O Diplomata Aprendiz
Paulo Roberto de Almeida
Tenho por hábito, como todos sabem, de ler muito, o tempo todo, mas também de copiar e reescrever as boas ideias do que leio, sempre que possivel aplicando-as às minhas próprias necessidades intelectuais. Um dos exemplos dessa prática de “plágio enriquecedor” é a minha série de “clássicos revisitados”, o que já fiz em diversas ocasiões. Uma delas foi a de reescrever o Manifesto Comunista de Marx e Engels aos 150 anos de sua publicação original, em 1998 portanto, adaptando as ideias e propostas ali contidas aos tempos de capitalismo triunfante, o que aliás correspondia inteiramente e fielmente aos propósitos e às intenções de seus dois autores: partir do tremendo sucesso do novo “modo de produção” consolidado na Europa para, a partir dali, construir sua superação em escala universal numa nova sociedade e num novo modo de produção mais eficiente.
Depois disso me “ataquei” a Maquiavel, reescrevendo O Principe, mas com todas as novas caracteristicas conceitualmente inovadoras que o próprio florentino teria introduzido no seu texto renascentista, se ele o tivesse retomado e reescrito 500 anos após a redação original. Ambos textos estão hoje livremente disponiveis em meus canais de interação acadêmica.
Um dos livros de minha área de especialização profissional, as relações internacionais, tem um titulo de nitido sabor aroniano: Os Primeiros Anos do Século: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (2002), refletindo uma das obras póstumas do grande mestre francês da mesma área: Les Dernières Années du Siècle (1983).
Num posfácio que escrevi a um outro livro que publiquei logo em seguida — A Grande Mudança (2003), cujo titulo original era A Grande Transformação, mimetizando a grande obra de Karl Polanyi — copiei deliberadamente a ideia e as palavras do grande Gilberto Freyre, para explicar “como e porque sou e não sou diplomata”, em lugar de “ser ou não ser sociólogo”, o que também sou e não sou.
Pois bem, percorrendo agora o mostruário de uma livraria, deparei-me com uma nova edição, anotada, de um livro de Mario de Andrade, O Turista Aprendiz (1927, 2024), cujo titulo já me tinha inspirado, anos atrás, a escrever algo de titulo similar: O Diplomata Aprendiz, mas que ficou apenas nas intenções durante largos anos.
O espirito que me levou a tentar copiar criativamente esse livrinho do grande poeta da Pauliceia Desvairada (1924) e de Macunaima (recém terminado em 2026), foi o mesmo com o qual elaborei um dos textos mais acessados de minha produção intelectual - Dez Novas Regras de Diplomacia (2001) —, a partir de um original de um colega português do século 19, Luis de la Figanière, Quatro Regras de Diplomacia (1883).
O fato é que eu ainda não elaborei esse “diplomata aprendiz”, assim como não escrevi uma outra obra, Cartas a um Jovem Diplomata”, que se inspira menos no titulo original de Rainer Marie Rilke, que se dirigia a um jovem poeta, ao final da Grande Guerra, e bem mais no contemporâneo Cartas a um Jovem Economista, do sempre irônico e provocador Gustavo Franco.
Como poucos sabem, mas revelo aqui, minha pasta de “Working Files” no computador integra, talvez, muito mais projetos de obras a escrever do que todos os livros que já produzi e publiquei desde 1993, numa época em eu tinha recém passado da era da máquina de escrever, soberana desde os 14 ou 15 anos, até 1988, quando adquiri meu primeiro computador: um MacIntosh usado, pois os novos eram muito caros. Creio ter pago mais de 1.500 dólares, na Suíça, onde estava postado, na Delegação em Genebra, trabalhando sob as ordens do embaixador Rubens Ricupero, aquisição logo complementada pela compra de um disco rigido externo, já que tudo no Mac - sistema operacional, software de escrita e arquivos produzidos - tinha de caber num floppy disk de 700 kbytes.
Minha produtividade aumentou enormemente desde então — não só pelas facilidades de correção, sempre trabalhosa num papel de máquina de datilografia, mas também pelo copy and paste —, mas nunca cheguei a empreender efetivamente esse livro quase autobiográfico “O Diplomata Aprendiz”, o que pretenderia tentar fazer nos próximos meses.
É verdade que já escrevi algo parecido, mas que se inspirava numa frase, uma acusação, de fato, do embaixador Rubens Barbosa, com quem trabalhei diversas vezes e com quem ainda colaboro: “Você é um accident-prone diplomat”, o que corresponde inteiramente a meu espirito contrarianista na carreira, sempre exibindo um ceticismo sadio em relação às “idées reçues” (uma sugestão inspirada em Gustave Flaubert) da diplomacia do Itamaraty, dogmaticamente aferrado a dois principios da vida militar: hierarquia e disciplina, o que nunca acatei para mim mesmo ao longo de meu itinerário acidental no exercício da carreira.
Tudo o que posso prometer, neste momento, é o ato de colocar mais este projeto na minha pasta de Working Files, e de tentar terminá-lo em breve oportunidade (inclusive porque muitos já me cobraram essa “dívida” para com os mais jovens ou simples curiosos: colocar no papel, ou digitalmente, todas as peripécias, lições e aprendizados de uma vida já razoavelmente longa de lides acadêmicas (em primeiro e constante lugar) e de atividades diplomáticas, nas quais também aprendi e me diverti muito.
Meu amigo Sergio Florencio, que é um verdadeiro diplomata - e não um contrarianista como eu - e que já escreveu parte de suas memórias (no livro Diplomacia, Revolução e Afetos, de Vila Isabel a Teerã), me chama de “Ombudsman do Itamaraty, o que não tenho certeza de ser (pois nunca consegui corrigir qualquer coisa naquele ambiente austero que os mais velhos chamam respeitosamente de Casa e que os mais aguerridos, os “jovens turcos”, querem revolucionar institucionalmente).
Em todo caso sempre fui, na academia e na diplomacia, um espirito critico das “idées reçues” predominantes nesses ambientes, e assim quero transmitir aos mais jovens (os mais velhos são sempre incorrigíveis) um pouco da minha experiência de vida, de estudos, de trabalho, de observações retiradas de muitas viagens e de muita leitura. Aguardem, pois, “O Diplomata Aprendiz”, já um pouco defasado no titulo e atrasado na cronologia; mas sempre é tempo de aprender alguma coisa nova, o que sempre faço em leituras constantes e nesse vicio insanável da escrita.
São Paulo, 15/10/2024