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60 anos este mês
Há 60 anos publiquei um livro. Vendeu bem, uns 20 mil exemplares. Talvez o mais lido de tudo o que já publiquei na vida. “Como planejar nosso desenvolvimento?”, 123 páginas. Pequeno. Nem tão pequeno, que as páginas são compactas e a letra miúda. Vendia nas bancas de jornal. Rendeu-me alguns minutos de celebridade: no noticiário sobre o lançamento, no Galeão, Rio de Janeiro, apareci na coluna social do diário “Última Hora” ou do “Correio da Manhã” – já não lembro – como “planejadora mais bem planejada do Brasil”. Fui ingrata com o colunista, reclamei que tinha colocado uma foto ruim. Rendeu-me uma entrevista com foto de meia página na “Tribuna da Imprensa” do Carlos Lacerda, por boa foto, ou porque a deslumbrada planejadora não se deu conta que era porque o último capítulo do seu livrinho, com o assunto concreto mais relevante naquela data, podia ser esmiuçado e interpretado como contrário ao Plano Trienal 1963-1965, cuja Síntese acabara de ser lançada por Celso Furtado em dezembro de 1962. Do lançamento do Caderno em São Paulo, lembro que foram meu pai e minha mãe. E José Serra, que era líder estudantil.
Mas não foi só isso que rendeu. Uma avaliação do livro foi feita no Instituto de Economia da Universidade de Copenhague quando, em 1978, fiz concurso para professor daquela Universidade. Só agora me dou conta de que “fui um problema”, pois dos 11 candidatos era a única que não era de país escandinavo, e dos 12 escritos que entreguei à banca de avaliação, metade era em português, inclusive o mais importante, a tese de doutorado, cuja 2ª edição fora publicada pela Ed. Ática em 1977, “Desemprego e Subemprego no Brasil”. Tiveram que esperar um dos membros da banca, Göran Ohlin, Professor da Universidade de Uppsala, preparar um resumo do que estava em português. Tudo isso está no Relatório de 78 páginas e anexos em que a banca analisa, um por um, o currículo e as obras dos 11 candidatos.
Claro que não ganhei o posto. Foi muita coragem de quem havia acabado de se mudar para Copenhague e mal falava dinamarquês. Mas me ajudou no emprego que eu já tinha, como pesquisadora no que é hoje “Copenhagen School of Economics and Business Administration”.
Traduzo a avaliação do livrinho pela banca da Universidade de Copenhague, que só foi possível graças a Göran Ohlin (e que, por essas voltas que o mundo dá, veio a ser meu chefe na ONU quase 10 anos depois, e, quando deixou a ONU e voltou para a Suécia, amigo querido até sua morte em 1996):
“O trabalho de Helga Hoffmann se concentra exclusivamente em economia do desenvolvimento, em duas categorias: (1) política econômica e planejamento econômico no Brasil, e (2) descrição e seleção dos chamados indicadores sociais para avaliação do desenvolvimento dos países latino-americanos.
O primeiro trabalho na categoria 1 é um caderno de pouco mais de 100 páginas, “Como Planejar nosso desenvolvimento?” (Hvorledes skal vi planlaegge vor udvikling?), algo menos que metade dedicada ao planejamento em economias mistas, nos países socialistas e nos subdesenvolvidos. A outra metade descreve a história do planejamento no Brasil, que levou ao Plano Trienal 1963-1965, formulado sob a liderança de Celso Furtado. É principalmente histórico e totalmente eclético em suas posições, mas é rico em material político e institucional, e pode ser considerado trabalho imponente (imponerende vaerk) para um autor de 24 anos.”
Os dinamarqueses me pouparam de ter que fazer meu próprio resumo. “Eclético” é rótulo válido para o livrinho, audácia da juventude e coragem da ignorância. E é verdade que contém muitos fatos e muita informação. Não vale mais, 60 anos depois. Algumas de suas expectativas foram invalidadas pelos fatos, até pelas imensas mudanças geopolíticas dessas seis décadas. O planejamento central fracassou, e não foi só no mundo soviético, que já não existe. Um experimento social de 70 anos (1917-1989) mostrou que a “socialização dos meios de produção” não funciona. E com isso perdeu força a ideia que “o estado tudo pode”, de que com “vontade política” se consegue o desenvolvimento de um país. Viu-se que não é nada fácil ter um setor estatal eficiente na economia.
A independência dos países africanos que se deu nos 1960s e 1970s, e depois a globalização, acabou com a ideia de que países podiam ter desenvolvimento autárquico através do protecionismo comercial no modelo de “substituição de importações”. Ao contrário, o “desenvolvimento para fora” teve mais sucesso. O objetivo subjacente de autossuficiência econômica dos nacionalistas radicais nunca foi viável mesmo para os poucos “países baleia”.
A rejeição ao capital estrangeiro está presente de ponta a ponta no livrinho. Até a excelente análise crítica dos Acordos de Trigo Brasil-Estados Unidos aparece ali para atacar “ajuda” estrangeira. Em 1958 estudantes universitários haviam feito uma manifestação em frente ao BNDE (ainda era BNDE, sem S) gritando “Go home Bob Fields”. Acho que estive lá. O que escrevi sobre capital estrangeiro em 1962 chega a ser paranoico, colocou economistas liberais mais conhecidos, que criticavam a intervenção do estado na produção industrial, como “submissos a interesses estrangeiros”. Guerra fria no auge? Ou ignorância sobre o que eles argumentavam? Fato é que, no mundo todo, os ataques ao capital estrangeiro transitaram gradativamente para esforços em atrair capital estrangeiro para os países subdesenvolvidos. Acompanhei essa mudança nas discussões da Assembleia Geral da ONU e vi como foi se criando um arcabouço de regulação internacional dos movimentos de capital.
E a inflação? Das teorias de então a gente consegue enxergar vestígios entre os que acham que é possível combater a inflação sem se preocupar com o efeito de estímulos à demanda. Ainda prevalecia em 1962, até onde chegava minha informação, a teoria estruturalista da inflação difundida pela CEPAL, segundo a qual a alta de preços era provocada por “gargalos na produção”, e prometia que os preços cairiam uma vez que o investimento resultasse em aumento da produção. Para combater a inflação, o remédio defendido era mais investimento. Sem o recurso retórico de renomear alguns gastos como investimento. Deu no que deu, e é inacreditável que ainda reapareçam vestígios dessas ideias depois de tudo o que aprendemos sobre a inflação nas várias tentativas de conter o aumento de preços.
A gente ainda escrevia a mão, ou em máquina de escrever mecânica – que máquina de escrever elétrica eu só tive nos 1970s. Então vale registrar que se completou recentemente a digitalização dos “Cadernos do Povo”, disponível em https://desacato.info/cadernos-do-povo-brasileiro-colecao-completa/, um site com “ares de revolucionário”. Só que o que está certo é a avaliação da banca de 1978 na Universidade de Copenhague: serve aos historiadores. Ou talvez para verificar quantos dos problemas brasileiros persistem. Não dá para comemorar sem crítica, sem tentar entender porque ainda há gente enredada e atolada em ideias dos anos cinquenta invalidadas nas décadas seguintes.
Os “Cadernos do Povo” chegaram a 24 (mais 4 títulos extra, um sem pergunta e 3 volumes do “Violão de Rua”), a maioria publicados em 1963. Todos os 24 têm no título uma interrogação. Pretendiam explicar ao grande público leigo as grandes questões que mobilizavam o país: golpe, greves, inflação, crescimento baixo, reforma agrária, comércio desigual, e questões mais teóricas e gerais como revolução, socialismo, imperialismo, a Constituição, grupos de pressão, nacionalismo.
Não li nenhum dos Cadernos, estava mais ocupada em ganhar meu pão de cada dia. Nem o meu próprio reli, depois que foi publicado. Só agora, sessenta anos depois, dei uma olhada. Mas sei que são reflexo de um dos momentos históricos de imensa turbulência no Brasil. Nunca esqueci uma frase atribuída na ocasião a San Tiago Dantas, Ministro da Fazenda de João Goulart no auge da efervescência política: “mais uma vez a revolução brasileira derrapou por excesso de velocidade”. Moderado dentro da “esquerda”, em sentido muito amplo, o Ministro de Goulart defendia em 1963 reformas no âmbito da Constituição vigente.
Outra anedota que se conta sobre o clima do momento é a do editor Ênio Silveira andando pela Largo da Carioca, no centro do Rio, quando perguntou a um dos engraxates regulares na praça: “E então?! O comunismo vem aí?” E a resposta: “Pode deixá, seu dotô. Quando chegar nóis avacalha êle.” Se non è vero è bene trovato. Não tínhamos de modo geral a menor noção, naquele ano, de quanto estava polarizado o ambiente político. E sessenta anos depois só posso lamentar que algumas teses que os fatos não sustentam continuem defendidas. Como é que não viram o tempo passar? Como é que não viram o mundo mudar?
Escrevi o Caderno do Povo no. 14, “Como planejar nosso desenvolvimento?”, em 1962. Saiu a público em março de 1963. Um ano depois, o golpe militar (a rigor, golpe civil militar). Mas não foi o que me rendeu ser convocada, pela imprensa, a depor no Inquérito Policial Militar do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros do Ministério da Educação e Cultura). Militares brasileiros gostavam de planejamento, gostavam de intervenção do estado na economia. E eram nacionalistas. Mesmo se esquecido o sinal de interrogação do título, o livrinho não tinha nada de “revolucionário”. Cabe na rubrica “nacional desenvolvimentismo”, e acho que nos grupos da esquerda daqueles tempos sempre fui classificada (ou xingada, segundo a intenção do crítico) como “reformista”.
Claro que tive medo durante o interrogatório no inquérito do ISEB, havia alguns uniformizados fazendo perguntas, que não entendi, não tinha a menor noção de que valiam um registro histórico. Do livrinho não perguntaram nada, só lembro que ficaram perguntando das pessoas no ISEB, insistiram no Wanderley Guilherme dos Santos, não sei se porque era ex-colega do curso de Filosofia e presidente do Diretório Acadêmico no meu tempo de Universidade do Brasil, ou se foi pelo Caderno de autoria dele, dos mais polêmicos, “Quem dará o golpe no Brasil?“. Felizmente eu já era do tipo que pouco se interessa pela vida particular das pessoas ao redor, então realmente não sabia nada de atividades que não fossem as públicas. De ninguém. E o caderno de Wanderley eu nem tinha lido. Não era mentira, pois no tempo em que trabalhei no ISEB (de 1962 até o golpe civil-militar de 1964) o que fiz foi assistir palestras e preparar tabelas estatísticas encomendadas e revistas por Gilberto Paim e Ignácio Rangel, e discutir as teses de Paim e Rangel que, no ISEB, trabalharam juntos e eram os economistas no Instituto. Acabei demitida do ISEB, fechado em 31 de março de 1964. Mas foi ali que comecei a aprender economia, que então eu era apenas bacharel em filosofia. (Aliás, com Gilberto Paim mantive contato, levou-me para a EIAP/FGV, já então conquistado pela doutrina liberal e transformado em admirador de Roberto Campos.)
Já no tempo de estudante, antes de ser contratada para o ISEB e funcionária do MEC, eu fui assídua frequentadora das palestras do ISEB. Foram dezenas. Lembro em especial de uma aula de filosofia de Jean-Paul Sartre e Simone Beauvoir, dada no ISEB em 1960. Era meu último ano no curso de filosofia da Universidade do Brasil, já tinha lido “Le deuxième sexe” e tentado ler um enroladíssimo “L’être e le néant”. Do que disseram ali na rua das Palmeiras no. 55 não lembro, só pode ter sido resumo do que já havia aprendido deles na Fenefi, mas percebi que foram recebidos como celebridades, e não entendi por que, tinham um jeitão caipira. Será a memória me traindo? Pois eu já era “seguidora” do livro da Beauvoir e do “Golden Notebook” de Doris Lessing, formada nessas “bíblias” da igualdade. Vai ver já então “eclética”, pois nos chegava uma palestrante cobiçada que nos dava a honra de uma aula de graça, e ela não correspondia à ideia que tinha da “mulher parisiense” símbolo de elegância.
Essa digressão sobre o ISEB é natural: pois se em geral os Cadernos do Povo foram escritos sob inspiração isebiana e vários deles por intelectuais que formavam o ISEB, meu livrinho em particular é um subproduto do meu emprego no ISEB. Quem me levou para lá foi Álvaro Vieira Pinto, fascinante professor de História do Pensamento. Ensinava a gente a pensar, e as ideias não eram apresentadas fora de contexto: lembro que ao estudarmos os primeiros filósofos, do século V a.C., líamos também “La cité grecque”. O professor uma vez me deu a tarefa de traduzir do original a “Dialética do Senhor e do Escravo” de Hegel e discuti-la. Sim, no curso do Prof. Álvaro Vieira Pinto a gente lia no original, que ele lia até os primeiros filósofos em grego e latim. Eu estava entre os melhores alunos (apesar de turbulências extracurriculares várias). E os Cadernos do Povo foram uma ideia levada a cabo em conjunto por Álvaro Vieira Pinto, diretor do ISEB, e Ênio Silveira, diretor da Editora Civilização Brasileira. Ambos essenciais na minha formação, e na minha vida, de maneiras diferentes. E na publicação do meu Caderno. A CEPAL e a decisão de estudar economia vieram depois.
No conjunto, os Cadernos são ricos em provocação, levantam uma imensidão de questões que poderiam ser objeto de teses acadêmicas. Assim, é decepcionante que uma tese de mestrado feita sobre os Cadernos do Povo tenha colocado o foco na questão de gênero, no meu Caderno 14 e no de Maria Augusta Tibiriçá Miranda, uma médica autora do Caderno 11, “Vamos nacionalizar a indústria farmacêutica?”. A mestranda não discutiu os temas dos Cadernos, e sim, o fato de que só havia duas mulheres entre os autores. Na minha vida profissional nunca me detive nem mesmo em registrar se mentores, colegas, chefes ou subordinados eram homem ou mulher, ou estavam em dúvida. Só agora, nessa era identitária, vejo em retrospecto que em sua maioria eram homens, desde o movimento estudantil, e me surpreendi, ao folhear o relatório dinamarquês, que era a única mulher entre os 11 candidatos a professor de economia em 1978 em Copenhague. Tenho certeza de que não foi por ser mulher que não fui aprovada. Nunca fui discriminada.
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2 comentários:
Fico muio orgulhosa de ter esse pedacinho de "autobiografia" no blog de Paulo Roberto de Almeida, a quem respeito muitíssimo. Concordo com ele em muita coisa, mas às vezes discordo, ainda que seja mais no tom do que na essência.
O planejamento indicativo francês, iniciado por De Gaulle, durante seu primeiro período no governo francês (1946-48), continua existindo, assim como o chinês, que se tornou mais indicativo do que determinante.
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