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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

A crise diplomática escalou - Revista Será?

 Revista Será

Um oásis da inteligência!

A crise diplomática escalou

Auschwitz by Randon Winner

Auschwitz by Randon Winner

O presidente Lula da Silva deu um belo presente a Benjamin Netanyahu quando comparou os crimes de guerra cometidos por Israel na Faixa de Gaza ao Holocausto do nazismo, que implementou uma diabólica estratégia de eliminação do povo judeu. Em mais uma incontinência verbal, Lula enfiou o dedo na dolorosa e sensível ferida dos judeus, mundo afora, com avós e pais que foram vítimas do extermínio do Holocausto. O governo de Israel aproveitou para despertar a indignação dos judeus com a infeliz comparação do presidente brasileiro, exigindo a retratação e, num gesto nada diplomático, tentou humilhar o embaixador brasileiro no Museu do Holocausto e declarou Lula “persona non grata”. Como Lula não se retratou e, tudo indica que não o fará, o governo israelense escalou a crise diplomática com manifestações grosseiras e inadequadas sobre o Brasil que, segundo Mauro Vieira, Ministro do Itamarati, constituem uma “vergonhosa página da diplomacia de Israel”. 

Se a escalada da crise diplomática é muito ruim para o Brasil e para Israel, tensionando as relações entre as duas nações, a troca de agressões parece interessar aos dois chefes de governo: Netanyahu está explorando a impertinência de Lula para vitimizar-se e para sobrevalorizar o incidente como sinal de antissemitismo, procurando  fortalecer-se no mundo judaico e no Estado de Israel. E Lula espera, com seu discurso, mesmo que para isso não tenha sido pensado nem calculado, ganhar evidência como o paladino mundial da defesa dos palestinos. Entretanto, o resultado pode ser muito diferente das expectativas dos dois governantes. A contundência da fala de Lula está tendo repercussão mundial, que pode intensificar o movimento global de crítica aos crimes de guerra que o governo de Israel está cometendo. Por outro lado, mesmo que ganhe prestígio nos movimentos sociais anti-imperialistas, Lula se isola no mosaico geral de Estados, distanciando-se do mundo ocidental e de importantes parceiros internacionais. Pretendendo liderar o chamado “Sul-Global”, seja lá o que isso signifique, Lula pode reforçar a polarização mundial, e jogar o Brasil no polo liderado pela grande potência que é a China. Na verdade, o presidente brasileiro já abandonou a neutralidade desde que demonstrou simpatia com a Rússia, para dizer o menos, na sua invasão da Ucrânia.

sexta-feira, 24 de março de 2023

Helga Hoffmann: seu mais famoso livro, 60 anos atrás: Como planejar nosso desenvolvimento?

Revista Será: https://revistasera.info/2023/03/60-anos-este-mes/  

60 anos este mês

Jean Paul Sartre em palestra no ISEB

Jean Paul Sartre em palestra no ISEB

Há 60 anos publiquei um livro. Vendeu bem, uns 20 mil exemplares. Talvez o mais lido de tudo o que já publiquei na vida. “Como planejar nosso desenvolvimento?”, 123 páginas. Pequeno. Nem tão pequeno, que as páginas são compactas e a letra miúda. Vendia nas bancas de jornal. Rendeu-me alguns minutos de celebridade: no noticiário sobre o lançamento, no Galeão, Rio de Janeiro, apareci na coluna social do diário “Última Hora” ou do “Correio da Manhã” – já não lembro – como “planejadora mais bem planejada do Brasil”. Fui ingrata com o colunista, reclamei que tinha colocado uma foto ruim. Rendeu-me uma entrevista com foto de meia página na “Tribuna da Imprensa” do Carlos Lacerda, por boa foto, ou porque a deslumbrada planejadora não se deu conta que era porque o último capítulo do seu livrinho, com o assunto concreto mais relevante naquela data, podia ser esmiuçado e interpretado como contrário ao Plano Trienal 1963-1965, cuja Síntese acabara de ser lançada por Celso Furtado em dezembro de 1962. Do lançamento do Caderno em São Paulo, lembro que foram meu pai e minha mãe. E José Serra, que era líder estudantil. 

Mas não foi só isso que rendeu. Uma avaliação do livro foi feita no Instituto de Economia da Universidade de Copenhague quando, em 1978, fiz concurso para professor daquela Universidade. Só agora me dou conta de que “fui um problema”, pois dos 11 candidatos era a única que não era de país escandinavo, e dos 12 escritos que entreguei à banca de avaliação, metade era em português, inclusive o mais importante, a tese de doutorado, cuja 2ª edição fora publicada pela Ed. Ática em 1977, “Desemprego e Subemprego no Brasil”. Tiveram que esperar um dos membros da banca, Göran Ohlin, Professor da Universidade de Uppsala, preparar um resumo do que estava em português. Tudo isso está no Relatório de 78 páginas e anexos em que a banca analisa, um por um, o currículo e as obras dos 11 candidatos.

Claro que não ganhei o posto. Foi muita coragem de quem havia acabado de se mudar para Copenhague e mal falava dinamarquês. Mas me ajudou no emprego que eu já tinha, como pesquisadora no que é hoje “Copenhagen School of Economics and Business Administration”.

Traduzo a avaliação do livrinho pela banca da Universidade de Copenhague, que só foi possível graças a Göran Ohlin (e que, por essas voltas que o mundo dá, veio a ser meu chefe na ONU quase 10 anos depois, e, quando deixou a ONU e voltou para a Suécia, amigo querido até sua morte em 1996): 

“O trabalho de Helga Hoffmann se concentra exclusivamente em economia do desenvolvimento, em duas categorias: (1) política econômica e planejamento econômico no Brasil, e (2) descrição e seleção dos chamados indicadores sociais para avaliação do desenvolvimento dos países latino-americanos.

O primeiro trabalho na categoria 1 é um caderno de pouco mais de 100 páginas, “Como Planejar nosso desenvolvimento?” (Hvorledes skal vi planlaegge vor udvikling?), algo menos que metade dedicada ao planejamento em economias mistas, nos países socialistas e nos subdesenvolvidos. A outra metade descreve a história do planejamento no Brasil, que levou ao Plano Trienal 1963-1965, formulado sob a liderança de Celso Furtado. É principalmente histórico e totalmente eclético em suas posições, mas é rico em material político e institucional, e pode ser considerado trabalho imponente (imponerende vaerk) para um autor de 24 anos.”

Os dinamarqueses me pouparam de ter que fazer meu próprio resumo. “Eclético” é rótulo válido para o livrinho, audácia da juventude e coragem da ignorância. E é verdade que contém muitos fatos e muita informação. Não vale mais, 60 anos depois. Algumas de suas expectativas foram invalidadas pelos fatos, até pelas imensas mudanças geopolíticas dessas seis décadas. O planejamento central fracassou, e não foi só no mundo soviético, que já não existe. Um experimento social de 70 anos (1917-1989) mostrou que a “socialização dos meios de produção” não funciona. E com isso perdeu força a ideia que “o estado tudo pode”, de que com “vontade política” se consegue o desenvolvimento de um país. Viu-se que não é nada fácil ter um setor estatal eficiente na economia.

A independência dos países africanos que se deu nos 1960s e 1970s, e depois a globalização, acabou com a ideia de que países podiam ter desenvolvimento autárquico através do protecionismo comercial no modelo de “substituição de importações”. Ao contrário, o “desenvolvimento para fora” teve mais sucesso. O objetivo subjacente de autossuficiência econômica dos nacionalistas radicais nunca foi viável mesmo para os poucos “países baleia”.

A rejeição ao capital estrangeiro está presente de ponta a ponta no livrinho. Até a excelente análise crítica dos Acordos de Trigo Brasil-Estados Unidos aparece ali para atacar “ajuda” estrangeira. Em 1958 estudantes universitários haviam feito uma manifestação em frente ao BNDE (ainda era BNDE, sem S) gritando “Go home Bob Fields”. Acho que estive lá. O que escrevi sobre capital estrangeiro em 1962 chega a ser paranoico, colocou economistas liberais mais conhecidos, que criticavam a intervenção do estado na produção industrial, como “submissos a interesses estrangeiros”. Guerra fria no auge? Ou ignorância sobre o que eles argumentavam? Fato é que, no mundo todo, os ataques ao capital estrangeiro transitaram gradativamente para esforços em atrair capital estrangeiro para os países subdesenvolvidos. Acompanhei essa mudança nas discussões da Assembleia Geral da ONU e vi como foi se criando um arcabouço de regulação internacional dos movimentos de capital.

E a inflação? Das teorias de então a gente consegue enxergar vestígios entre os que acham que é possível combater a inflação sem se preocupar com o efeito de estímulos à demanda. Ainda prevalecia em 1962, até onde chegava minha informação, a teoria estruturalista da inflação difundida pela CEPAL, segundo a qual a alta de preços era provocada por “gargalos na produção”, e prometia que os preços cairiam uma vez que o investimento resultasse em aumento da produção. Para combater a inflação, o remédio defendido era mais investimento. Sem o recurso retórico de renomear alguns gastos como investimento. Deu no que deu, e é inacreditável que ainda reapareçam vestígios dessas ideias depois de tudo o que aprendemos sobre a inflação nas várias tentativas de conter o aumento de preços.

A gente ainda escrevia a mão, ou em máquina de escrever mecânica – que máquina de escrever elétrica eu só tive nos 1970s. Então vale registrar que se completou recentemente a digitalização dos “Cadernos do Povo”, disponível em https://desacato.info/cadernos-do-povo-brasileiro-colecao-completa/, um site com “ares de revolucionário”. Só que o que está certo é a avaliação da banca de 1978 na Universidade de Copenhague: serve aos historiadores. Ou talvez para verificar quantos dos problemas brasileiros persistem. Não dá para comemorar sem crítica, sem tentar entender porque ainda há gente enredada e atolada em ideias dos anos cinquenta invalidadas nas décadas seguintes.

Os “Cadernos do Povo” chegaram a 24 (mais 4 títulos extra, um sem pergunta e 3 volumes do “Violão de Rua”), a maioria publicados em 1963. Todos os 24 têm no título uma interrogação. Pretendiam explicar ao grande público leigo as grandes questões que mobilizavam o país: golpe, greves, inflação, crescimento baixo, reforma agrária, comércio desigual, e questões mais teóricas e gerais como revolução, socialismo, imperialismo, a Constituição, grupos de pressão, nacionalismo.

Não li nenhum dos Cadernos, estava mais ocupada em ganhar meu pão de cada dia. Nem o meu próprio reli, depois que foi publicado. Só agora, sessenta anos depois, dei uma olhada. Mas sei que são reflexo de um dos momentos históricos de imensa turbulência no Brasil. Nunca esqueci uma frase atribuída na ocasião a San Tiago Dantas, Ministro da Fazenda de João Goulart no auge da efervescência política: “mais uma vez a revolução brasileira derrapou por excesso de velocidade”. Moderado dentro da “esquerda”, em sentido muito amplo, o Ministro de Goulart defendia em 1963 reformas no âmbito da Constituição vigente.

Outra anedota que se conta sobre o clima do momento é a do editor Ênio Silveira andando pela Largo da Carioca, no centro do Rio, quando perguntou a um dos engraxates regulares na praça: “E então?! O comunismo vem aí?” E a resposta: “Pode deixá, seu dotô. Quando chegar nóis avacalha êle.” Se non è vero è bene trovato. Não tínhamos de modo geral a menor noção, naquele ano, de quanto estava polarizado o ambiente político. E sessenta anos depois só posso lamentar que algumas teses que os fatos não sustentam continuem defendidas. Como é que não viram o tempo passar? Como é que não viram o mundo mudar?

Escrevi o Caderno do Povo no. 14, “Como planejar nosso desenvolvimento?”, em 1962. Saiu a público em março de 1963. Um ano depois, o golpe militar (a rigor, golpe civil militar). Mas não foi o que me rendeu ser convocada, pela imprensa, a depor no Inquérito Policial Militar do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros do Ministério da Educação e Cultura). Militares brasileiros gostavam de planejamento, gostavam de intervenção do estado na economia. E eram nacionalistas. Mesmo se esquecido o sinal de interrogação do título, o livrinho não tinha nada de “revolucionário”. Cabe na rubrica “nacional desenvolvimentismo”, e acho que nos grupos da esquerda daqueles tempos sempre fui classificada (ou xingada, segundo a intenção do crítico) como “reformista”.

Claro que tive medo durante o interrogatório no inquérito do ISEB, havia alguns uniformizados fazendo perguntas, que não entendi, não tinha a menor noção de que valiam um registro histórico. Do livrinho não perguntaram nada, só lembro que ficaram perguntando das pessoas no ISEB, insistiram no Wanderley Guilherme dos Santos, não sei se porque era ex-colega do curso de Filosofia e presidente do Diretório Acadêmico no meu tempo de Universidade do Brasil, ou se foi pelo Caderno de autoria dele, dos mais polêmicos, “Quem dará o golpe no Brasil?“. Felizmente eu já era do tipo que pouco se interessa pela vida particular das pessoas ao redor, então realmente não sabia nada de atividades que não fossem as públicas. De ninguém. E o caderno de Wanderley eu nem tinha lido. Não era mentira, pois no tempo em que trabalhei no ISEB (de 1962 até o golpe civil-militar de 1964) o que fiz foi assistir palestras e preparar tabelas estatísticas encomendadas e revistas por Gilberto Paim e Ignácio Rangel, e discutir as teses de Paim e Rangel que, no ISEB, trabalharam juntos e eram os economistas no Instituto. Acabei demitida do ISEB, fechado em 31 de março de 1964. Mas foi ali que comecei a aprender economia, que então eu era apenas bacharel em filosofia. (Aliás, com Gilberto Paim mantive contato, levou-me para a EIAP/FGV, já então conquistado pela doutrina liberal e transformado em admirador de Roberto Campos.)

Já no tempo de estudante, antes de ser contratada para o ISEB e funcionária do MEC, eu fui assídua frequentadora das palestras do ISEB. Foram dezenas. Lembro em especial de uma aula de filosofia de Jean-Paul Sartre e Simone Beauvoir, dada no ISEB em 1960. Era meu último ano no curso de filosofia da Universidade do Brasil, já tinha lido “Le deuxième sexe” e tentado ler um enroladíssimo “L’être e le néant”. Do que disseram ali na rua das Palmeiras no. 55 não lembro, só pode ter sido resumo do que já havia aprendido deles na Fenefi, mas percebi que foram recebidos como celebridades, e não entendi por que, tinham um jeitão caipira. Será a memória me traindo? Pois eu já era “seguidora” do livro da Beauvoir e do “Golden Notebook” de Doris Lessing, formada nessas “bíblias” da igualdade. Vai ver já então “eclética”, pois nos chegava uma palestrante cobiçada que nos dava a honra de uma aula de graça, e ela não correspondia à ideia que tinha da “mulher parisiense” símbolo de elegância.

Essa digressão sobre o ISEB é natural: pois se em geral os Cadernos do Povo foram escritos sob inspiração isebiana e vários deles por intelectuais que formavam o ISEB, meu livrinho em particular é um subproduto do meu emprego no ISEB. Quem me levou para lá foi Álvaro Vieira Pinto, fascinante professor de História do Pensamento. Ensinava a gente a pensar, e as ideias não eram apresentadas fora de contexto: lembro que ao estudarmos os primeiros filósofos, do século V a.C., líamos também “La cité grecque”. O professor uma vez me deu a tarefa de traduzir do original a “Dialética do Senhor e do Escravo” de Hegel e discuti-la. Sim, no curso do Prof. Álvaro Vieira Pinto a gente lia no original, que ele lia até os primeiros filósofos em grego e latim. Eu estava entre os melhores alunos (apesar de turbulências extracurriculares várias). E os Cadernos do Povo foram uma ideia levada a cabo em conjunto por Álvaro Vieira Pinto, diretor do ISEB, e Ênio Silveira, diretor da Editora Civilização Brasileira. Ambos essenciais na minha formação, e na minha vida, de maneiras diferentes. E na publicação do meu Caderno. A CEPAL e a decisão de estudar economia vieram depois. 

No conjunto, os Cadernos são ricos em provocação, levantam uma imensidão de questões que poderiam ser objeto de teses acadêmicas. Assim, é decepcionante que uma tese de mestrado feita sobre os Cadernos do Povo tenha colocado o foco na questão de gênero, no meu Caderno 14 e no de Maria Augusta Tibiriçá Miranda, uma médica autora do Caderno 11, “Vamos nacionalizar a indústria farmacêutica?”. A mestranda não discutiu os temas dos Cadernos, e sim, o fato de que só havia duas mulheres entre os autores. Na minha vida profissional nunca me detive nem mesmo em registrar se mentores, colegas, chefes ou subordinados eram homem ou mulher, ou estavam em dúvida. Só agora, nessa era identitária, vejo em retrospecto que em sua maioria eram homens, desde o movimento estudantil, e me surpreendi, ao folhear o relatório dinamarquês, que era a única mulher entre os 11 candidatos a professor de economia em 1978 em Copenhague. Tenho certeza de que não foi por ser mulher que não fui aprovada. Nunca fui discriminada. 


Revista Será: https://revistasera.info/2023/03/60-anos-este-mes/ 


sexta-feira, 21 de outubro de 2022

O Fascismo sai do Armário - Paulo Gustavo (Revista Será)

O Fascismo sai do Armário

Paulo Gustavo 

Revista Será, out 21, 2022 

 

Um perfil de uma rede social postou recentemente a seguinte frase: “Ninguém imaginava que dentro do armário tinha mais fascistas do que gays”. A tirada vem a propósito. A ascensão de um extremista como Bolsonaro fez de fato o armário se abrir. Com isso, nossa jovem e precária democracia dá um sofrido soluço. 

O cientista político alemão Yascha Mounk, em seu livro “O povo contra a democracia”, foi profético neste seu conselho: “Bolsonaro é o adversário mais poderoso que a democracia brasileira enfrenta em meio século, e seus partidários são cidadãos que, como você, terão que compartilhar o país por uma década ou até um século. Não o subestime e não menospreze essas pessoas […] Você poderá voltar à luta por taxas de impostos mais justas ou debater os limites do Estado de bem-estar social depois que esse perigo iminente tiver sido afastado. Por ora, é preciso união […]”.

As palavras de Mounk formam uma boa síntese: união, a despeito das diferenças políticas, e foco condizente à situação, que agora se sabe não é nada passageira, que é, ao contrário,  de coexistência com o já onipresente adversário. Essa coexistência exigirá dos verdadeiros democratas uma permanente vigilância. Dispensável dizer (mas uma boa redundância por vezes vale a pena) que os fascistas não estão apenas nos três poderes da República, eles estão a seu lado: são vizinhos, colegas, jovens, maduros, idosos, artistas, cientistas, acadêmicos, pessoas ditas “de bem”, ressentidos em geral, autoritários simpáticos e até envernizados pelo saber: enfim, gente como a gente.

Há quem ache o termo “fascista” pesado. Bem, leve é que não é. Seu uso como xingamento não diz outra coisa. Mas seu uso adequado não muda muito a carga negativa que carrega para sempre. Pouco ou nada propondo e muito reagindo, em especial à modernidade, o fascismo, para falar como e com o Umberto Eco do ensaio “O fascismo eterno”, tem uma permanente suspeita em relação ao mundo intelectual e uma “terrível” acusação ao mundo liberal, a saber: o abandono por este dos valores tradicionais. Não por acaso, brota entre fascistas a flor vigorosa de uma imensa hipocrisia.

O termo é pesado, mas leves e levianas são “as ações pelas ações”, como diz Eco. De nossa parte, acrescentamos: “leveza” hoje potencializada pelo fluxo sem consciência crítica das redes sociais. Daí a exacerbação da mentira. Daí, ao revés, a busca frenética pelas “verdades eternas” que só a religião promete, aliás não poucas vezes tem se falado no bolsonarismo como uma espécie de seita. Seita, como bom neofascismo, liberticida. Portanto, é preciso estarmos atentos às palavras e para onde e para quem se dirigem: o que sobra em agressividade, falta em crítica e racionalidade. Não por acaso, como lembra Eco, “Todos os textos nazistas ou fascistas se baseavam em um léxico pobre, em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico”.

Além de liberticida e autoritário, o fascismo explora o rancor na política, e Mussolini  foi o primeiro a compreender isso, como bem observa o narrador de “M, o filho do século”, o primeiro volume do monumental romance histórico do italiano Antonio Scurati. Se Mussolini não foi o primeiro, foi um dos mais importantes. No Brasil de hoje, o arauto do rancor chama-se Bolsonaro. Sim, é ele indubitavelmente o maestro a arrancar de boa parte da população o ritmado ódio a fantasmas que supúnhamos desfeitos e pretéritos. Do rancor à violência, eis o passo que resvala para a barbárie e o terrorismo. Nada impede que a violência atual, ainda desorganizada politicamente, degenere em violência institucionalizada, até para “reparar” o líder eventualmente destituído de lugar de poder.

A saída do armário é faca de duas lâminas: de um lado, ela corta explicitamente o laço democrático e constitucional que rege a sociedade; de outro, delimita, por assim dizer, um campo político novo no Brasil, obrigando-nos a ver o que estava incubado ou pelo menos mitigado por certa visão otimista, senão mítica, do próprio País. Como quer que seja, será preciso coexistir à altura e fazer da lucidez, em meio à irracionalidade que irriga o iliberalismo, uma prática cotidiana.

Para jogar esse jogo, será preciso contermos nossas próprias emoções, e isso é algo que leva tempo. Será preciso demonstrar incansavelmente — ressalte-se — que nossa visão pode ser kantianamente edificada como um imperativo categórico que salva a humanidade e que a visão bolsonarista, caso alçada a uma máxima universal, seria o fim da democracia e do Estado de Direito. Oxalá o armário fique vazio e que se possa apontar os extremistas como quem são: extremistas. Extremistas e totalitários.

 

CONSELHO EDITORIAL

Sérgio C. Buarque - Editor Chefe
João Rego
Clemente Rosas
Ivanildo Sampaio