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sábado, 23 de novembro de 2024

Camões, 500 Anos - Paulo Gustavo (Revista Será? - enviado por Mauricio David)

Camões, 500 Anos

Postado por Paulo Gustavo | 

Revista Será?, nov 22, 2024      


Camões

 

Camões entra cedo em nossas vidas pela mão invisível e onipresente da cultura. De minha parte, tive o privilégio de ter sido aluno, no Colégio de Aplicação da UFPE, de um dos grandes  estudiosos do poeta no Brasil: refiro-me ao admirável e saudoso mestre Rubem Franca, um enlouquecido de Camões, que, com apenas treze anos de idade, já lera e praticamente decorara “Os Lusíadas”, possuidor que era de impressionante memória e aguda inteligência, passando a levar, dentro de si, como um órgão vital, a epopeia camoniana. Essa paixão continuaria vida afora, dividida com a medicina e o magistério de História e Geografia. Suas aulas, nas quais por vezes recitava o poeta, eram de fato mágicas, e sua devoção ao gênio português, um fervor quase religioso. 

No entanto, esse “meu Camões”, tão logo encontrado, por algum tempo submergiu, só emergindo anos depois. Mas Camões algum submerge ou naufraga, até porque, como reza a sua legendária biografia, ao certa vez escapar de um naufrágio, ele teria nadado com um só braço, com o outro salvando o manuscrito do seu poema épico. Uma cruel ironia: salvar do mar um poema embebido de mar. 

Mario Quintana (1906–1994), numa obra-prima de síntese, nos legou este extraordinário poema: “Camões, / Seu nome retorcido como um búzio. / Nele sopra Netuno”. Naturalmente, Quintana refere-se ao Camões de “Os Lusíadas”, que, com sua epopeia em dez cantos, escrita em 8.816 decassílabos, confunde-se com o esplendor da nação portuguesa à época das Grandes Navegações. Com efeito, como assinala Joaquim Nabuco, em famoso ensaio, “‘Os Lusíadas’ são, como obra de arte, o poema da pátria, a memória de um povo”. Todavia, há que se fazer uma necessária distinção, como bem pondera o poeta e ensaísta luso-brasileiro José Rodrigues de Paiva, pois equivocadamente alçaram Camões a um patamar político: “[…] ideologias de Estado, felizmente agora já ultrapassadas, apodaram Camões de ‘o poeta da raça’, ‘o poeta do Império’. Fizeram dele, então, o poeta ‘oficial’ que ele nunca foi” (“Celebrando Camões” 2. ed. Recife: UFPE; Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano, 2016).

Além do marítimo e épico, há um outro Camões tão gigantesco quanto  o seu Adamastor e tão vivo quanto aquele de sua enciclopédica epopeia. É o Camões lírico: o dos sonetos, o das odes, o das elegias, o das sextinas, o das redondilhas. É o Camões que navega pelo amor, “fogo que arde sem se ver”, e de versos como: “Busque, Amor, novas artes, novo engenho / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / pois mal me tirará o que não tenho […] Que dias há que na alma me tem posto / um não sei quê, que nasce não sei onde, / vem não sei como, e dói não sei porquê”.  

Ao leitor contemporâneo, será interessante saber que esse Camões lírico escreveu versos que foram, originalmente, apreciados como música! É o que nos informa Maria de Lourdes Saraiva, organizadora da “Lírica Completa” do poeta (Cf. Vila da Maia: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1980): “É bom ter presente que muitas vezes os versos (e é esse especialmente o caso das redondilhas) foram escritos não para serem lidos, mas para serem ouvidos, e até para serem cantados […] Os valores que presidiam a essa mensagem musical e poética — ritmo, argúcia, malícia, sátira, ambiguidade, alusão a factos, pessoas e situações, agravo, doçura, melancolia, protesto, tudo se perde com o emudecimento da música a cujo som era cantada”. Ainda assim, com tantas perdas, quanta riqueza e quanto encantamento!

No Brasil, tanto o Camões lírico quanto o épico jamais deixaram de estar presentes.  São inúmeros os autores que o amaram ou foram por ele influenciados. É o que nos prova, de forma cabal, a obra “Camões e a poesia brasileira” (Rio de Janeiro: Departamento de Assuntos Culturais/MEC: UFF: Fundação Casa de Rui Barbosa), de Gilberto Mendonça Teles (1931–). Nessa exaustiva pesquisa, o crítico goiano ainda aborda o que chamou de “mito camoniano”, mostrando-nos como Camões vive em nossa cultura popular, em nossas sátiras, em nosso humorismo.

É do livro de Gilberto Mendonça Teles que pinço uma estrofe de curioso soneto em homenagem a Camões. Curioso porque escrito com versos de 19 sílabas! A autoria é do pernambucano Austro-Costa (1899-1953). Diz ela: “Camões: teu gênio, que enche o Universo, tal qual teu nome que, alto, ressoa / de boca em boca, de peito em peito — símbolo e orgulho de tua Raça — / se um te fez triste, pois te fez poeta — guerreiro e poeta — soldado em Goa, / e outro se libra, através dos tempos, aos céus da Glória cheia de Graça!”.

A despeito desse nome que “alto ressoa, de boca em boca, de peito em peito”, o Camões que vemos em esculturas e pinturas não passa de uma ficção, pois nunca foi retratado. Seu rosto é uma invenção do Romantismo, conquanto se saiba que ele, de fato, perdera um olho. Faltando-nos a sua efígie (uma imperdoável lacuna do destino), é de se pensar que tão imenso poeta não poderia ficar sem uma face. Criaram-na.  E ganhou vida. Tem algo de poético esse destino póstumo, tem algo de profunda homenagem coletiva o soerguimento desse rosto. Viva Camões! 

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

O Fascismo sai do Armário - Paulo Gustavo (Revista Será)

O Fascismo sai do Armário

Paulo Gustavo 

Revista Será, out 21, 2022 

 

Um perfil de uma rede social postou recentemente a seguinte frase: “Ninguém imaginava que dentro do armário tinha mais fascistas do que gays”. A tirada vem a propósito. A ascensão de um extremista como Bolsonaro fez de fato o armário se abrir. Com isso, nossa jovem e precária democracia dá um sofrido soluço. 

O cientista político alemão Yascha Mounk, em seu livro “O povo contra a democracia”, foi profético neste seu conselho: “Bolsonaro é o adversário mais poderoso que a democracia brasileira enfrenta em meio século, e seus partidários são cidadãos que, como você, terão que compartilhar o país por uma década ou até um século. Não o subestime e não menospreze essas pessoas […] Você poderá voltar à luta por taxas de impostos mais justas ou debater os limites do Estado de bem-estar social depois que esse perigo iminente tiver sido afastado. Por ora, é preciso união […]”.

As palavras de Mounk formam uma boa síntese: união, a despeito das diferenças políticas, e foco condizente à situação, que agora se sabe não é nada passageira, que é, ao contrário,  de coexistência com o já onipresente adversário. Essa coexistência exigirá dos verdadeiros democratas uma permanente vigilância. Dispensável dizer (mas uma boa redundância por vezes vale a pena) que os fascistas não estão apenas nos três poderes da República, eles estão a seu lado: são vizinhos, colegas, jovens, maduros, idosos, artistas, cientistas, acadêmicos, pessoas ditas “de bem”, ressentidos em geral, autoritários simpáticos e até envernizados pelo saber: enfim, gente como a gente.

Há quem ache o termo “fascista” pesado. Bem, leve é que não é. Seu uso como xingamento não diz outra coisa. Mas seu uso adequado não muda muito a carga negativa que carrega para sempre. Pouco ou nada propondo e muito reagindo, em especial à modernidade, o fascismo, para falar como e com o Umberto Eco do ensaio “O fascismo eterno”, tem uma permanente suspeita em relação ao mundo intelectual e uma “terrível” acusação ao mundo liberal, a saber: o abandono por este dos valores tradicionais. Não por acaso, brota entre fascistas a flor vigorosa de uma imensa hipocrisia.

O termo é pesado, mas leves e levianas são “as ações pelas ações”, como diz Eco. De nossa parte, acrescentamos: “leveza” hoje potencializada pelo fluxo sem consciência crítica das redes sociais. Daí a exacerbação da mentira. Daí, ao revés, a busca frenética pelas “verdades eternas” que só a religião promete, aliás não poucas vezes tem se falado no bolsonarismo como uma espécie de seita. Seita, como bom neofascismo, liberticida. Portanto, é preciso estarmos atentos às palavras e para onde e para quem se dirigem: o que sobra em agressividade, falta em crítica e racionalidade. Não por acaso, como lembra Eco, “Todos os textos nazistas ou fascistas se baseavam em um léxico pobre, em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico”.

Além de liberticida e autoritário, o fascismo explora o rancor na política, e Mussolini  foi o primeiro a compreender isso, como bem observa o narrador de “M, o filho do século”, o primeiro volume do monumental romance histórico do italiano Antonio Scurati. Se Mussolini não foi o primeiro, foi um dos mais importantes. No Brasil de hoje, o arauto do rancor chama-se Bolsonaro. Sim, é ele indubitavelmente o maestro a arrancar de boa parte da população o ritmado ódio a fantasmas que supúnhamos desfeitos e pretéritos. Do rancor à violência, eis o passo que resvala para a barbárie e o terrorismo. Nada impede que a violência atual, ainda desorganizada politicamente, degenere em violência institucionalizada, até para “reparar” o líder eventualmente destituído de lugar de poder.

A saída do armário é faca de duas lâminas: de um lado, ela corta explicitamente o laço democrático e constitucional que rege a sociedade; de outro, delimita, por assim dizer, um campo político novo no Brasil, obrigando-nos a ver o que estava incubado ou pelo menos mitigado por certa visão otimista, senão mítica, do próprio País. Como quer que seja, será preciso coexistir à altura e fazer da lucidez, em meio à irracionalidade que irriga o iliberalismo, uma prática cotidiana.

Para jogar esse jogo, será preciso contermos nossas próprias emoções, e isso é algo que leva tempo. Será preciso demonstrar incansavelmente — ressalte-se — que nossa visão pode ser kantianamente edificada como um imperativo categórico que salva a humanidade e que a visão bolsonarista, caso alçada a uma máxima universal, seria o fim da democracia e do Estado de Direito. Oxalá o armário fique vazio e que se possa apontar os extremistas como quem são: extremistas. Extremistas e totalitários.

 

CONSELHO EDITORIAL

Sérgio C. Buarque - Editor Chefe
João Rego
Clemente Rosas
Ivanildo Sampaio