal produtor e um grande exportador de petróleo.

Na verdade, o “Século Americano” começa antes da Segunda Guerra. A expressão apareceu pela primeira vez em 17 de fevereiro de 1941 como título de um longo editorial meio escondido na então popular revista Life, em que o poderoso jornalista Henry R.Luce, editor da revista, defendeu o apoio integral dos Estados Unidos à Grã-Bretanha em guerra. Os dois primeiros capítulos de The Short American Century examinam o editorial de Life, o que a revista mostrava do cotidiano, a pregação de Luce para que os Estados Unidos entrasse na guerra, opondo-se às políticas isolacionistas de um país que havia completado em 1940 onze anos em recessão e onde o desemprego ainda rondava 15%.

A maneira como os Estados Unidos participaram da guerra, em boa medida correspondeu à promessa de Roosevelt a Churchill, de que pretendia ser “o grande arsenal da democracia”. Com a estratégia militar de participar da guerra sobretudo do ar, explorou-se o domínio industrial e científico dos Estados Unidos fornecendo bombardeiros e munição. Baniu-se a depressão, caíram barreiras ao comércio e à imigração. Segundo David M. Kennedy, um membro da Academia Americana de Artes e Ciências (Bacevich, capítulo 2), o ativo mais tangível que os Estados Unidos trouxeram para a coalizão na Segunda Guerra Mundial foi a capacidade de sua indústria. Os dados reunidos por ele sobre as perdas militares e os danos econômicos mostram a verdade no amargo comentário de Josef Stalin, de que os Estados Unidos decidiram a guerra com dinheiro americano, máquinas americanas e homens russos. Participação em uma guerra e o aumento simultâneo de bem-estar dentro do país foi um caso único dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.

O grupo de nove laureados historiadores que Bacevich reuniu em The Short American Century mostra como os Estados Unidos chegaram ao auge do poderio e o quanto influenciaram o mundo por seu estilo de vida, sua cultura, seu predomínio nas organizações internacionais em paralelo ao desmoronamento dos impérios coloniais, seu intervencionismo militar, suas transnacionais, e até suas fantasias e fantasmas.

Cada tema é um capítulo, em que o entusiasmo vai cedendo lugar à desolação: a criação do sistema de organizações internacionais do pós-guerra, de San Francisco a Bretton Woods, o surgimento da sociedade de consumo; raça e democracia; os detalhes das guerras em que se envolveram os Estados Unidos, ao lado de uma crítica devastadora das intervenções militares e, sobretudo das ideias subjacentes, como a de que “a história está do nosso lado; todo mundo quer ser como nós” ou a de que “força é às vezes necessária” (capítulo 5); de como uma “americanização do mundo” foi a outra face de uma “globalização da América”, para mal ou para bem, provendo as bases para a ideia de que o sucessor do curto Século Americano não será um Século da China (ou outro qualquer), e sim, um longo século transnacional (capítulo 6); a globalização e seu impacto sobre as instituições internacionais, tornadas mais democráticas, e ao mesmo tempo mais imprevisíveis, à medida que já não há um só país capaz de determinar o futuro da ordem econômica mundial; finalmente, dois capítulos sobre a desilusão do Século Americano, que, tudo revelado e quantificado, só existiu como título espetacular.

No panfleto de 1941 em que se originou a expressão, Henry Luce prometia o melhor dos mundos: os Estados Unidos seria beneficente em suas ações, “o bom samaritano do mundo inteiro”, e lucraria em consequência. Isso jamais chegou a se concretizar dessa maneira. Mas os americanos continuaram presos a essa ilusão, mesmo depois das decepções e danos causados e sofridos por suas aventuras militares em várias partes do mundo.

A crítica dos historiadores Walter LaFeber e Eugene McCarrher (in Bacevich, capítulos 8 e 9) às atividades internacionais dos Estados Unidos, e sobretudo ao ideário em que se apoiam, não poderia ser mais arrasadora. Há inclusive um desmascaramento das posições ulteriores de Henry Luce e suas publicações, e do discurso de políticos contemporâneos. Aliás, Thomas Friedman não escapa de comentários sarcásticos por sugerir aos seus leitores que uma sociedade global saudável precisa ter como modelo os Estados Unidos.

Em todo caso, não há nostalgia entre os autores reunidos por Bacevich. Somente americanos poderiam ter escrito uma crítica tão dura e indignada de uma retórica de restauração de glórias que ainda tem força em seu próprio país. Para eles, não passa de miopia e escapismo pretender prolongar o imaginado “Século Americano”, ao defender que os Estados Unidos sejam um paradigma para o mundo, mantendo a velha ilusão (cada vez mais tênue) de que os americanos são o topo do mundo e podem dirigir o curso da história mundial. Sua “missão redentora” é ficção e ilude-se quem tem esperança de que suas intervenções militares poderão ser rápidas, baratas e indolores, como se não houvesse alternativa entre declínio pacífico e guerras sucessivas. Mais cedo ou mais tarde os americanos terão que deixar de sanitizar sua história, vencer a nostalgia, e embarcar em uma jornada na qual já não controlam a paisagem.

No fim, quem ficar curioso sobre o que será do mundo sem o predomínio geral dos Estados Unidos poderá enfrentar a análise fascinante e minuciosa de Martin Jacques, Quando a China dominar o mundo (só de Notas e Bibliografia são 137 páginas). Aqui o longo prazo não é o pós-guerra, o longo prazo é chinês, chega até o começo do cultivo de arroz na China há 12.000 anos, e da formação dos atuais limites territoriais da China do quinto ao primeiro século antes de Cristo. A China chegou a ser a sociedade mais urbanizada do mundo no fim do século XIII e a maior nação marítima no século XV. Jacques quer entender por que a Revolução Industrial aconteceu na Grã-Bretanha, e por que a China ficou para trás desde meados do Século XIX, se há fatores específicos para que ela não pudesse ter ocorrido na China, pois as regiões mais avançadas da China, em particular o delta de Yangzi, no fim do século XVIIII, tinham situação similar às mais avançadas do noroeste da Europa.

O livro de Jacques não abarca só a economia e as empresas, mas aborda o mundo das ideias, a tradição que começa com Confúcio, cultura, política, as percepções sobre nacionalidade e unidade, as relações entre Estado e sociedade, as características peculiares da educação e do funcionalismo público, preocupações ambientais e até a imensa diáspora chinesa. Tudo isso nos dias de hoje e ao longo dos séculos. Ele observa que as relações entre China e Estados Unidos foram tão desiguais por tanto tempo que será muito difícil para americanos se ajustarem à ideia de que têm que tratar a China como igual.

Martin Jacques não tem medo da China. É certo que suas previsões sobre “um novo tipo de mundo” que não será necessariamente “ocidentalizado” são polêmicas. Há os céticos, para quem parte do crescimento recente da China foi “miragem”, e previsões catastróficas de ruptura de um equilíbrio político frágil também existem. Mas essa já é outra discussão.

“Declinistas” deram uma trégua quando o resvaladouro na Europa parecia estabilizar, o crescimento na China desacelerou, a economia americana mostrou sinais de recuperação. Os Estados Unidos da América ainda é o país mais poderoso do mundo, como reconhecem os autores desta amostra. São diversos os seus relatos, interpretações, e simpatias, mas apontam para o mesmo: se é que existiu um curto Século Americano, aquele momento passou. Bacevich não deixa dúvidas: “O que vem daqui pra diante pode não estar bem claro, porém uma volta ao auge da supremacia política, econômica e militar dos Estados Unidos não figura entre as alternativas prováveis”.

Julho de 2014

Notas

[1] The Decline of Western Dominance, Financial Times, 3 de janeiro de 1913.

[2] O inglês permite um jogo linguístico entre “us” (nós mesmos) e US (United States), como no título do seu livro.↑

Bibliografia

The Short American Century: A Postmortem - Andrew J. Bacevich (ed) - Harvard University Press, 2013, 287 pp.;

That Used to Be US: How America Fell Behind in the World in Invented and How We Can Come Back – Thomas L. Friedman and Michael Mandelbaum - Ferrar, Straus and Giroux, Nova York, 2011, 381 pp.;

When the Money Runs Out: The End of Western Affluence – Stephen D. King - Yale University Press, London, 2014, 416 pp.;

The Next Convergence: The Future of Economic Growth in a Multispeed World – Michael Spence - Ferrar, Straus and Giroux, Nova York, 2011, 296 pp.;

The Growth Map: Economic Opportunity in the BRICs and Beyond – Jim O‘Neill - Portifolio/Penguin, Nova York, 2011, 248 pp.; 

When China Rules the World: The End of the Western World and The Birth of a New Global Order – Martin Jacques - Penguin Books, Nova York, 2012, 2a ed. 812 pp.

ESTA MATÉRIA FAZ PARTE DO VOLUME 23 Nº1 DA REVISTA POLÍTICA EXTERNA

sexta-feira, 24 de março de 2023

Helga Hoffmann: seu mais famoso livro, 60 anos atrás: Como planejar nosso desenvolvimento?

Revista Será: https://revistasera.info/2023/03/60-anos-este-mes/  

60 anos este mês

Jean Paul Sartre em palestra no ISEB

Jean Paul Sartre em palestra no ISEB

Há 60 anos publiquei um livro. Vendeu bem, uns 20 mil exemplares. Talvez o mais lido de tudo o que já publiquei na vida. “Como planejar nosso desenvolvimento?”, 123 páginas. Pequeno. Nem tão pequeno, que as páginas são compactas e a letra miúda. Vendia nas bancas de jornal. Rendeu-me alguns minutos de celebridade: no noticiário sobre o lançamento, no Galeão, Rio de Janeiro, apareci na coluna social do diário “Última Hora” ou do “Correio da Manhã” – já não lembro – como “planejadora mais bem planejada do Brasil”. Fui ingrata com o colunista, reclamei que tinha colocado uma foto ruim. Rendeu-me uma entrevista com foto de meia página na “Tribuna da Imprensa” do Carlos Lacerda, por boa foto, ou porque a deslumbrada planejadora não se deu conta que era porque o último capítulo do seu livrinho, com o assunto concreto mais relevante naquela data, podia ser esmiuçado e interpretado como contrário ao Plano Trienal 1963-1965, cuja Síntese acabara de ser lançada por Celso Furtado em dezembro de 1962. Do lançamento do Caderno em São Paulo, lembro que foram meu pai e minha mãe. E José Serra, que era líder estudantil. 

Mas não foi só isso que rendeu. Uma avaliação do livro foi feita no Instituto de Economia da Universidade de Copenhague quando, em 1978, fiz concurso para professor daquela Universidade. Só agora me dou conta de que “fui um problema”, pois dos 11 candidatos era a única que não era de país escandinavo, e dos 12 escritos que entreguei à banca de avaliação, metade era em português, inclusive o mais importante, a tese de doutorado, cuja 2ª edição fora publicada pela Ed. Ática em 1977, “Desemprego e Subemprego no Brasil”. Tiveram que esperar um dos membros da banca, Göran Ohlin, Professor da Universidade de Uppsala, preparar um resumo do que estava em português. Tudo isso está no Relatório de 78 páginas e anexos em que a banca analisa, um por um, o currículo e as obras dos 11 candidatos.

Claro que não ganhei o posto. Foi muita coragem de quem havia acabado de se mudar para Copenhague e mal falava dinamarquês. Mas me ajudou no emprego que eu já tinha, como pesquisadora no que é hoje “Copenhagen School of Economics and Business Administration”.

Traduzo a avaliação do livrinho pela banca da Universidade de Copenhague, que só foi possível graças a Göran Ohlin (e que, por essas voltas que o mundo dá, veio a ser meu chefe na ONU quase 10 anos depois, e, quando deixou a ONU e voltou para a Suécia, amigo querido até sua morte em 1996): 

“O trabalho de Helga Hoffmann se concentra exclusivamente em economia do desenvolvimento, em duas categorias: (1) política econômica e planejamento econômico no Brasil, e (2) descrição e seleção dos chamados indicadores sociais para avaliação do desenvolvimento dos países latino-americanos.

O primeiro trabalho na categoria 1 é um caderno de pouco mais de 100 páginas, “Como Planejar nosso desenvolvimento?” (Hvorledes skal vi planlaegge vor udvikling?), algo menos que metade dedicada ao planejamento em economias mistas, nos países socialistas e nos subdesenvolvidos. A outra metade descreve a história do planejamento no Brasil, que levou ao Plano Trienal 1963-1965, formulado sob a liderança de Celso Furtado. É principalmente histórico e totalmente eclético em suas posições, mas é rico em material político e institucional, e pode ser considerado trabalho imponente (imponerende vaerk) para um autor de 24 anos.”

Os dinamarqueses me pouparam de ter que fazer meu próprio resumo. “Eclético” é rótulo válido para o livrinho, audácia da juventude e coragem da ignorância. E é verdade que contém muitos fatos e muita informação. Não vale mais, 60 anos depois. Algumas de suas expectativas foram invalidadas pelos fatos, até pelas imensas mudanças geopolíticas dessas seis décadas. O planejamento central fracassou, e não foi só no mundo soviético, que já não existe. Um experimento social de 70 anos (1917-1989) mostrou que a “socialização dos meios de produção” não funciona. E com isso perdeu força a ideia que “o estado tudo pode”, de que com “vontade política” se consegue o desenvolvimento de um país. Viu-se que não é nada fácil ter um setor estatal eficiente na economia.

A independência dos países africanos que se deu nos 1960s e 1970s, e depois a globalização, acabou com a ideia de que países podiam ter desenvolvimento autárquico através do protecionismo comercial no modelo de “substituição de importações”. Ao contrário, o “desenvolvimento para fora” teve mais sucesso. O objetivo subjacente de autossuficiência econômica dos nacionalistas radicais nunca foi viável mesmo para os poucos “países baleia”.

A rejeição ao capital estrangeiro está presente de ponta a ponta no livrinho. Até a excelente análise crítica dos Acordos de Trigo Brasil-Estados Unidos aparece ali para atacar “ajuda” estrangeira. Em 1958 estudantes universitários haviam feito uma manifestação em frente ao BNDE (ainda era BNDE, sem S) gritando “Go home Bob Fields”. Acho que estive lá. O que escrevi sobre capital estrangeiro em 1962 chega a ser paranoico, colocou economistas liberais mais conhecidos, que criticavam a intervenção do estado na produção industrial, como “submissos a interesses estrangeiros”. Guerra fria no auge? Ou ignorância sobre o que eles argumentavam? Fato é que, no mundo todo, os ataques ao capital estrangeiro transitaram gradativamente para esforços em atrair capital estrangeiro para os países subdesenvolvidos. Acompanhei essa mudança nas discussões da Assembleia Geral da ONU e vi como foi se criando um arcabouço de regulação internacional dos movimentos de capital.

E a inflação? Das teorias de então a gente consegue enxergar vestígios entre os que acham que é possível combater a inflação sem se preocupar com o efeito de estímulos à demanda. Ainda prevalecia em 1962, até onde chegava minha informação, a teoria estruturalista da inflação difundida pela CEPAL, segundo a qual a alta de preços era provocada por “gargalos na produção”, e prometia que os preços cairiam uma vez que o investimento resultasse em aumento da produção. Para combater a inflação, o remédio defendido era mais investimento. Sem o recurso retórico de renomear alguns gastos como investimento. Deu no que deu, e é inacreditável que ainda reapareçam vestígios dessas ideias depois de tudo o que aprendemos sobre a inflação nas várias tentativas de conter o aumento de preços.

A gente ainda escrevia a mão, ou em máquina de escrever mecânica – que máquina de escrever elétrica eu só tive nos 1970s. Então vale registrar que se completou recentemente a digitalização dos “Cadernos do Povo”, disponível em https://desacato.info/cadernos-do-povo-brasileiro-colecao-completa/, um site com “ares de revolucionário”. Só que o que está certo é a avaliação da banca de 1978 na Universidade de Copenhague: serve aos historiadores. Ou talvez para verificar quantos dos problemas brasileiros persistem. Não dá para comemorar sem crítica, sem tentar entender porque ainda há gente enredada e atolada em ideias dos anos cinquenta invalidadas nas décadas seguintes.

Os “Cadernos do Povo” chegaram a 24 (mais 4 títulos extra, um sem pergunta e 3 volumes do “Violão de Rua”), a maioria publicados em 1963. Todos os 24 têm no título uma interrogação. Pretendiam explicar ao grande público leigo as grandes questões que mobilizavam o país: golpe, greves, inflação, crescimento baixo, reforma agrária, comércio desigual, e questões mais teóricas e gerais como revolução, socialismo, imperialismo, a Constituição, grupos de pressão, nacionalismo.

Não li nenhum dos Cadernos, estava mais ocupada em ganhar meu pão de cada dia. Nem o meu próprio reli, depois que foi publicado. Só agora, sessenta anos depois, dei uma olhada. Mas sei que são reflexo de um dos momentos históricos de imensa turbulência no Brasil. Nunca esqueci uma frase atribuída na ocasião a San Tiago Dantas, Ministro da Fazenda de João Goulart no auge da efervescência política: “mais uma vez a revolução brasileira derrapou por excesso de velocidade”. Moderado dentro da “esquerda”, em sentido muito amplo, o Ministro de Goulart defendia em 1963 reformas no âmbito da Constituição vigente.

Outra anedota que se conta sobre o clima do momento é a do editor Ênio Silveira andando pela Largo da Carioca, no centro do Rio, quando perguntou a um dos engraxates regulares na praça: “E então?! O comunismo vem aí?” E a resposta: “Pode deixá, seu dotô. Quando chegar nóis avacalha êle.” Se non è vero è bene trovato. Não tínhamos de modo geral a menor noção, naquele ano, de quanto estava polarizado o ambiente político. E sessenta anos depois só posso lamentar que algumas teses que os fatos não sustentam continuem defendidas. Como é que não viram o tempo passar? Como é que não viram o mundo mudar?

Escrevi o Caderno do Povo no. 14, “Como planejar nosso desenvolvimento?”, em 1962. Saiu a público em março de 1963. Um ano depois, o golpe militar (a rigor, golpe civil militar). Mas não foi o que me rendeu ser convocada, pela imprensa, a depor no Inquérito Policial Militar do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros do Ministério da Educação e Cultura). Militares brasileiros gostavam de planejamento, gostavam de intervenção do estado na economia. E eram nacionalistas. Mesmo se esquecido o sinal de interrogação do título, o livrinho não tinha nada de “revolucionário”. Cabe na rubrica “nacional desenvolvimentismo”, e acho que nos grupos da esquerda daqueles tempos sempre fui classificada (ou xingada, segundo a intenção do crítico) como “reformista”.

Claro que tive medo durante o interrogatório no inquérito do ISEB, havia alguns uniformizados fazendo perguntas, que não entendi, não tinha a menor noção de que valiam um registro histórico. Do livrinho não perguntaram nada, só lembro que ficaram perguntando das pessoas no ISEB, insistiram no Wanderley Guilherme dos Santos, não sei se porque era ex-colega do curso de Filosofia e presidente do Diretório Acadêmico no meu tempo de Universidade do Brasil, ou se foi pelo Caderno de autoria dele, dos mais polêmicos, “Quem dará o golpe no Brasil?“. Felizmente eu já era do tipo que pouco se interessa pela vida particular das pessoas ao redor, então realmente não sabia nada de atividades que não fossem as públicas. De ninguém. E o caderno de Wanderley eu nem tinha lido. Não era mentira, pois no tempo em que trabalhei no ISEB (de 1962 até o golpe civil-militar de 1964) o que fiz foi assistir palestras e preparar tabelas estatísticas encomendadas e revistas por Gilberto Paim e Ignácio Rangel, e discutir as teses de Paim e Rangel que, no ISEB, trabalharam juntos e eram os economistas no Instituto. Acabei demitida do ISEB, fechado em 31 de março de 1964. Mas foi ali que comecei a aprender economia, que então eu era apenas bacharel em filosofia. (Aliás, com Gilberto Paim mantive contato, levou-me para a EIAP/FGV, já então conquistado pela doutrina liberal e transformado em admirador de Roberto Campos.)

Já no tempo de estudante, antes de ser contratada para o ISEB e funcionária do MEC, eu fui assídua frequentadora das palestras do ISEB. Foram dezenas. Lembro em especial de uma aula de filosofia de Jean-Paul Sartre e Simone Beauvoir, dada no ISEB em 1960. Era meu último ano no curso de filosofia da Universidade do Brasil, já tinha lido “Le deuxième sexe” e tentado ler um enroladíssimo “L’être e le néant”. Do que disseram ali na rua das Palmeiras no. 55 não lembro, só pode ter sido resumo do que já havia aprendido deles na Fenefi, mas percebi que foram recebidos como celebridades, e não entendi por que, tinham um jeitão caipira. Será a memória me traindo? Pois eu já era “seguidora” do livro da Beauvoir e do “Golden Notebook” de Doris Lessing, formada nessas “bíblias” da igualdade. Vai ver já então “eclética”, pois nos chegava uma palestrante cobiçada que nos dava a honra de uma aula de graça, e ela não correspondia à ideia que tinha da “mulher parisiense” símbolo de elegância.

Essa digressão sobre o ISEB é natural: pois se em geral os Cadernos do Povo foram escritos sob inspiração isebiana e vários deles por intelectuais que formavam o ISEB, meu livrinho em particular é um subproduto do meu emprego no ISEB. Quem me levou para lá foi Álvaro Vieira Pinto, fascinante professor de História do Pensamento. Ensinava a gente a pensar, e as ideias não eram apresentadas fora de contexto: lembro que ao estudarmos os primeiros filósofos, do século V a.C., líamos também “La cité grecque”. O professor uma vez me deu a tarefa de traduzir do original a “Dialética do Senhor e do Escravo” de Hegel e discuti-la. Sim, no curso do Prof. Álvaro Vieira Pinto a gente lia no original, que ele lia até os primeiros filósofos em grego e latim. Eu estava entre os melhores alunos (apesar de turbulências extracurriculares várias). E os Cadernos do Povo foram uma ideia levada a cabo em conjunto por Álvaro Vieira Pinto, diretor do ISEB, e Ênio Silveira, diretor da Editora Civilização Brasileira. Ambos essenciais na minha formação, e na minha vida, de maneiras diferentes. E na publicação do meu Caderno. A CEPAL e a decisão de estudar economia vieram depois. 

No conjunto, os Cadernos são ricos em provocação, levantam uma imensidão de questões que poderiam ser objeto de teses acadêmicas. Assim, é decepcionante que uma tese de mestrado feita sobre os Cadernos do Povo tenha colocado o foco na questão de gênero, no meu Caderno 14 e no de Maria Augusta Tibiriçá Miranda, uma médica autora do Caderno 11, “Vamos nacionalizar a indústria farmacêutica?”. A mestranda não discutiu os temas dos Cadernos, e sim, o fato de que só havia duas mulheres entre os autores. Na minha vida profissional nunca me detive nem mesmo em registrar se mentores, colegas, chefes ou subordinados eram homem ou mulher, ou estavam em dúvida. Só agora, nessa era identitária, vejo em retrospecto que em sua maioria eram homens, desde o movimento estudantil, e me surpreendi, ao folhear o relatório dinamarquês, que era a única mulher entre os 11 candidatos a professor de economia em 1978 em Copenhague. Tenho certeza de que não foi por ser mulher que não fui aprovada. Nunca fui discriminada. 


Revista Será: https://revistasera.info/2023/03/60-anos-este-mes/ 


terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Por que o Brasil na OCDE? - Helga Hoffmann (Revista Será?)

 Por que o Brasil na OCDE?

 

Revista Será, fev 18, 2022

Reunião na sede da OCDE.

 

OCDE, “clube dos ricos”? O epíteto parece ter sido lançado com intuito pejorativo, pois, estritamente, a OCDE em nenhuma época chegou a ser composta apenas de países ricos. Quando foi fundada, em 1961, por países europeus mais os Estados Unidos e Canadá, a Irlanda estava entre os fundadores e ainda era um país agrícola longe de ser rico.

Aliás, quando começou, em 1948, para administrar o Plano Marshall de reconstrução da Europa, era um conjunto de países devastados pela guerra, e se chamou Organização para a Cooperação Econômica Europeia (OCEE), sublinhando a interdependência entre países europeus. Com o fim do Plano Marshall, deu-se a adesão dos Estados Unidos e do Canadá e foi criada a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 1961. Os Estados Unidos, em pleno período de auge da Guerra Fria, tratavam de não perder influência na Europa. Originalmente teve 22 países, e fora Estados Unidos e Canadá, eram todos europeus: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Islândia, Luxemburgo, Noruega, Portugal, Reino Unido, Suécia, Suíça, e Turquia (que nunca se decidiu entre ser Europa e ser Oriente Médio).

Já no ano seguinte começa a se ampliar, com a entrada da Itália em 1962 e depois, em 1964, do Japão. Continuou se expandindo, para todas as regiões, e hoje tem 38 países. O último a entrar, ano passado, foi a Costa Rica, e assim, com México (1994), Chile (2010) e Colômbia (2020), a OCDE já tem quatro países latino-americanos, seus membros mais pobres, qualquer que seja a maneira de calcular. O PIB per capita menor (segundo estimativas da OCDE a preços constantes e taxa de câmbio de paridade de poder de compra constante) é o da Colômbia, uns 13 mil dólares, e o maior o de Luxemburgo, uns 107 mil. O PIB per capita médio da OCDE é 41 mil, em dólar PPP (“purchasing power parity”, paridade de poder de compra), mas os países europeus mais ricos estão na casa dos 50 mil de PIB per capita, uns mais, outros menos. Nessa mesma estimativa, o PIB per capita dos Estados Unidos está em 58 mil dólares PPP e o da Irlanda em 88 mil. Claro que os números são diferentes quando a conversão se faz em dólar corrente, que dá o PIB afetado pela conjuntura cambial do momento em cada país.

Pelo visto, “clube dos ricos” não é. O objetivo mais amplo da OCDE, no entanto, é promover o bem-estar econômico de seus membros. Para isso pretende ser, por assim dizer, um “clube da boa governança”, até um “clube das melhores práticas” em democracia. “Better policies for better lives”, “Melhores políticas públicas por uma vida melhor”, é o lema. De maneira muito geral, ser membro da OCDE significa que o país está alinhado com as melhores práticas de governança, está disposto e tem capacidade de fazer reformas para cumprir os padrões da OCDE. Essa não é uma mera formalidade. Ela se inicia por pedido escrito pelo país que quer tornar-se membro. O Brasil fez este pedido em 2017, mas só no fim de janeiro de 2022 o Conselho da OCDE “decidiu abrir discussões de acesso com seis candidatos a serem membros da OCDE – Argentina, Brasil Bulgária, Croácia, Peru e România”, três latino-americanos, três do leste europeu.

Entre abrir discussões de acesso e o convite para ser membro há um longo caminho. Para que o Conselho da OCDE decida convidar um país a ser membro há um processo técnico detalhado levado a cabo por comitês da OCDE, em diferentes áreas de políticas públicas, como comércio e investimento, governança pública, integridade e esforços anticorrupção, bem como proteção do meio ambiente e ações relativas à mudança climática. Não há prazo para esse processo e a decisão final sobre o acesso tem que ser aprovada por unanimidade no Conselho. Os comitês técnicos especializados avaliam não só a disposição, mas a capacidade do país candidato de implementar os padrões da OCDE. As revisões técnicas nas várias áreas podem levar a recomendações para que o país candidato faça mudanças de legislação, políticas e práticas para que correspondam às melhores práticas e padrões da OCDE. (São muitas as áreas de atuação, como se vê em legalinstruments.oecd.org/en/instruments.)

As revisões técnicas abrangem o monitoramento do cumprimento de convenções internacionais sobre temas específicos, como acordos de comércio internacional, ou a Convenção Antissuborno da OCDE, da qual o Brasil é signatário desde a sua criação, em 1997.

Mesmo um exame superficial do que são os valores, padrões e prioridades da OCDE adverte o quanto ainda está longe o Brasil, neste momento, do alinhamento e dos padrões necessários para ser membro da OCDE, a despeito da resposta à carta do Secretário-Geral da OCDE sobre o início das discussões de acesso, em que o governo brasileiro afirma comungar dos valores da OCDE. E a despeito de o Brasil ter completado boa parte das negociações setoriais que abrangem centenas de questões específicas, inclusive na área da tributação, como o acordo de bitributação recentemente assinado com os Estados Unidos. Valerá uma adesão meramente retórica?

A nota do Conselho, sobre a decisão de abrir discussões de acesso, informa que o início do processo depende de o país confirmar “sua adesão aos valores, visão e prioridades refletidas na Declaração de Visão do 60º Aniversário da OCDE e na Declaração do Conselho Ministerial de 2021”. A adesão a esses dois documentos detalhados como pré-condição para preparar o mapa do processo de acesso aparece também na carta de 25 de janeiro de 2022 ao Presidente Jair Bolsonaro, assinada por Mathias Cormann, Secretário-Geral da OCDE. (www.oecd.org/newsroom/Letter-to-H-E-Mr-Jair-Bolsonaro-President-Brazil.pdf)

São reafirmados na carta da OCDE os valores comuns dos membros: de democracia; economia baseada em princípios de mercado; livre comércio e sistema multilateral de comércio com regras acordadas e tendo a OMC ao centro; transparência e assunção de responsabilidade por resultados (accountability) no governo e empresas; primado da lei (estado de direito); igualdade de gênero; proteção dos direitos humanos; e sustentabilidade ambiental. Mas a menção aos documentos mais recentes, de 5-6 de outubro de 2021, remete explicitamente a uma adaptação a novos desafios e a prioridades imediatas: “vencer a crise de saúde e socioeconômica causada pela pandemia da Covid–19 e construir uma recuperação verde, inclusiva e resiliente para todos”. Ênfase é colocada no esforço de vacinação e na igualdade de gênero, apoio à COVAX e ao Acordo de Paris, bem como às decisões da COP 26.

Existe um detalhamento sobre as medidas a serem tomadas para melhor cumprir os objetivos prioritários. É significativo que o título da Declaração do Conselho Ministerial de 5 de outubro de 2021 seja “Valores Compartilhados: um Futuro Verde e Inclusivo”. Inclui um apelo por esforços para tornar esta a Década da Ação pelo clima. Inclusive alcançar a meta global de emissões zero de CO2 e outros gases de efeito estufa em 2050, e conter e reverter a perda de biodiversidade e o desflorestamento. 

Vai na mesma linha o conteúdo do documento com que o Conselho da OCDE comemorou o aniversário de 60 anos da fundação da OCDE e apresentou seus propósitos para a próxima década “Trust in Global Cooperation: the vision for the OECD for the next decade (Confiança na Cooperação Global: a visão para a OCDE para a próxima década).

Esses documentos de 2021 não lidam com corrupção diretamente, em tese inexistente se há boa governança no Estado e nas empresas. Há somente uma referência à necessidade de combater comércio ilegal, entre as várias medidas para abertura ao comércio internacional. Mas é impossível ignorar a questão nas relações Brasil-OCDE, dadas as várias notas públicas de “preocupação” com o Brasil, emitidas em 2019 pelo Grupo de Trabalho da OCDE sobre Suborno, que monitora a Convenção da OCDE sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais.

Existe um processo bem estabelecido de monitoramento de como cada país-membro cumpre e obriga o cumprimento da Convenção Antissuborno de 1997 e suas recomendações de 2009. Esse processo tem quatro fases, com relatórios que avaliam os esforços do país em implementar as recomendações específicas do Grupo de Trabalho. Ele inclui uma lista não fechada de 12 passos subsequentes e ações possíveis em caso de implementação inadequada da Convenção por um país. A avaliação da fase 3, no Brasil, foi publicado em outubro de 2014. Para que se tenha ideia do detalhamento e de quanta legislação é examinada, tem 99 páginas, das quais 27 são de recomendações. Tudo isso pode ser verificado em oecd.org, tudo isso é público. A próxima avaliação, a da fase 4,  está prevista para dezembro de 2022.

Públicas também são as notas de julho, de outubro, e de novembro de 2019. A última, após o envio inédito de uma Missão do Grupo de Trabalho Antissuborno a Brasília em 12 e 13 de novembro, e disponível em inglês e português, é grave já no título: “O Brasil deve cessar imediatamente ameaças à independência e à capacidade das autoridades públicas de combater a corrupção”. O tema delas é principalmente a lei de abuso da autoridade e a lei que criou o COAF e sua ampliação, alertando para os riscos de uma definição vaga do que seja abuso de autoridade e para as limitações ao uso de relatórios da Unidade de Inteligência Financeira (ex COAF), da Receita Federal e outros órgãos em investigações criminais, o que prejudicaria a capacidade de detectar e combater corrupção. (oecd.org/corruption/anti-bribery/o-brasil-deve-cessar-imediatamente-as-ameacas-a-independencia-e-a-capacidade-das-autoridades-publicas-para-combater-a-corrupcao.htm)

Quando o Presidente brasileiro Jair Bolsonaro saudou o que ele chamou de “convite da OCDE” como “prova de sucesso da política externa [do Brasl] tão criticada pela mídia” apenas mostrou mais uma vez sua ignorância e mais uma vez, ao distorcer a repercussão de seus comportamentos na arena mundial, expôs o Brasil à chacota internacional. A fanfarronice do Presidente do Brasil deturpa o que foi a proposta da OCDE. Muitos analistas consideraram paradoxal a inclusão do Brasil entre os países que devem iniciar o processo de adesão, dada a má reputação internacional do governo Bolsonaro, sobretudo na agenda ambiental, e dada a advertência formal que a OCDE fez ao Brasil em outubro/novembro de 2019 sobre o risco de retrocesso no combate à corrupção. A explicação que circulou é que a maior parte dos membros da OCDE está convencida de que o Presidente Bolsonaro perderá as eleições de outubro e esperam lidar com um novo Presidente a partir do ano que vem. A ideia é oferecer uma espécie de antídoto contra populismo. Oxalá.