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terça-feira, 28 de março de 2023

Desertores não são todos covardes: há os que protestam contra o absurdo das guerras - John Tagliabue (New York Times)

Bélgica homenageia desertores da Primeira Guerra Mundial 
Monumentos sobre a Grande Guerra são comuns na flamenga Ypres. 
Mas só agora os soldados mortos por recusarem combater têm o seu. 
John Tagliabue, New York Times, em Ypres, Bélgica, 07/12/2008

 Noventa anos após seu fim, a Primeira Guerra Mundial ainda paira sobre essa pequena cidade flamenga, ponto central do massacre ocorrido durante a Grande Guerra, como a chamavam as pessoas, crentes de que aquele seria o último combate de proporções mundiais. Monumentos aos mortos pela guerra brotaram como cogumelos após o cessar-fogo. Mas demorou cerca de 85 anos para se erguer um monumento a um grupo diferente de mortos: soldados executados pelos próprios aliados por terem se recusado a continuar o combate. A oito quilômetros de Ypres, em um tranqüilo pátio no vilarejo de Poperinge, está localizado um poste parecido com aqueles usados para apoiar vinhas de lúpulo, uma cultura comum por aqui. Tem mais ou menos a altura de um homem. Logo atrás dele fica uma placa de aço onde vemos gravado um verso de Rudyard Kipling: "Eu não podia olhar para a morte, mas, como se sabe, homens me levaram para ela, com os olhos vendados e sozinho". 
 Foto: Jock Fistick/The New York Times Monumento aos desertores da Primeira Guerra Mundial no local em que eles eram executados na vila de Popering, na Bélgica, em 28 de novembro. Atrás, uma placa com versos dos 'Epitáfios da Guerra' de Rudyard Kipling. (Foto: Jock Fistick/The New York Times) 

 À medida que a aparente guerra sem fim se arrastava, deserções e revoltas de tropas se tornavam um problema cada vez maior. Para combatê-lo, comandantes começaram a amarrar desertores e soldados rebeldes em postes como esse, onde seriam executados por um pelotão de fuzilamento. Os britânicos atiraram em 320 homens, e os franceses, em mais de 700. Os alemães, contraditoriamente, atiraram em cerca de 50. Em uma das duas celas próximas ao monumento de Poperinge, onde soldados foram amarrados antes da execução, que ocorria pela manhã, visitantes hoje chegam para relembrar não só atos heróicos da guerra, mas também seus horrores. Em uma tarde fria há poucos dias, um pedaço de papel jazia sobre uma cama de madeira onde os homens passavam a última noite. 
Assinado por T.T.S., o bilhete, rabiscado em inglês, era um dos muitos que foram deixados aqui. "Vocês sempre serão lembrados", dizia o bilhete, "Vocês nos deixaram orgulhosos." Com a proximidade do centésimo aniversário da guerra, o monumento de Poperinge marca uma grande mudança na atitude recente de países europeus que sofreram as maiores perdas humanas, relembrando não somente os mortos em combate, mas também aqueles que enfrentaram um pelotão de fuzilamento por protestar, por se recusar a lutar, ou por fugir da frente de batalha. Em Ypres, essa mudança de atitude levou curadores a mudar inteiramente a forma como o museu de guerra local apresenta o conflito, salientando a desumanidade da guerra em vez dos vencedores e dos derrotados. Na Grã-Bretanha, essa mudança levou em 2006 ao perdão póstumo do parlamento aos desertores, após a construção em 2001 de um monumento aos mortos pelo pelotão de fuzilamento. Na França, essa mudança de mentalidade levou o presidente Nicolas Sarkozy a reconhecer em público este ano que os executados também mereciam compaixão – essa foi a primeira vez que um presidente francês fez algo do tipo. 
 No Dia do Armistício em Fort Douaumont, leste da França, onde centenas de milhares de alemães e soldados franceses morreram, Sarkozy disse que os executados "não eram desonrados nem covardes", mas que tinham ido "até o limite extremo de suas forças". No entanto, não houve nenhum perdão em seguida, afirmou mais tarde um porta-voz da presidência. "Foi uma das questões mais difíceis acerca de toda a discussão sobre as execuções", afirmou Jurgen van Lerberghe, membro do conselho municipal que ajudou a promover o monumento de Poperinge. "É algo que não podemos esconder. Não houve somente feitos heróicos." Questionado se o monumento teria sido possível há uma geração, Van Lerberghe disse: "Se você enxerga isso como uma pergunta, o que a guerra pode fazer com as pessoas, teria havido uma discussão difícil". De fato, visões antigas ainda permanecem. "Veteranos da Segunda Guerra Mundial têm problemas com isso", comentou Luc Dehaene, 57 anos e prefeito de Ypress há 11, em relação à mudança de atitude. O museu de guerra daqui, localizado no imenso Cloth Hall, um mercado do século 14 que foi literalmente achatado durante a guerra por um tronco onde ficava sua enorme torre com um relógio, já não é mais chamado de Ypres Salient Museum. Agora, é o In Flanders Fields Museum, intitulado assim em memória do famoso poema e seu do autor, Tenente-Coronel John McRae, além de seus colegas soldados poetas, muitos dos quais morreram na guerra, mas não sem antes denunciar sua desumanidade. 
 Foto: Jock Fistick/The New York Times Visitante no In Flanders Fields Museum, na cidade belga de Ypres, assiste a filme com imagem da execução de um desertor. (Foto: Jock Fistick/The New York Times) 

 "É claro que militarmente e diplomaticamente houve vencedores e perdedores", disse Dominiek Dendooven, historiador de guerra do museu. "Mas o museu tem de lidar com o fato de que nessa guerra, com seus dez milhões de mortos, será que se pode dizer: 'Eles venceram e eles foram derrotados?'" O museu agora tem uma ala dedicada aos desertores, que nasceu de uma série de conferências, com participantes de Grã-Bretanha, França e Alemanha, que incluía familiares dos soldados executados. "Além da injustiça, a maioria deles foi morta para dar o exemplo", disse Dendooven. "Era uma forma de coerção mental", concluiu o historiador. Hoje, cerca de 400 mil visitantes, muitos deles crianças em idade escolar, são atraídos por Ypres a cada ano, o dobro do número de visitantes de dez anos atrás. André de Bruin, 63 anos, sul-africano e guia de passeios nos campos de batalha, disse que a informação disponível na internet permite às pessoas encontrarem parentes que lutaram ou morreram aqui. "De repente, eles se dão conta: "Tio Bertie lutou em Passchendaele'", disse ele, referindo-se à cidade hoje conhecida na língua holandesa moderna, mais simplificada, como Passendale, onde lutas violentas aconteceram. O caso judicial amplamente divulgado do soldado raso Harry Farr, continuou ele, um soldado britânico que sofria de um distúrbio mental causado por experiência violenta em guerra e que foi executado por covardia em 1916, também levantou interesse sobre a guerra. "Em nossa opinião, houve somente perdedores nessa guerra", afirmou Dehaene. "Nossa mensagem é muito simples: veja o que aconteceu aqui. Não é ingenuidade. Sabemos o que podemos e o que não podemos fazer. Sabemos, então, que temos de fazer nosso apelo".

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