“Você é um diplomata propenso aos acidentes!”
Minha trajetória diferenciada na diplomacia do Brasil (e, talvez, uma história sincera do Itamaraty)
“Você é um diplomata propenso aos acidentes!” (ou dito em inglês: “You are an accident-prone diplomat!”, o que me deixou sorrindo, pois que concordei inteiramente com o “diagnóstico”)
Preparando-me atentamente para um depoimento pessoal e formal no quadro do projeto “Memória Diplomática”, patrocinado pela Associação dos Diplomatas Brasileiros, e implementado em cooperação com o Museu da Pessoa (SP), resolvi traçar um roteiro de parte de minha trajetória funcional no Itamaraty (1977-2021), que ocupou a maior parte de meu itinerário pessoal na maturidade, mas não a totalidade de minhas atividades intelectuais ao longo de sete décadas bem vividas, no Brasil e no exterior, dois terços delas na companhia de Carmen Lícia Palazzo, uma mulher excepcional, leitora ainda mais “excessiva” do que eu, muito mais inteligente e sensata do que eu nunca consegui ser, e que me corrigiu e orientou no decorrer de três quartos de século, entre a segunda metade do XX e a terceira década do atual.
Esse roteiro, seguindo meu hábito iniciado nos primeiros anos da carreira diplomática de numerar cada trabalho considerado concluído, numa longa trajetória de materiais escritos e registrados, recebeu o número 5.072, como tal divulgado no meu blog Diplomatizzando em 29/09/2025, recebe agora um título entre aspas que resume, talvez, o sentido de uma vida questionadora e sempre orientada por um método que eu passei a chamar de “contrarianismo bem comportado”, ou seja, certo ceticismo sadio com respeito às crenças arraigadas, às verdades estabelecidas, àquilo que, ao estilo de Bouvard e Pecuchet, de Gustave Flaubert, se poderia chamar de “idées reçues”, segundo um “Dicionário” mais do que centenário.
Uma pergunta, talvez mais importante do que o simples relato factual de minha carreira no Itamaraty, poderia ser feita ao início deste relato: “Você, agora aposentado, se considera, a si mesmo, ter sido um bom diplomata?”
Sem hesitação, eu poderia responder, pelo mesmo princípio pessoal de comportamento acima sinteticamente descrito, “Isso depende!”. “Depende do quê?”, questionaria o questionador.
E eu responderia: “Sim, no estrito limite do cumprimento de meus deveres funcionais, eu fui um bom diplomata: segui instruções (nem sempre) das chefias, desempenhei a contento as missões de informar, representar e negociar (que constitui a “santíssima trindade” da atividade burocrática na diplomacia) e creio ter tido um desempenho mais do que satisfatório durante minha vida ativa no Itamaraty.”
Mas eu poderia também responder: “Não exatamente, pois que, além de seguir exatamente os cânones da carreira naquela santíssima trindade, eu nunca deixei de exercer uma característica própria mantida contra ventos e marés ao longo de todos os 44 anos de exercício funcional de minhas obrigações burocráticas: eu jamais renunciei a pensar com minha própria cabeça a respeito de cada instrução recebida, acerca dos fundamentos empiricos das orientações expedidas e de sua adequação aos interesses nacionais, tal como eu deduzia de meus longos estudos sobre o Brasil e seus principais problemas.”
E por que essa atitude de relativa rebeldia em face das instruções recebidas, poderia questionar novamente o condutor do depoimento?
Eu simplesmente responderia: “Porque confesso que eu nunca aceitei, e jamais me resignei, aos “dogmas sagrados” que, a partir da ditadura militar (talvez até antes), resolveram nos impingir: os da Hierarquia e Disciplina (assim, com letras maiúsculas).
Daí decorreram os incidentes e percalços da metade da carreira ao seu final, que vou relatar com toda a acuidade e sinceridade possíveis.