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sábado, 12 de fevereiro de 2011

Minitratado da imaginacao - Paulo Roberto de Almeida

Minitratado da imaginação
Paulo Roberto de Almeida
Diferentemente dos animais – embora aqueles que se consideram “íntimos” dos animais não acreditam que eles sejam uma exceção à regra –, todos nós, humanos, possuímos a faculdade inata da imaginação. Alguns mais do que outros, pois conheço aqueles que sonham acordados (eu mesmo, por exemplo). A imaginação nos foi dada de graça, no ato da criação – e não vai aqui nenhuma interpretação religiosa da criação humana – e ela vem, por assim dizer, no pacote original junto com todos os outros sentidos, aqueles cinco da versão consagrada, e mais alguns – ditos paranormais – que circulam em volta da gente, do nosso cérebro e também do nosso coração (ou que pelo menos se aproveitam da distração de alguns desses sentidos tradicionais para se imiscuir sorrateiramente em nossas vidas).
Mas a imaginação não é um simples sentido natural, e sim um ato da vontade, embora não possamos impedir nossa própria consciência de imaginar “coisas”. Mas essas coisas imaginadas são instruídas, orientadas, criadas e administradas por nós, como se fossemos um diretor de cinema ou de teatro, quando eles dizem aos atores como o script deve ser realmente lido e interpretado. A diferença é que estamos “dirigindo” nossas próprias vidas, ou aquela que imaginamos para nós. A imaginação também é um roteiro, um script que fazemos, que desfazemos, criamos e recriamos, modificamos e apagamos, o tempo todo, embora sempre sobra um resquício do que pensamos no fundo do cérebro, e que de vez em quando emerge contra a nossa própria vontade.
É isso: a imaginação é um script rebelde, que não respeita a direção que acreditamos desempenhar, e que nem aceita nenhuma outra representação, senão aquela mesma que queremos dar, naquele momento, mas que por vezes escapa ao nosso controle, qual um filho rebelde, um adolescente independente. Esse roteiro tem páginas em branco, mas também sofre mudanças imperceptíveis, mesmo contra a nossa vontade. Ela é difícil de domar a imaginação.
Será que, como nos tratados, ou minitratados (como este e alguns outros que já elaborei), a imaginação tem uma ordem pré-determinada, um arranjo fixo que dispõe sobre suas partes e componentes. Quais seriam? Talvez prólogo (ou preâmbulo), disposições preliminares (ou definições de conceitos), disposições principais, duração, membros do enredo (ou Estados partes), solução de controvérsias, cláusula de denúncia, disposições transitórias, local e data, assinatura do autor? Não creio. A imaginação – mesmo sendo objeto de um minitratado como este – não é assim tão burocrática e organizada, e sim caótica, errática, cheia de idas e vindas, conflitos íntimos e tensões externas, enfim, tudo aquilo que estamos no direito de esperar de uma imaginação dotada de plena capacidade para nos entreter, nos embriagar, trazer-nos alguma felicidade momentânea ou mergulhar-nos em algum estado depressivo temporário.
O que move a imaginação? As paixões, certamente. O amor, talvez o ódio, o afeto, a ambição, a cupidez, o egoísmo – enfim, vocês acrescentem os outros pecados capitais – mas também a generosidade, o desprendimento, o interesse, a curiosidade e tudo aquilo que movimenta o cérebro humano, sobretudo e principalmente nosso meio ambiente, a família, as experiências na escola, no trabalho, na rua, na vida, enfim. Tudo suscita e alimenta a imaginação, e houve até um filósofo – minha imaginação não me ajuda agora a relembrar o seu nome – que sugeriu que a própria existência humana era um ato de imaginação. Os surrealistas certamente já produziram obras que são pura imaginação, e por isso fizeram sucesso (alguns até extorquiram muito dinheiro dos incautos, que geralmente têm pouca imaginação).
Os desenhos animados, e até alguns filmes de ficção, costumam representar alguns espíritos malévolos como dotados de muita imaginação, geralmente retratados como aqueles personagens de testa alta, cérebro volumoso, neurônios agitados, quando não ligados a estranhos aparelhos que pretendem transformar essa imaginação – por definição perversa – em poder sobre os homens e sobre o mundo. Não gosto muito dessa “versão” da imaginação, e sim daquela que figura no script dos filmes românticos, das comédias espirituosas e otimistas, quando tudo no final se encaixa, para trazer toda a felicidade esperada aos dois heróis principais da história. Essa é sem dúvida a “imaginação” que todos gostaríamos que acontecesse conosco, pois ficamos o tempo todo torcendo para que o herói ou a mocinha superem os perigos que os cercam, escapem das garras dos vilões ocasionais e, por fim, se reencontrem ao final do script para nosso maior conforto e felicidade imaginária.
Nem todo mundo tem direito a uma versão terrena, ou seja, real, desse roteiro otimista, com música de fundo, cenários coloridos, dos filmes que adoramos assistir em momentos de détente. Sim, nem todo mundo tem condições de se realizar numa vida feliz, sem preocupações materiais e sem angústias amorosas. Mas todos nós, sem exceção, temos direito a nossa quota de imaginação, ou a quanta imaginação pudermos “suportar”, ao longo de uma vida que é também feita de cruas realidades, de notas baixas na escola, de cobranças do chefe no trabalho, de lista de compras a serem feitas imediatamente, de louça na pia e de trastes para jogar fora. Tudo isso não nos impede de sonhar acordados, mesmo quando estamos cuidando da louça na cozinha, saindo para passear os cachorros ou empurrando o carrinho no supermercado (atenção para não se enganar de produto, ou levar o que não precisa...).
A imaginação nos ajuda a suportar um mundo que pode ser momentaneamente insuportável, uma vida aborrecida, feita de frustrações ou de restrições materiais. Todos nós já nos imaginamos ganhando na loteria, com o que TODOS os nossos problemas estariam automaticamente resolvidos (ou pelo menos imaginamos que sim). Todos nós já imaginamos o amor perfeito, sem nenhuma briga, felicidade eterna e juventude idem... Enfim, sabemos que isso não existe, ou pelo menos não todo o tempo, mas não custa imaginar que sim...
Quando é que vamos nos livrar da imaginação, aquela que nos impede de dormir imediatamente de noite, quando precisamos acordar cedo na manhã seguinte? Acho que nunca, pois isso é impossível: mesmo quando a gente se esforça para ficar com a mente limpa, com o cérebro em branco, para adormecermos mais rapidamente, lá vem a imaginação, sorrateira, atrapalhar nossos planos e prolongar a vigília noturna. Bandida imaginação, a roubar-nos horas de sono, a propor coisas impossíveis, realizando nossos desejos de ganhos, de vingança, de conquistas afetivas e de escapadas oportunas. Como é bom imaginar que aquilo possa de fato acontecer!
Em nossa economia política da existência, a imaginação também obedece às misteriosas curvas da oferta e da demanda. Nós, como simples humanos, dotados de carências, vontades e desejos, demandamos imaginação, o tempo todo, numa curva infinita, quase uma reta, para cima, sempre. Nosso cérebro não se faz de rogado, e atende imediatamente a essas carências materiais ou virtuais e fornece todos os insumos de que necessitamos, quase uma cornucópia inesgotável obedecendo ao velho princípio socialista “a cada um segundo suas necessidades”. Mas aí, por algum motivo, nos chocamos com a realidade, com a disponibilidade de “fatores de produção”, e a curva é arrastada dolorosamente para baixo, até se encontrar com as possibilidades de atendimento da demanda. O ponto de equilíbrio – como em todas as equações econômicas – é sempre num nível mais baixo do que desejaríamos, pois como diriam os economistas realistas, não se pode ter canhões e manteiga ao mesmo tempo, pelo menos não nas quantidades desejadas. Temos de fazer escolhas, hélas!
Ao fim e ao cabo, a imaginação também nos ajuda nessas escolhas dolorosas, mas que têm de ser feitas: sabemos, por experiência e aprendizado, que temos de domar a imaginação, pelo menos no domínio dos meios materiais e da existência terrena. Mas nada nos impede de construir um mundo onírico, feito de imagens puras, pessoas ideais (até reais), situações e palavras agradáveis, totalmente submetidas ao nosso controle, como nesses teatros de bonecos, nos quais mexemos os personagens e inventamos as suas vozes, escolhemos suas palavras (que são aquelas que gostaríamos de dizer ou de ouvir, sem qualquer restrição da vontade alheia ou de copyright proprietário).
Como é bom imaginar que somos poderosos ao ponto de dominarmos até a imaginação de terceiras pessoas, que dirão exatamente aquilo que esperamos ouvir delas, e que farão, de vontade própria, tudo aquilo que esperamos que façam em nosso favor, em benefício recíproco, em satisfação mútua. Estou imaginando demais?
Talvez, mas esta é a função de um minitratado como este: superar os limites legais, autorais, ou materiais, e deixar a imaginação correr solta, fazer tudo aquilo que uma imaginação fértil é capaz de fazer. Diferente da realidade, a imaginação não precisa ser alimentada, não depende de combustível ou de um motor de arranque. Só depende de nós mesmos, e de tudo aquilo que ousamos sonhar, de tudo aquilo que faz nossa felicidade, mesmo quando aparentemente não há esperança ou nos faltam os meios. A imaginação supre tudo isso, e é inesgotável, o próprio moto perpétuo.
Imagino, pelo menos, que seja assim...

Paulo Roberto de Almeida
(Brasília, 12 de fevereiro de 2011)