Sobre as joias contrabandeadas e retidas
(mas quantos presentes mais passaram incólumes em comitivas presidenciais?):
A submissão ao poder, de qualquer cor política, sempre foi um traço forte na cultura da corporação diplomática, tida como uma das de melhor qualidade na burocracia estatal do Brasil. Mas não se pense que outras corporações de Estado, a da Receita Federal por exemplo, sejam imunes à proverbial sujeição do funcionário à “autoridade”.
Certas características “feudais” sobrevivem à margem da legislação republicana: a famosa expressão orwelliana, segundo a qual “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”, se aplica de forma bem mais disseminada do que o imaginado e o esperado em corporações estatais que, obviamente, são formadas por humanos, com todos os seus vícios, paixões e, sobretudo, ambições.
Tudo isso para, finalmente, perguntar o seguinte: o que deu no Itamaraty, para tentar uma “carteirada” manifestamente ilegal, e contrária à legislação, mas feita em caráter institucional, em direção da Receita Federal, para atender a um pedido do já agonizante presidente decrépito e contraventor da lei até a raiz dos cabelos?
Por isso, volto à constatação inicial: foi a cultura da submissão ao poder, qualquer que seja ele, em qualquer tempo.
No final do segundo mandato do agora presidente em terceiro mandato, embaixadores se prestaram submissivamente a atender aos pedidos do presidente que deixava o cargo no sentido de enviar garrafas de vinho de boa qualidade para abastecer a adega de um famoso sítio em Atibaia, que também recebeu muitos “presentes” e que depois tiveram de ser retornados ao acervo presidencial por ordem judicial.
Presentes trocados por ocasião de visitas e viagens de cúpula deveriam ser objeto de rigoroso controle do cerimonial diplomático e dos órgãos de registro dos bens públicos.
Posso apostar como a tal cultura da submissão deforma os procedimentos seguidos nessas ocasiões.
A falta de transparência em determinadas corporações estatais — a dos militares em primeiro lugar — alimenta uma onda de irregularidades, e de possíveis e prováveis malversações, muito mais ampla do que os poucos casos revelados ocasionalmente pela imprensa.
Mais um sintoma dos males nefastos do patrimonialismo que caracteriza de modo secular a formação da cultura social luso-brasileira. Foi uma das primeiras deformações culturais da construção da nacionalidade portuguesa, deve ser a última a ser extirpada da psique brasileira.
O Itamaraty não ficou imune a essa enfermidade, como de resto praticamente todas as demais corporações de Estado, mesmo aquelas integradas por mandarins da melhor qualidade intelectual.
Por essa, e por outras razões, sempre me insurgi contra uma obediência cega ao famoso moto da corporação diplomática — esta retirada da cultura militar — que reza que o diplomata deve obedecer aos princípios da “hierarquia e disciplina”. Talvez, mas sem o excesso de zelo que possa incorrer, justamente, na indesejável cultura da submissão ao poder.
Como diria Lord Acton, numa das frases mais citadas do seu legado intelectual, “o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente”. Resistir disciplinadamente a ações contrárias à lei, independentemente da hierarquia na qual se encontra um membro da corporação, deveria ser a regra sem exceção. Sabemos que nem sempre é assim.
Conclusão: o Itamaraty escorregou feio nessa questão das jóias milionárias do contraventor presidencial. Infelizmente prevaleceu a cultura da submissão. Esperando que ela não subsista na presente administração, assina esta nota um modesto membro da corporação diplomática.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5/03/2023
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