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sábado, 16 de agosto de 2025

Familia Mann: cultura e tragédia - Jurandy Valença (revista Humboldt, do Instituto Goethe)

Thomas Mann

TRAGÉDIAS FAMILIARES
A dinastia intelectual dos Mann
Jurandy Valença
Revista Humboldt (Instituto Goethe)

Traduzidas para mais de 40 idiomas e com milhões de exemplares vendidos, as obras do escritor alemão Thomas Mann são até hoje matéria-prima de diversos estudos e teses. É também incontornável a onipresença do patriarca na vida de seus filhos. Reconhecidos em suas respectivas trajetórias, eles escaparam, cada um a seu modo, da sombra do pai.

Nascido em Lübeck, Alemanha, em 1875, Thomas Mann se exilou nos Estados Unidos após a ascensão do nazismo em 1933 e só retornou à Europa em 1952, tendo vivido na Suíça até sua morte, em 1955. No exílio, converteu-se em cidadão estadunidense (em 1944) e foi um engajado ativista contra o regime fascista. Mann teve um papel importante enquanto esteve no desterro. Os Aliados providenciaram para que uma série de cartas suas fossem lidas no rádio. Eram 25 textos desancando Hitler e pedindo que a Alemanha voltasse à democracia – da qual Mann nem sempre havia sido um defensor. Esses discursos no rádio (Ouvintes alemães!) eram direcionados à população alemã e clamavam sem pudor à resistência contra o nazismo.

Em 1930, Thomas Mann publicou Mário e o mágico, uma das primeiras obras da literatura mundial a abordar (e preconizar) a ascensão, nos anos seguintes, dos regimes totalitários, sobretudo em sua terra natal. Como comenta o pesquisador brasileiro Marcus Mazzari [no posfácio A hipnose do nazismo, publicado na edição de Mário e o mágico, Companhia das Letras, 2023], “o fenômeno do fascismo, que parece não se limitar às catástrofes do século 20, encontrou na obra de Thomas Mann uma das representações literárias mais expressivas e multifacetadas”.
Descendentes influentes
Não há como escrever sobre o escritor sem falar sobre sua família, que se tornou uma espécie de dinastia intelectual ao longo das décadas – sua influência reverberou não só na Alemanha, mas no mundo todo. De origem privilegiada, o autor cresceu em uma abastada família de comerciantes. Em 1905, Thomas Mann se casou com Katia Pringsheim, física e matemática proveniente de uma rica família judaica, que se tornaria Katharina Hedwig Mann.

Tiveram seis filhos, vários dos quais seguiram carreiras de sucesso, principalmente Erika (1905-1969) e Klaus Mann (1906-1949). A primeira foi atriz, escritora, dramaturga, jornalista e produtora de teatro, tendo fundado em 1933 o cabaré político antifascista Die Pfeffermühle (O moinho de pimenta, em tradução literal).
Mephisto nas telas
Klaus, o segundo filho, também escritor, fugiu para o exílio na Holanda em 1933 a fim de escapar da perseguição política do regime nacional-socialista. Em Amsterdã, exerceu seu ativismo escrevendo para a revista Die Sammlung, na qual atacava o nazismo. Ele deixou várias obras, mas uma em especial teve grande repercussão: Mephisto (1936), publicada quando estava exilado e que teve adaptação para o cinema em 1981 pelo cineasta húngaro István Szabó (no ano seguinte, ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro).

O romance – baseado no mito de Fausto e Mefistófeles – tem como protagonista Hendrik Höfgen (inspirado na vida do famoso ator alemão Gustaf Gründgens, que foi casado com Erika, irmã de Klaus). Vale lembrar que Mefistófeles é a representação do diabo, enquanto Fausto simboliza um estudioso que busca conhecimento e faz um pacto com o demônio para alcançar seus objetivos.

Depois de uma longa luta contra a depressão e o vício em cocaína, heroína e morfina, Klaus cometeu suicídio em 1949 em Cannes, na França, ao tomar uma overdose de soníferos (Thomas não foi ao funeral). Aliás, a família Mann enfrentou diversos problemas de saúde mental, tendo o seu filho mais novo, o músico Michael Mann, se matado em 1977.
Ana em Veneza
Thomas Mann era filho de uma brasileira. Julia da Silva Bruhns (apelidada de Dodô) nasceu em 1851, em Paraty (RJ), filha do alemão naturalizado brasileiro Johann Ludwig Hermann Bruhns, um fazendeiro que tinha propriedades no Rio de Janeiro e em Santos (SP); e de Maria Luísa da Silva, brasileira de ascendência indígena e portuguesa (que morreu quando Julia tinha apenas cinco anos).

Seu pai, após a morte da esposa, retornou para a Alemanha com os filhos junto da babá negra Ana, personagem do livro Ana em Veneza (1994), do escritor brasileiro João Silvério Trevisan. Julia deixou a infância dourada e tropical ainda criança e foi para Lübeck, onde seu pai tinha parentes. Foi lá que, aos 17 anos, se casou com o futuro senador Johann Heinrich Mann, com quem teve cinco filhos, entre eles o célebre Thomas Mann.
Rede de conflitos
Segundo pesquisadores, Julia foi inspiração para diversas obras do filho. Ainda assim, o diplomata carioca André Chermont de Lima afirma no texto Thomas Mann e o Brasil: uma relação incompleta, publicado em 2021 pelo jornal O Estado de São Paulo, que os alemães tratavam com esnobismo o papel da cultura brasileira na formação da família Mann.

Além de Thomas, Julia teve Carla, Júlia, Viktor e Heinrich, este último também escritor e famoso por suas críticas à sociedade alemã. Em um dos livros de Heinrich Mann, Entre as raças (1907), a personagem brasileira tem nítida inspiração na mãe (precisamente nas memórias escritas por ela em 1903, Lembranças da infância de Dodô, que é uma das únicas fontes disponíveis sobre a vida da matriarca no Brasil).

Carla, aos 28 anos, cometeu suicídio tomando cianeto. Uma tragédia que reverberou muito tanto na vida de Julia quanto na de Thomas. A psicanalista e socióloga Marianne Krull, em Im Netz der Zauberer. Eine andere Geschichte der Familie Mann (Na teia dos magos. Uma outra história da família Mann, em tradução livre), apresenta o retrato de uma família nada exemplar, enredada em uma série de adultérios, assassinatos, brigas, ciúmes, drogas, homossexualidade, incesto, inveja e suicídios.
Questões sociais e políticas
Para os especialistas em sua obra, é inegável que Thomas Mann faz uso de vários dispositivos literários que conduzem o interesse do leitor para as circunstâncias de estrangeiro de seus personagens. Neles, o autor depositava suas angústias, dramas interiores e inquietações por intermédio de uma aguçada análise social, atrelando-os a temas filosóficos.

Enquanto leitores, não há, porém, como evitar o alumbramento de mergulhar com tempo em obras como a monumental tetralogia José e seus irmãos, que teve a Bíblia como inspiração para o escritor. Ela está no panteão e vem no lastro de grandes escritores do século 19, como Honoré de Balzac, Charles Dickens, Fiódor Dostoiévski, Michel Proust e Émile Zola, cujas obras abarcavam questões sociais e políticas. Para eles, como o próprio Mann afirma, “a moral é, sem dúvida, a maior questão da vida”. A nós, resta decifrar suas alusões e, tal como ele, nos reconhecer como estrangeiros nessa odisseia.

Este texto foi originalmente publicado pela Revista Cult e gentilmente cedido à Revista Humboldt para publicação em versão editada.

Jurandy Valença
Jurandy Valença é curador, jornalista e gestor cultural. Foi diretor da Biblioteca Mário de Andrade (2021-2025) e ocupou diversos cargos nas Secretaria de Cultura do estado e do município de São Paulo.
Copyright: Texto: Goethe-Institut, Revista Cult, Jurandy Valença.

sexta-feira, 21 de março de 2025

O regime militar brasileiro: entrevista com o historiador Marcos Napolitano - Ana Paula Orlandi (Revista Humboldt)

Pós-colonialismo 

CULTURA DA LEMBRANÇA 

"No Brasil, temos a sensação de falta de memória"

Entrevista com o historiador Marcos Napolitano
Revista Humboldt, Instituto Goethe
Março 2025
Quando se fala do regime militar no Brasil (1964-1985), qual é a memória hoje dominante? 


Acho que ainda vivemos a hegemonia de uma memória que mistura a memória de esquerda (construída, sobretudo, por comunistas e nacionalistas de esquerda) e a memória liberal (construída ao longo dos anos 1970, por conta do afastamento político dos liberais em relação à fase mais repressiva do regime). Ela se funda na ideia de uma "resistência democrática" ecumênica e da "sociedade vítima" da ditadura. Eu a chamo de "memória hegemônica", por estar presente na mídia, nas artes, no sistema escolar e nos movimentos sociais, por exemplo. Mas, nos últimos dez anos, esta memória vem sofrendo um forte revisionismo. 

Para a esquerda, incluindo aí alguns historiadores, há exagero em ver a "democracia" como eixo universal de todas as resistências e em enxergar a sociedade como "vítima", dado o grande apoio à ditadura, sobretudo nas elites e na classe média. Para a direita, a ditadura foi "branda" e só merece esse nome durante a vigência do AI-5. Para a "extrema direita" foi boa, popular e seu único pecado foi ter sido "branda", permitindo a esquerda sobreviver no sistema político e na sociedade. Este último revisionismo ainda não tem legitimidade no debate público, mas tem crescido na sociedade, sobretudo nas redes sociais. 

Esses grupos que pedem a volta da ditadura e da intervenção militar no Brasil foram vistos, inclusive, nas manifestações pró-impeachment da presidente Dilma Rousseff, a partir de 2015.

Como disse, trata-se de uma memória nostálgica da ditadura, como um tempo de abundância e segurança pública. A primeira deve ser relativizada, pois a concentração de renda só piorou, e a última não se sustenta nos fatos, mas, enfim, a memória não precisa ter compromisso efetivo com a realidade passada. Aliás, esta é a diferença entre memória e história. Em minha opinião, esta memória está ligada à cultura autoritária e ao conservadorismo de boa parte da sociedade brasileira, que permaneceram vivos mesmo com o fim do regime militar, ainda que invisíveis, em bolsões com pouca penetração no sistema cultural e na mídia mais sofisticada.  

O Brasil preocupa-se de maneira menos intensa com a questão da preservação da memória do que outros países da América do Sul, como Argentina, Chile e Uruguai, por exemplo?

Não, pois há um debate público e acadêmico sobre o tema no país, além de uma profusão de memoriais, políticas de arquivo muito interessantes, monumentos, entre outras iniciativas. O que ocorre é que tanto a cultura da memória recente (entendida como a memória sobre a ditadura), como a memória histórica no conjunto da sociedade brasileira tem lugares e papéis diferentes, e também mais dispersos, em relação aos países da América do Sul, formando assim identidades menos orgânicas, incoerentes e desconexas. Por exemplo: não é incomum a pessoa ser "contra a ditadura" e ao mesmo tempo achar que "direitos humanos só defendem bandidos", o que, no contexto atual, representa a mescla incoerente de valores de esquerda e de direita. 

Por isso temos a sensação de uma "falta de memória" no Brasil. No caso do regime militar, há um conjunto de memórias desencontradas, em conflito: a) uma memória das esquerdas (intelectuais, movimentos, sindicatos); b) uma memória dos liberais (muito forte na imprensa, em algumas entidades civis e no sistema político);  c) uma memória militar institucional, tratada por eles próprios como "tabu" (ou seja, "melhor esquecer e não falar sobre isso"); d) uma memória da direita e extrema direita, que até pouco tempo não tinha lugar no espaço público, mas que sempre foi forte nas redes sociais, e agora ocupa lugar até na mídia liberal e no sistema político-partidário. 

Qual foi, afinal, o papel da grande imprensa em relação ao golpe de 1964? 

A grande imprensa tem um papel ambíguo em relação à memória do golpe e do regime. É notória, assumida e comprovada a participação direta da imprensa liberal na conspiração e na queda de João Goulart. Mas também é notório, embora menos conhecido, o afastamento seletivo da imprensa liberal em relação ao regime, sobretudo após o AI-5, em 1968. Mesmo antes disso, alguns jornais que tinham apoiado o golpe, passaram a criticar a ditadura, a exemplo do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, muito importante à época. Ao se afastar do regime, mesmo sem nenhuma simpatia pela esquerda armada ou desarmada, a imprensa ajudou a construir uma memória crítica, sobretudo condenando a censura e a violação aos direitos humanos, sem falar na crítica ao estatismo na economia a partir do governo Geisel, em meados dos anos 1970. 

Mas, a rigor, ela nunca fez uma autocrítica “para valer”, em relação ao Golpe de 1964. A culpa pela eclosão deste evento no país sempre foi atribuída à esquerda trabalhista, "corrupta, subversiva e incompetente". Quanto ao registro das violências de Estado, não se pode atribuir à imprensa omissão em relação a isso, pois ela sempre noticiou casos de tortura, prisões arbitrárias e assassinatos extrajudiciais de militantes e lideranças sociais. A questão da impunidade nada tem a ver com "esquecimento" ou "falta de registro". Foi uma opção política e jurídica das elites brasileiras, com aval passivo de parte das esquerdas anistiadas, em nome da estabilidade política pós-regime militar.   

Qual é o papel do cinema e de outras ferramentas culturais na representação do passado no Brasil?

O cinema brasileiro é um dos principais vetores de memória sobre a ditadura, por exemplo. Em sua maioria, os filmes de ficção estão mais alinhados à chamada "memória hegemônica". Nos filmes, via de regra, os militares são "maus", os guerrilheiros são "jovens idealistas", mas frequentemente também são "ingênuos" ou "radicais", a imprensa é "heroica" e a sociedade e o cidadão comum são "vítimas inocentes". Claro, há nuances, mas no geral a tendência é esta. 

Nos documentários, o painel da época é mais complexo. Mas dado o revisionismo conservador que predomina no Brasil atual, não duvido que o cinema logo entrará nesta onda. Veja o sucesso de Tropa de Elite que trouxe glamour, com muita competência técnica, diga-se, à violência policial. Quanto à preservação da memória, ou melhor, à construção de uma memória voltada para a promoção da democracia e para a cidadania, o caminho a meu ver é a combinação de políticas educacionais, políticas culturais e um sistema jurídico calcados na defesa da pluralidade ideológica, comportamental e religiosa, nos direitos civis e nos direitos humanos. Dentro destes parâmetros, não haveria nenhuma ameaça à democracia embutida no debate esquerda/direita, aí compreendido seus diversos matizes. Mas, infelizmente, não é assim que o debate atual se apresenta, dando espaço para os discursos de ódio ideológico e para preconceitos de raça e classe.   
 
Marcos NapolitanoMarcos Napolitano Foto: Editora ContextoMarcos Napolitano é professor do departamento de História da Universidade de São Paulo e autor de livros como “1964: História do Regime Militar Brasileiro” (editora Contexto, 2014).