Escrevi bastante sobre o tema da reciprocidade, ou da não reciprocidade, sobretudo quando a questão se colocou quando eu servia como ministro-conselheiro da embaixada do Brasil em Washington, no início dos anos 2000. Não vou tratar neste momento, da reciprocidade stricto senso, e do caso da dispensa de vistos.
Existe todo um debate sobre as assimetrias entre os países, que também se presta a tantas incompreensões quanto o tema da reciprocidade.
Vou abordar o tema das assimetrias pelo exemplo do Mercosul, pois foi aqui que irracionalidades do lulopetismo diplomático se manifestaram com toda a sua estupidez normativa.
Depois volto ao tema da reciprocidade.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de março de 2019
A politização do
Mercosul e o fantasma das assimetrias estruturais
Paulo Roberto de Almeida
Extrato de capítulo mais longo
“Perspectivas
do Mercosul ao início de sua terceira década”, no livro:
Elisa
de Sousa Ribeiro (coord.), Direito do
Mercosul. Curitiba: Editora Appris, 2013, 683 p.; ISBN: 974-85-8192-208-9; cap. 33, p. 661-676.
(...)
A consequência mais evidente derivada da
ascensão de novas lideranças políticas no Brasil e na Argentina – no caso, Lula
e Kirchner – foi representada pelo nítido afastamento desses países (e, no
mesmo movimento, do Mercosul) dos objetivos econômicos basilares do Tratado de Assunção,
em especial a liberalização comercial recíproca e a continuidade da abertura
econômica no plano global. Em seu lugar, reingressaram na agenda velhas
receitas substitutivas e industrializantes, sob forte dirigismo estatal e
protecionismo aos empresários nacionais; em suma, não apenas um desvio em
relação aos princípios “constitucionais” do Mercosul, mas igualmente um retorno
de quase meio século na história econômica desses países.
Esse movimento regressista foi bem mais
forte, numa primeira fase, na Argentina, do que no Brasil, que não atravessou
uma crise tão grave quanto aquela enfrentada pelo país platino no início do
novo milênio. No caso do Brasil, consoante a vontade das novas lideranças do
Partido dos Trabalhadores de exercer uma não-assumida liderança política no
continente – ou seja, ultrapassando inclusive o quadro formal do Mercosul – o
que se observou foi uma espécie de fuga para a frente, em direção de objetivos sociais
e políticos não concebidos originalmente como partes essenciais do processo de
integração: tratou-se nitidamente de um efeito substituição.
Os governos dos países membros
favoreceram, em diversos setores da área econômica, o retorno a velhas posturas
nacionalistas e estatizantes, atitudes que estavam em nítida contradição com os
requisitos tradicionais da integração, que são a abertura econômica e
liberalização comercial. A incorporação da Venezuela às instâncias
deliberativas – ainda que não todos os procedimentos de adesão tenham sido
efetivamente ratificados e seguidos pelo novo membro – contribui para reforçar
os elementos constitutivos objetivamente anti-integracionistas no Mercosul.
Readaptando velhas receitas de extração
keynesiana, numa versão trabalhada outrora pela Cepal, os países membros
começaram a adotar, em diferentes medidas, prescrições macroeconômicas
fortemente embasadas nos modelos de industrialização à la List; a ênfase tornou-se essencialmente nacional, ou até
introvertida, continuando a adesão retórica a esquemas integracionistas mas num
formato o mais superficial possível. A despeito de críticas acadêmicas quanto
às insuficiências institucionais ou a um alegado déficit democrático no
Mercosul – ou talvez, por isso mesmo –, não ocorreu nenhum esforço para
caminhar-se na direção de um tipo “comunitário” de integração, modelado segundo
a experiência europeia; o sistema intergovenamental, portanto, continuou como
antes, mesmo se novas “instituições”, de caráter puramente acessório, foram
sendo criadas para dar a impressão de “progressos” na integração.
No plano dos movimentos hemisféricos e
regionais, algumas tendências se revelaram ou se desenvolveram no novo período:
o Chile interrompeu seu movimento de aproximação econômica ao Mercosul e deu
início às negociações para o estabelecimento de um acordo de livre comércio com
EUA, no que foi seguido por outros países andinos, à exceção dos
“bolivarianos”; a Venezuela explicitou sua demanda de adesão ao Mercosul, com o
apoio de todas as lideranças executivas, mas sob intenso escrutínio dos
movimentos de oposição no Brasil e no Paraguai, que questionavam as credenciais
democráticas do candidato, quando o relevante, na verdade, seria a incorporação
plena de todas as normas de política comercial; o Brasil tomou diferentes
iniciativas para afastar os EUA da região, propondo instituições exclusivamente
sul-americanas (como a Comunidade Sul-Americana de Nações, oportunamente
transformada em União, Unasul, segundo proposta e ativismo do coronel Hugo
Chávez).
No contexto específico do Mercosul, o
governo brasileiro apoiou ativamente a constituição de novos órgãos – Instituto
Social, Parlamento, esforços adicionais de “inserção social”, etc. – mesmo
quando os objetivos primários do TA, que são o livre comércio e a união
aduaneira, continuaram submetidos a contínua erosão, tanto pelas crescentes
restrições adotadas no plano interno, quanto pelo protecionismo ampliado no
plano externo. A Argentina foi bem mais enfática, e explícita, nos mecanismos
defensivos do seu mercado interno, sob o olhar complacente do governo
brasileiro, mesmo contra os interesses de seus exportadores em geral, dos
industriais em particular. A despeito de todas as políticas defensivas da
Argentina, e do fato que elas foram e continuam sendo ilegais e abusivas, os
fluxos do intercâmbio bilateral – que constituem ainda o grosso do comércio
intra-Mercosul – continuaram a beneficiar os exportadores do Brasil, cujos
superávits com o vizinho permanecem significativos.
A acumulação de saldos comerciais e a
volta ao crescimento dos fluxos intra e extra-regionais não impediram que a
parte do comércio regional recíproco dos países do Mercosul diminuísse em
relação ao volume global dos intercâmbios do bloco, em especial no caso do
Brasil. A Argentina se mantém ainda na condição que já foi várias vezes
caracterizada como de “Brasil dependência”, que ela se esforça em diminuir, mas
recorrendo a métodos claramente anti-integracionistas, no limite
antibrasileiros. Desde meados dos anos 1990 que ela recorre – no início
moderadamente, nos anos 2000 de forma intensa e aberta – a diferentes
mecanismos protecionistas (como antidumping, salvaguardas, licenças de
importação, quotas informais, etc.), muitas vezes de forma ilegal e abusiva,
não apenas contra o espírito e a letra dos instrumentos constitutivos do
Mercosul, mas também em oposição a dispositivos do sistema multilateral de
comércio (como o Código de Salvaguardas, por exemplo).
Mas é também um fato que a parte do
Mercosul no comércio global brasileiro, depois de ter aumentado em dez pontos
percentuais, a partir de sua pequena base de 4% ao início da criação do bloco,
tornou a diminuir na segunda década; ainda que os valores absolutos tenham
voltado a crescer a partir de meados dessa década, relativamente eles passaram
a representar parte decrescente do comércio exterior brasileiro. Isto significa
que o Mercosul continua a ser significativo no plano microeconômico – ou seja,
representa um importante mercado para empresas individuais – mas já pode não
ser macroeconomicamente relevante para o Brasil quanto foi nos primeiros oito
ou nove anos.
Para assegurar, ainda assim, sua pretensão
à liderança dentro do bloco, e na região como um todo, bem como para apoiar
projetos específicos ou diminuir reclamações de parceiros e resistências a suas
iniciativas políticas, o Brasil começou a desenvolver o que foi chamado de
“diplomacia da generosidade”. Esta foi feita de diferentes elementos não
recíprocos no relacionamento regional, a começar por um duvidoso programa de
“substituição de importações”, que consistiria na importação voluntária, por
parte dos empresários brasileiros, de produtos dos países vizinhos, mesmo que
eles “fossem mais caros”, mas seria para “ajudar países mais ‘pobres’ do que o
Brasil, segundo os argumentos do presidente Lula. Como os empresários privados
não se entusiasmaram muito pela ideia – de fato, inconsistente, no plano da
lógica, e economicamente prejudicial a seus interesses de capitalistas – o
ministério das Relações Exteriores implementou ele mesmo um programa destinado
a ajudar os vizinhos a exportar para o Brasil, numa notável demonstração de
“promoção comercial” ao revés.
Todavia, a iniciativa mais consistente com
a pretensão à liderança regional por parte do governo Lula – e supostamente
para sanar diferenças estruturais entre os países membros, que estariam, ao que
parece, dificultando a integração – consistiu no desenho e implementação de um
programa de correção das “assimetrias estruturais” existentes no Mercosul,
criado e financiado à razão de 70% de seus montantes pelo próprio Brasil.
Justamente por ser grande, extremamente bem dotado de recursos e
industrialmente mais avançado, o Brasil passou a ser visto, pelos seus
parceiros do bloco, como o “fazedor de normas”, o principal beneficiado e,
segundo alguns, o “aproveitador”, de todo o processo do Mercosul.
O “Fundo para a convergência estrutural e
o fortalecimento da estrutura institucional do Mercosul (Focem)” parte de um
diagnóstico, alegadamente empírico, segundo o qual as fontes dos problemas de
integração no Mercosul estariam no que foi chamado de “assimetrias”, ou seja,
diferentes dotações de fatores e especializações distintas, em cada um dos
países, que redundariam em benefícios distintos para cada um deles. Sem análises
mais bem fundamentadas em estudos econômicos rigorosos, o Brasil foi apontado
como o principal provedor de recursos e designado candidato a ser o pagador
líquido de todos os mecanismos corretivos de supostas desigualdades – tendo
inclusive assumido voluntariamente esses papeis, por iniciativa do próprio
governo –, numa reprodução tentativa de instrumentos existentes na União
Europeia, como se o Brasil dispusesse da maior renda per capita do bloco ou
como se ele já não exibisse algumas das maiores desigualdades sociais e
regionais de toda a região.
Em qualquer hipótese, o Focem não apenas
reproduz, como também mimetiza e duplica funções que seriam melhor assumidas
por entidades tecnicamente mais sólidas, como os bancos e fundos financeiros
multilaterais e regionais – tipo Bird, BID, CAF e outros – dispondo, por outro
lado, de bem menos recursos e expertise na área do que os órgãos já
consolidados como esses. Não é menos verdade que a capacidade de “correção de
assimetrias” de um fundo sumamente modesto como o Focem aparece como ínfimo em
face do potencial de necessidades visíveis em todos os países, a começar pelo
próprio Brasil.
Economistas dotados de concepções menos
dirigistas em matéria de políticas públicas concordariam em que não são
exatamente as “assimetrias estruturais”, em sua dimensão própria, que
constituem obstáculos aos avanços da integração; as diferenças sistêmicas entre
países formam, aliás, a base mesma das especializações setoriais e regionais e
são o fundamento do próprio comércio internacional (que só existe, por sinal,
graças a essas “desigualdades” produtivas). A pretensão à uniformidade ou à
homogeneização dos fatores produtivos constitui um contrassenso econômico e um
empreendimento de Sísifo, que só existe em mentes dirigistas.
Por fim, mas não menos importante, bem
mais relevantes do que as alegadas diferenças “estruturais”, ou seja,
materiais, entre os países membros, são as “assimetrias” de políticas
econômicas, estas sim as responsáveis pelas maiores dificuldades de integração
no Mercosul. Elas se manifestam não apenas em termos de diferenças de
orientação nas principais políticas macroeconômicas – em especial, as de tipo fiscal,
monetário e cambial – mas também no que respeita políticas setoriais,
geralmente na indústria e na agricultura, onde mecanismos defensivos ou
claramente protecionistas são constantemente mobilizados por grupos de
interesse para tentar manter antigas posições nos mercados nacionais. Ora, todo
e qualquer processo de integração implica, necessariamente, transformações
produtivas e reconversão de unidades empresariais: se o esforço se dá no
sentido de manter o cenário habitual, não há razão para se iniciar um processo
de integração.
Duas das principais virtudes de qualquer
processo de integração são, justamente, a indução à modernização do sistema
produtivo e a quase obrigatoriedade de reformas institucionais e setoriais, de
maneira a adaptar o parque produtivo nacional ao novo cenário criado pela
liberalização ampliada dos mercados; se os governos hesitam ou relutam em
empreender reformas, todo o empreendimento pode estar condenado ao fracasso.
(...)