Sugestão aos Editores, Revista Humanidades, UnB
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília, 7
fevereiro 1987, 3 pp.
revista Humanidades
(Brasília, Ano
IV, nº 14, agosto-outubro 1987, pp. 125-126).
Stephen Jay GOULD:
The
Mismeasure of Man
New York and London: W. W. Norton and
Company, 1981.
Se não estou errado, nenhum livro do geólogo e biólogo
norte-americano Stephen Jay Gould foi ainda traduzido e editado no Brasil, o
que é, a todos os títulos, lamentável. Geólogo de formação, o mais famoso dos "darwinistas"
norte-americanos ensina essa disciplina, além de Biologia e História da Ciência,
na Universidade de Harvard, detendo um currículo já impressionante de publicações.
Os títulos de seus livros são por si sós indicativos de sua preocupação em
ultrapassar a estrita barreira da especialização científica para alcançar um público
mais amplo e diversificado: Ever Since
Darwin, The Panda's Thumb, Hen’s Teeth and Horse’s Toes e, mais
recentemente, The Flamingo Smile. O
livro que agora se sugere aos editores brasileiros foi publicado logo após que
The Panda’s Thumb foi agraciado com o "American Book Award for
Science" de 1981 e dá continuidade aos esforços de Gould em ultrapassar as
fronteiras da historia natural e penetrar nas areias movediças da história
social. Esse tipo de bridge-building,
característico de todos os trabalhos de Gould, e particularmente ressaltado
neste ensaio sobre a "má medida" do homem, ou seja, a tentativa de
classificar os grupos humanos através de pretensos critérios da objetividade
cientifica.
A preocupação em hierarquizar os homens em função de características
ditas "inatas", conformando uma espécie de "racismo
cientifico", parece hoje ter assumido a vestimenta da Sociobiologia, cujos
argumentos são facilmente desmontados por Gould. No passado, o
"determinismo biológico" procurou medir a inteligência através de
dois métodos que atingiram uma certa respeitabilidade em cada época. No século
XIX, os "homens de ciência" desenvolveram a "craniometria",
manipulando medições de cérebros e crâneos humanos apenas para
"provar" que os negros e outros povos primitivos seriam naturalmente
inferiores aos homens brancos. Alguns chegaram mesmo a ver na menor capacidade
craniana da mulher, comparativamente à do homem, a justificativa natural de sua
subordinação social. Já no século XX, o sistema classificatório assume a forma
dos "testes de inteligência", que transformaram as medidas de QI em marketing
de massa. Em ambos os casos, argumenta Gould, assistiu-se à abstração e à
reificação da inteligência humana, transformando-a numa entidade singularmente
individualizada, localizada no cérebro.
A mismeasure,
criticada no livro de Gould, é assim uma prática "científica" de
medição da inteligência humana, através de critérios quantitativos
pretensamente objetivos, e a utilização dos números então obtidos para
classificar e hierarquizar grupos humanos segundo uma escala valorativa,
tendente a "demonstrar" que grupos subalternos – em termos de raça,
classe ou sexo –são inatamente inferiores e merecem o status que tem. Gould
demonstra, por seu lado, a debilidade científica e o contexto claramente político
e social dos argumentos deterministas em biologia, criticando ao mesmo tempo o
mito da Ciência como um empreendimento objetivo. A ciência, nas palavras de
Gould, tem de ser vista e compreendida como um fenômeno social, um
empreendimento humano, e não uma obra de robôs programados para coletar informação
pura.
Ao contrário do que pretende a Sociobiologia, a biologia
moderna provou, em notável refutação ao determinismo biológico, que o estoque genético
é muito pouco diferenciado para todos os grupos humanos. Mas, este é um fato
contingente da evolução natural e não uma verdade a priori ou necessária. Como afirma Gould, o mundo poderia ter
conhecido uma ordem natural diferente: "Suponha, por exemplo, que uma das
muitas espécies do nosso gênero ancestral Australopithecus
tivesse sobrevivido – um cenário perfeitamente razoável teoricamente, já que as
novas espécies emergem a partir da divisão das antigas (com as antecessoras
normalmente sobrevivendo, pelo menos durante algum tempo), não pela transformação
em massa dos ancestrais em seus descendentes. Nós – isto é, o Homo sapiens –
teríamos então de nos defrontar com todos os dilemas morais decorrentes do
relacionamento com espécies humanas de capacidade mental notoriamente inferior.
O que teríamos feito com elas escravidão? extinção? coexistência? trabalho doméstico?
reservas? zoológicos?
Da mesma forma, a nossa própria espécie, Homo sapiens, poderia ter incluído uma serie de subespécies (raças)
com capacidades genéticas compreensivelmente diferentes. Se as espécies humanas
fossem velhas de milhões de anos (algumas são) e se suas raças tivessem estado
geograficamente separadas durante a maior parte desse tempo sem um intercâmbio genético
significativo, então grandes diferenças genéticas se teriam lentamente acumulado
entre os grupos. Mas, o Homo sapiens é velho de várias dezenas de milhares de
anos, ou no máximo de algumas poucas centenas de milhares de anos, e todas as
modernas raças humanas provavelmente se dividiram a partir de um ancestral
comum há apenas algumas dezenas de milhares de anos atrás.
Uns poucos traços significativos de diferenças externas nos
levou ao julgamento subjetivo da existência de grandes diferenças entre elas.
Mas, os biologistas confirmaram recentemente que o conjunto das diferenças genéticas
entre as raças humanas é incrivelmente pequeno. Apesar da frequência para
diferentes estados de um gene diferir entre as raças, nós não encontramos
"genes raciais"—isto é, características fixas em certas raças e
ausentes em todas as outras" (pp.322-3).
A especificidade humana é primordialmente constituída pelo
funcionamento do cérebro e as sociedades humanas mudam por evolução cultural e
não como resultado da alteração biológica. Não há nenhuma evidência de uma
mudança biológica na estrutura ou dimensão do cérebro desde que o Homo sapiens apareceu nos registros fósseis
há cerca de 50 mil anos atrás. Assim, "a evolução biológica (darwiniana)
continua em nossa espécie, mas o seu ritmo, comparado com a evolução cultural,
é tão incomparavelmente lento que o seu impacto na história do Homo sapiens tem sido pequeno"
(324).
A evolução cultural é assim a marca característica dos grupos
humanos, e a transmissão cultural funda um novo tipo de evolução muito mais
efetivo do que o darwiniano. Gould resume: "Os argumentos clássicos do
determinismo biológico são deficientes porque as características que ele invoca
para estabelecer distinções entre os grupos são na verdade o produto da evolução
cultural" (325).
O desmascaramento da Sociobiologia é feito, no livro de Gould,
em tom sereno, próprio a um darwinista tranquilo, em contraste com a atitude
passional, enragée e pouco cientifica
dos sociobiologistas. Trata-se, sem duvida alguma, de um grande mergulho na
história dos preconceitos "científicos" dos últimos dois séculos, uma
leitura, portanto, indispensável a todos aqueles que se interessam por nosso
humilde destino de Homo sapiens.
Paulo
Roberto de Almeida
Departamento
de Sociologia – UnB