É possível responsabilizar a China na Corte Internacional no caso da Covid-19?
Todo pesquisador tem seus dilemas. Neste exato momento, estou a terminar um estudo (já está com 35 páginas) que analisa os todos os regulamentos sanitários internacionais, tanto de hard law como de soft law, bem assim jurisprudência da Corte Internacional de Justiça — CIJ, para o fim de verificar se é cabível a responsabilidade internacional do Estado no caso da Covid-19.
Qual o meu dilema? O tema é atualíssimo e a comunidade científica espera uma resposta jurídica para o caso em questão. Daí a necessidade de publicação imediata da pesquisa, o que eu poderia fazer inserindo-a em plataformas internacionais de publicação, como a Academia.edu e a Social Science Reseach Network —SRRN.
Por outro lado, um trabalho tão desgastante como esse, penso, merecia ser enviado para uma revista jurídica classificada com a Qualis A1. É evidente que essa segunda opção é a encorajada pelos regulamentos dos nossos programas de pós-graduação stricto sensu. Eis o dilema. Publico o texto (já com 35 páginas) numa plataforma na internet — e dou divulgação instantânea à conclusão que cheguei — ou aguardo a publicação em revista especializada — para poder auxiliar na pontuação dos programas de pós-graduação stricto sensu a que pertenço? Essa é a decisão que terei de tomar em breve.
Mas, com isso, o leitor não precisa ser incomodado. Vamos, aqui, direto ao ponto. Apesar de o meu estudo estar ainda em elaboração, penso poder compartilhar agora alguns resultados parciais (e, novamente, verificar se dou publicidade ou não, quando oportuno, ao texto completo em plataformas internacionais). Eis o ponto: a possibilidade de se demandar a China pela pandemia da Covid-19, com todas as implicações jurídicas que permeiam o objeto da pesquisa. Frise-se, desde já, que toda análise se volta à investigação de como a China teria eventualmente violado o Regulamento Sanitário Internacional da OMS (2005) e a própria Constituição da Organização, esta última o instrumento que abre as portas à jurisdição da Corte Internacional de Justiça. Entendamos globalmente a questão, sem aprofundamentos.
Em primeiro lugar, é obrigação de todo Estado informar a OMS das situações anômalas ocorridas em seus territórios relativas à saúde humana, dever que vem expresso no art. 7º do Regulamento, cuja redação — ao melhor estilo hard law — é direta e imperativa, nos seguintes termos:
Caso um Estado Parte tiver evidências de um evento de saúde pública inesperado ou incomum dentro de seu território, independentemente de sua origem ou fonte, que possa constituir uma emergência de saúde pública de importância internacional, ele fornecerá todas as informações de saúde pública relevantes à OMS. Nesse caso, aplicam-se na íntegra as disposições do Artigo 6.
O dispositivo exige que os Estados forneçam à OMS informações de saúde pública relevantes independentemente da origem ou fonte do evento inesperado ou incomum ocorrido dentro de seus territórios, que possam constituir uma emergência de saúde pública de importância internacional. E, o artigo 6º referido, dá prazo de 24 horas para que essa comunicação seja realizada.
Assim, a questão que se coloca é saber se a China avisou a autoridade mundial de saúde — a OMS — pelos "mais eficientes meios de comunicação disponíveis" e "dentro do prazo de 24 horas a contar da avaliação de informações de saúde pública" sobre todos os eventos em seu território que podiam se constituir em emergência de saúde pública de importância internacional, consoante o art. 6º do Regulamento.
As notícias de imprensa informam que a China demorou muito mais tempo do que o previsto para compartilhar suas informações internas em nível internacional. A conduta omissiva do governo chinês, portanto, estaria a violar a obrigação de informar prevista no art. 7º do Regulamento, uma vez que não houve o fornecimento de "todas as informações de saúde pública relevantes à OMS"”, como determina o dispositivo.
Não se pode, contudo, deixar de concordar que é improvável que muitos Estados se insurjam contra a China relativamente à pandemia da Covid-19, especialmente sobre o descumprimento do Regulamento Sanitário Internacional, pela razão simples de que todos os países do mundo podem dar início a surtos, epidemias ou pandemias congêneres.
Seja como for, a nossa conclusão (parcial) é a de que teria havido violação de norma internacional convencional (hard law) pela República Popular da China, ao não informar a Organização Mundial de Saúde — no prazo determinado pelo Regulamento Sanitário Internacional e sem a devida diligência — da epidemia inicial (e posterior pandemia) surgida em Wuhan, província de Hubei, levando ao alastramento do vírus para fora da China e ao desconhecimento de todo o mundo sobre os seus sintomas e efeitos.
A falta de diligência Chinesa, conforme amplamente noticiado na imprensa internacional, acarretou prejuízos de vidas humanas e econômicos para vários Estados.
A questão jurídica, no entanto, está em que apenas a Constituição da OMS — e não o Regulamento Sanitário Internacional — prevê recurso à Corte Internacional de Justiça, e haveria, então, de se vincular a responsabilidade da China com o mandamento da Constituição da OMS, ainda que pela via do Regulamento Sanitário Internacional. De fato, assim dispõe o art. 75 da Constituição da OMS:
A Corte Internacional de Justiça (Haia) já reconheceu a validade do art. 75 da Constituição da OMS no § 99 do caso dos Conflitos Armados no Território do Congo (República Democrática do Congo Vs. Ruanda) de 2002. No parágrafo referido, a CIJ (na decisão do ano de 2006) assim referiu:
A Corte observa que a República Democrática do Congo é parte da Constituição da OMS desde 24 de fevereiro de 1961, e Ruanda desde 7 de novembro de 1962, e que tanto uma como a outra são membros dessa Organização. A Corte observa, igualmente, que o artigo 75 da Constituição da OMS prevê, sob as condições previstas nessa disposição, a competência da Corte para conhecer de “qualquer questão ou divergência referente à interpretação ou aplicação” deste instrumento. Essa disposição exige que tal questão ou divergência diga respeito à interpretação ou aplicação desta Constituição em particular.
Toda a dificuldade está em encontrar no próprio texto da Constituição da OMS obrigações objetivas aos Estados de salvaguarda da saúde em casos de pandemias transnacionais, tais as constantes do Regulamento Sanitário Internacional de 2005. Tudo isso leva a incertezas sobre a possibilidade de um Estado demandar a China na Corte Internacional de Justiça pela pandemia da Covid-19.
Há várias outras maneiras aventadas para vincular a responsabilidade chinesa à Constituição da OMS, e serão apresentadas quando da publicação do nosso texto definitivo. Aqui, no entanto, cabe referir que a Constituição da OMS atribui expressamente à Assembleia da Saúde autoridade para adotar regulamentos relativos a medidas sanitárias e de quarentena e outros procedimentos destinados a evitar a propagação internacional de doenças (art. 21). E, assim, uma vinculação possível e uma porta aberta haveria para os Estados prejudicados (não obstante as dificuldades políticas dessa ação) em demandar a China perante a Justiça Internacional.
Ademais, a obrigatoriedade de cumprimento dos regulamentos da Assembleia Mundial da Saúde também acarreta aos Estados, nos termos do art. 62 da Constituição da OMS, o dever de apresentar “anualmente um relatório sobre as medidas tomadas em relação às recomendações que lhe tenham sido feitas pela Organização e em relação às convenções, acordos e regulamentos”. De fato, não haveria sentido a norma exigir dos Estados a apresentação de relatórios anuais se não for para exercer o seu papel de órgão internacional de monitoramento das questões de saúde mundiais.
Um complicador, porém, poderia se agregar a esse contexto: como exigir da China reparação de danos se muitos Estados — dente eles, o Brasil — não têm feito a sua parte na adoção das medidas de restrição e isolamento?
Tome-se como exemplo a Itália, que, no início da pandemia, não deu valor para a progressão de alastramento do vírus e agora se vê arrependida por não ter tomado medidas de contingenciamento no momento próprio.
O Brasil, por sua vez, está a repetir o mesmo equívoco, dadas as reiteradas declarações do Presidente da República de que “devemos, sim, voltar à normalidade”, e de que se deve “abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa” (pronunciamento em Rede Nacional de Televisão, no dia 24.03.2020). Essa é, em suma, outra questão a ser trazida ao debate quando se pretender (vale, aqui, a hipótese) exigir responsabilidade da China pela pandemia do novo coronavírus.
Por fim, no texto científico que estou a desenvolver, fica também aventada a hipótese da utilização, pela China, do instituto da “força maior” como excludente de ilicitude. O instituto da força maior vem previsto pelo Projeto (Draft) de Convenção da ONU sobre responsabilidade internacional dos Estados por atos ilícitos, nos seguintes termos (art. 31, § 1º):
A ilicitude de um ato de um Estado em desacordo com uma obrigação internacional daquele Estado será excluída se o ato se der em razão de força maior, entendida como a ocorrência de uma força irresistível ou de um acontecimento imprevisível, além do controle do Estado, tornando materialmente impossível, nesta circunstância, a realização da obrigação.
Não haverá, contudo, excludente de responsabilidade estatal se (a) a situação irresistível ou imprevista for devida, por si só ou em combinação com outros fatores, à conduta do Estado que a invoca, ou (b) caso tenha o Estado assumido o risco da ocorrência da situação (art. 23, § 2º).
Poderia a força maior ser alegada pela China como excludente de ilicitude no caso da Covid-19? Toda a análise, à evidência, passa por saber se estava ou não sob controle do Estado chinês a epidemia aparecida naquele país. De fato, ainda que se entenda ter havido responsabilidade da China pela demora na divulgação das informações sobre o ocorrido em seu território, tal não afastaria a possibilidade de haver excludente de ilicitude (força maior) caso se comprove que, mesmo tendo conhecimento de toda a situação apresentada, seria irresistível a força do evento danoso (epidemia inicial e pandemia posterior) no que tange às condições do Estado em efetivamente controlar todas as infecções de pessoa a pessoa causadas pela Covid-19.
A questão é extremamente complexa e, à primeira vista, parece fazer sentido o argumento de que, mesmo tendo violado o Regulamento Sanitário Internacional, a República Popular da China não lograria controlar uma pandemia transnacional dessas proposições, dada a capacidade do novo coronavírus (Sars-Cov-2) de se proliferar muito facilmente entre seres humanos.
A força irresistível causada pelo alastramento da pandemia — mesmo se houvesse comunicação imediata do fato, seguindo todas as normas e os protocolos da OMS — levaria à exclusão (hipótese) de responsabilidade em razão de evento fora de controle do Estado. Em outras palavras, seria difícil imputar relação de causalidade (nexo causal) à China em razão da expansão fugaz da pandemia.
Lembremo-nos, a propósito, do caso do vírus HIV, surgido a partir do vírus SIV encontrado no sistema imunológico dos chimpanzés e do macaco-verde africano, provavelmente transmitido ao ser humano com a domesticação de chimpanzés e macacos-verdes em tribos do centro-oeste africano e disseminado para o resto do planeta a partir das décadas de 1960 e 70.
A cidade específica onde a pandemia do HIV teve início foi Leopoldville, no então Congo Belga — hoje Kinshasa, capital da República Democrática do Congo — nos anos 1920, especialmente quando se tornou atrativa para jovens em busca de emprego, dentre eles muitos provenientes do Haiti.
Pelas ferrovias e hidrovias do Congo, alastrou-se o vírus para todo o país e, posteriormente, para o resto do mundo, especialmente no âmbito da “revolução sexual”, chegando aos Estados Unidos e Europa a partir dos anos 1970.
No caso da Covid-19, seria possível que a China tivesse controle inicial e eficaz sobre as atividades de milhares de pessoas que se deslocaram rapidamente pelo seu território e saíram do país via transporte aéreo? Seria possível, antes do rastreamento da atividade do vírus, conter a sua expansão eficazmente? Esses são questionamentos de difícil resposta, mas que fazem todo o sentido quando se pensa no instituto da força maior como excludente de ilicitude em caso de responsabilidade internacional do Estado.
Por outro lado, não é menos verdade que a falta de informações da China relativamente à epidemia (em violação à norma internacional respectiva) poderia fazer incidir a regra do art. 23, § 2º, b, do Projeto de Convenção da ONU, que impede a excludente da força maior “caso tenha o Estado assumido o risco da ocorrência da situação”. Por efeito dessa regra, quando o Estado aceita o risco da ocorrência da situação danosa, em razão de conduta anterior sua ou de ato unilateral seu, não poderá beneficiar-se da força maior para o fim de excluir a ilicitude do ato.
Se é certo que a regra em apreço vem expressa num projeto de convenção internacional, e que, portanto, não seria ainda capaz de gerar qualquer obrigação, não é menos certo que é decorrente de costume internacional já formado relativo à matéria.
Todas essas são conclusões parciais e preliminares (agora compartilhadas) neste exato momento em que — em isolamento familiar, em Cuiabá, cumprindo o #FiqueEmCasa — estou a produzir o meu texto maior, que, inclusive, poderá chegar a conclusões diversas dessas que acabei de expor. Assim é a ciência.
Se já se sabe a resposta, é fácil fazer o caminho contrário para justificar o percurso. Como não tenho qualquer resposta, sigo buscando. Em breve, espero poder compartilhar com os leitores a publicação desse novo trabalho, mais denso e complexo, seja qual for a conclusão apresentada.
Valerio de Oliveira Mazzuoli é pós-doutor pela Universidade de Lisboa, doutor summa cum laude em Direito Internacional pela UFRGS, professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e sócio do escritório Mazzuoli & de Pieri Advocacia.