Livro revela laços diplomáticos entre Brasil e União Soviética durante a ditadura
Lourival Sant'Anna
O Estado de S. Paulo, 14 de julho de 2021 | 14h35
A União Soviética pressionou em 1964 o recém-instalado regime militar a não abrigar no Brasil um governo cubano no exílio, de oposição a Fidel Castro. A revelação está no novo livro do diplomata brasileiro Henri Carrières, “A gestão de Vasco Leitão da Cunha no Itamaraty e a Política Externa Brasileira”, que reúne, em dois volumes, 170 documentos do período entre 1964 e 1965, muitos deles originalmente sigilosos.
Na insólita data de 30 de dezembro de 1964, o diplomata Celso Diniz, chefe da Divisão de Europa Oriental no Itamaraty, foi convidado para um almoço na embaixada soviética.
De acordo com memorando secreto assinado por Diniz, o embaixador da URSS no Brasil, Andrei Fomin, “declarou-se seriamente preocupado com as especulações ultimamente veiculadas pela imprensa brasileira sobre a possibilidade de constituição de um governo cubano no exílio, com sede no Brasil”.
Fomin advertiu que “tal iniciativa seria certamente interpretada como uma agressão ao campo socialista, com gravíssimas repercussões internacionais”.
Se isso se concretizasse, “os países socialistas poderiam ver-se compelidos, por força do princípio de solidariedade, a interromper suas relações com os países que viessem a apoiar tal governo no exílio, e mesmo a tomar outras medidas mais sérias, em retaliação”.
O chanceler Leitão da Cunha havia se reunido em 17/12/1964, em Washington, com o ex-presidente cubano Carlos Prío Socarrás, que “exortou o Brasil a reconhecer um governo cubano no exílio”. Socarrás foi deposto em 1952 por Fulgencio Baptista, por sua vez derrubado pela Revolução Cubana em 1.º de janeiro de 1959. Leitão da Cunha conhecia bem Cuba: ele era embaixador em Havana na época da revolução, pela qual manifestou simpatia, inicialmente. E chegou a desenvolver certa proximidade com Fidel Castro.
Em entrevista publicada em 2/3/1965 pelo jornal mexicano La Prensa, Leitão da Cunha declarou, a propósito do possível reconhecimento de um governo de exilados cubanos, que “estudaria a solicitação com o critério de um governo revolucionário, que lutou contra o comunismo no Brasil e tem reafirmado sua posição contrária à permanência do comunismo em nosso continente”.
Duas semanas depois, em entrevista ao Jornal do Brasil, o escritor Rubem Braga criticou o chanceler pela “dúbia complacência com que ele encara a possibilidade de se instalar no Brasil um governo cubano de exílio”.
Durante a reunião, antes de fazer a advertência, “o embaixador Fomin se referiu à Revolução brasileira de 31 de março, reafirmando tratar-se de problema exclusivamente brasileiro e que seu país, como tem feito até aqui, se absterá de intervir, sob qualquer forma ou pretexto, no processo político brasileiro, esforçando-se, ao contrário, para melhorar e aperfeiçoar suas relações com o Brasil, em todos os terrenos”.
O golpe militar teve como objetivo declarado evitar que o Brasil sucumbisse ao comunismo e se tornasse mais um satélite da União Soviética, a exemplo do que havia acontecido com Cuba. Entretanto, o governo brasileiro demonstrou preocupação em não romper com a chamada Cortina de Ferro.
Mais que isso, houve uma decepção gradual com a falta de engajamento dos Estados Unidos nas questões latino-americanas, enquanto a Guerra do Vietnã consumia as energias das políticas externa e de defesa americana. “A realidade do relacionamento não se mostrou à altura das expectativas do governo brasileiro”, observa Carrières.
Em 1965, o presidente Humberto Castello Branco chamou de volta ao Brasil o embaixador em Washington, Juracy Magalhães, político experiente e muito alinhado com o governo. Acomodou-o por breve período no Ministério da Justiça e, em seguida, no Itamaraty. Para compensar Leitão da Cunha, de quem gostava pessoalmente, Castello Branco ofereceu-lhe a Embaixada em Washington. Além de ser uma figura de grande prestígio, Leitão da Cunha tinha boas relações com a equipe do presidente americano, Lyndon Johnson.
Ou seja, Leitão da Cunha e Magalhães fizeram um roque. Ambos acreditavam na necessidade de estreitar relações com os Estados Unidos, analisa Carrières, formado em história pela Universidade Federal Fluminense, com parte da graduação cursada na Universidade Paris VII, e hoje servindo justamente na embaixada do Brasil em Washington.
Ao mesmo tempo, numa amostra da dupla estratégia da política externa da época, Magalhães foi um entusiasta da viagem a Moscou do então ministro Roberto Campos, ícone do pensamento liberal e avô do atual presidente do Banco Central.
Em 11/9/1965, Magalhães disse ao presidente Castello Branco, no Palácio das Laranjeiras: “A missão do ministro do Planejamento em Moscou será, por certo, muito proveitosa. Tanto, talvez, quanto a missão Fulbright, que veio introduzir elementos novos na dinamização das nossas relações com os EUA”.
No auge da Guerra Fria, mesmo tendo maior convergência com os Estados Unidos, o regime militar não deixou de cuidar de seus interesses na relação com a superpotência soviética. E vice-versa: a URSS também cultivou o relacionamento com o Brasil.
A versão em PDF do livro está disponível gratuitamente nesse link: http://funag.gov.br/biblioteca-nova/produto/37-1151-1
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