Só o ano? Acho que Moisés Naim é modesto. Charlatães aparecem o tempo todo, da mesma forma como existem idiotas dispostos a segui-los.
Alguns charlatães são completos pamonhas, mas o mundo tem milhares, milhões de pamonhas, propensos a acreditar nas piores bobagens que eles são capazes de acreditar.
Outros são espertos, e lucram com a parvoice da maior parte da população, até serem desmascarados.
Alguém quer fazer a lista dos charlatães do momento?
Paulo Roberto de Almeida
O ano dos charlatães
A charlatanice está no apogeu em razão de problemas
ampliados pelas redes sociais
Moisés Naim, O Estado de S.Paulo
01 Janeiro 2019 | 05h00
Em 2018, foram completados 60 anos da
transmissão de um episódio da série de western chamada Backtrack,
na CBS, dos EUA. “O
fim do mundo”, foi o título do episódio que narra a história de um charlatão
que chega a um típico povoado do oeste longínquo e convoca a população para
ouvir a urgente notícia que ele traz.
Está para ocorrer uma “explosão cósmica” que acabará
com o mundo, diz aos moradores. Mas ele poderá salvá-los. Ele, e somente ele.
Para sobreviver, as pessoas devem construir um muro em volta de suas casas e
comprar guarda-chuvas especiais que desviam as bolas de fogo que choverão do
céu. O nome do charlatão protagonista desse episódio? Trump. Walter Trump.
No programa – que pode ser visto no YouTube – Hoby
Gilman, um Texas Ranger que representa o senso comum, procura convencer seus
vizinhos a não darem ouvidos a Trump. “É um vigarista. Está mentindo para nós”,
diz. Do mesmo modo que seu homônimo na vida real, que chama a atenção do mundo
meio século depois, o Trump da série costuma usar seus advogados para
neutralizar críticos e rivais: Walter Trump ameaça processar Gilman.
Os charlatães sempre existiram. São malandros que, com
grande habilidade verbal, conseguem vender aos incautos algum tipo de produto,
remédio, elixir, negócio ou ideologia que, sem grande esforço, os livrará de
suas penas, aliviará suas dores ou os tornará ricos.
Ultimamente, o mercado da charlatanice, especialmente
na política, chegou ao apogeu. Aumentou tanto a demanda como a oferta de
soluções simples para problemas complexos. A demanda é impulsionada pelas
crises e a oferta é potencializada pelas redes sociais.
As crises de todo tipo que afligem o mundo de hoje são
resultado de forças poderosas: tecnologia, globalização, precariedade econômica
e desigualdade, criminalidade, corrupção, maus governos, racismo e xenofobia,
entre outras. O resultado é a proliferação de sociedades com grandes grupos que
se sentem, como toda razão, humilhadas, frustradas e ameaçadas pelo futuro. E
que também constituem um apetitoso mercado para os charlatães que oferecem
soluções simples, instantâneas e indolores.
Na série de TV de 1968, um narrador anônimo relata o
que ocorreu: “A população estava disposta a acreditar. E, como cordeiros, as
pessoas correram para o matadouro. Ali, esperando-os, estava o sumo sacerdote
da fraude”. Meio século depois, essa frase soa atual. Há cada vez mais
sociedades dispostas a votar em quem lhes faça a promessa mais simples que,
além disso, proponha romper com tudo que é anterior e tirar do poder “os de
sempre”.
Os charlatães de hoje são, basicamente, similares aos
que sempre existiram, só que agora eles dispõem de tecnologias digitais que
lhes propiciam oportunidades inimagináveis. São os charlatães digitais.
A intervenção clandestina de um país nas eleições de
outra nação é um bom exemplo de práticas antigas que adquiriram novas forças.
Agora, os malandros digitais operam por meio dos famosos “bots”. São programas
que disseminam pelas redes sociais milhões de mensagens automáticas dirigidas a
usuários que foram selecionados por que têm certas características: uma
determinada idade, sexo, raça, localização, educação, religião, classe social,
preferências políticas, hábitos de consumo.
Como todos os bons charlatães, os administradores dos
bots sabem identificar as pessoas propensas a acreditar neles. Antes, eles
usavam sua intuição para identificar suas vítimas. Agora, usam algoritmos. Uma
vez identificadas suas presas, os criadores dos bots lhes enviam mensagens que
confirmam e reforçam suas crenças, temores, simpatias e repúdios.
Os charlatães digitais sabem como estimular certas
condutas daqueles que recebem suas mensagens (votar em um candidato e difamar
seu rival, apoiar um determinado grupo e atacar outro, disseminar informações
falsas, unir-se a um grupo, protestar, fazer doações).
Estas novas tecnologias digitais têm a propriedade de
serem, ao mesmo tempo, massivas e individuais. Quem as utiliza pode,
simultaneamente, contatar milhões de pessoas e fazer que cada uma delas sinta
que está interagindo de maneira direta, pessoal e quase íntima com uma pessoa
com a qual compartilha modos de pensar.
Foi exatamente isso que ocorreu nas eleições americanas
que levaram Donald Trump à Casa Branca. O consenso das agências de
inteligência dos EUA e de outros países é o de que foi uma operação
brilhantemente projetada e executada – a um custo muito baixo – pelo governo
russo sob a supervisão direta de Vladimir Putin.
Mas seria um erro supor que os charlatães
digitais só influenciaram as eleições americanas. Acredita-se que 27 países
foram vítimas da interferência política orquestrada pelo Kremlin. Tanto
na crise da Catalunha como
no caso do Brexit foram
detectadas intensas atividades dos bots e de outros atores digitais controlados
ou influenciados pelo governo russo. A finalidade desses esforços é semear o
caos e a confusão e agravar os conflitos sociais, debilitando as democracias
ocidentais.
De fato, uma das evidências mais reveladoras do
impacto dos charlatães atuais foram as buscas de informação que se verificaram
depois do referendo do Brexit, no qual, por uma margem de 4% do voto popular, a
Grã-Bretanha decidiu se separar da Europa.
Segundo o Google, uma das perguntas mais frequentes
das buscas no Reino Unido depois do resultado foi: “O que é o Brexit?” Também
se soube que muitas das afirmações e dados usados pelos que promoveram o Brexit
eram falsos. Mas, do mesmo modo que os habitantes do povoado na série de TV,
neste caso também “o povo estava disposto a acreditar”.
O mesmo ocorre com as mentiras de Trump.
Segundo o Washington Post, ele fez 5 mil afirmações falsas nos 601
dias desde que assumiu a presidência, uma média de 8,3 por dia. Recentemente,
ele bateu seu recorde e, em um único dia, disse 74 mentiras. Mas o presidente
sabe que “o povo está disposto a acreditar nele”.
Tudo isso aponta pra uma lamentável realidade: os
seguidores dos charlatães são tanto ou mais culpados pelo fato de uma sociedade
apoiar ideias ruins, eleger maus governantes ou acreditar em suas mentiras. Com
frequência, os seguidores estão desinformados, são indolentes e estão dispostos
a acreditar em qualquer proposta que os seduza, por mais disparatada que seja.
Isso precisa mudar. Nos últimos tempos, tornamos a
vida muito fácil para os charlatães e somos muito benevolentes com seus
seguidores. É preciso reconstruir a capacidade da sociedade de diferenciar
entre a verdade e a mentira, entre os fatos confirmados por evidências
incontestáveis e as propostas que nos fazem sentir bem, mas que oferecem
soluções que agravam o problema.
Precisamos de mais educação cidadã sobre o
uso e abuso da tecnologia digital e aceitar que a democracia requer mais
esforço do que ir votar de tempos em tempos. Temos de ficar mais bem
informados, manter a mente aberta para ideias que não são cômodas e
desenvolvermos o senso crítico que nos alerta quando somos manipulados. É
necessário também regulamentar as redes sociais. Sobretudo, é preciso recuperar
nossa capacidade de distinguir quem são os líderes decentes e quem são os
charlatães que nos mentem impunemente.
TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO