Hesitação do governo Lula com regime de Ortega divide base de petistas
Recusa do País em condenar na ONU violações dos direitos humanos causa embate no próprio PT e desafia diplomacia nacional; PSB de Alckmin repudia ditadura na Nicarágua
Por Beatriz Bulla e Marcelo Godoy
O Estado de S. Paulo, 10/03/2023 | 05h00
A hesitação do governo de Luiz Inácio Lula da Silva em condenar no Conselho de Direitos Humanos da ONU as violações dos direitos humanos cometidas pelo regime de Daniel Ortega, na Nicarágua, criou ruído na base aliada e desafios à diplomacia brasileira.
O Brasil decidiu não aderir a uma declaração de 54 países, na última sexta-feira, com sanções ao regime de Ortega e permaneceu em silêncio perante a comunidade internacional. Uma resposta brasileira só veio quatro dias depois, diante da reação interna e externa, o que mostra o desconforto gerado no governo Lula com o assunto.
Na quinta-feira, 9, o PSB – partido do vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin – aprovou uma nota de repúdio à ditadura da Nicarágua. O texto defende a democracia como valor universal e afirma que não se pode ficar indiferente ao que chama de “flagrantes violações de direitos humanos, detenções arbitrárias, julgamentos e execuções sumárias, assassinatos e tortura contra dissidentes políticos do regime”. Mesmo no PT, o tema causou discussão.
Presidente do diretório estadual do Rio e integrante da executiva do partido, Alberto Cantalice disse ao Estadão não aceitar a prisão de um bispo católico, como Ortega fez. Em fevereiro, o bispo nicaraguense Rolando Álvarez Lagos foi condenado a 26 anos de prisão como “traidor da Pátria”. O prelado se recusou a embarcar no avião em que Ortega colocou 222 opositores para despachá-los aos EUA.
“Isso é ação ditatorial. Ao se intitular de esquerda, Ortega põe uma mácula sobre nosso ideário.” Para ele, a esquerda brasileira – principalmente os setores mais importantes – precisa revalorizar o papel da democracia e colocá-la como “questão principal, pois é isso que vai nos fazer avançar como Nação moderna”. Em rede social, ele chamou Ortega e o venezuelano Nicolás Maduro de “uns merdas
A publicação despertou reações. O historiador Valter Pomar, da Fundação Perseu Abramo, escreveu em seu blog que, ao usar essa linguagem, Cantalice se candidatava “a ser tratado como gusano”. Gusano é um tipo de verme. O termo é usado pelos comunistas cubanos para designar opositores do regime.
Dubiedade
O conflito no PT reflete o histórico de correntes do partido de Lula de dubiedade na forma de tratar os regimes de Ortega e Maduro. Em 2021, ele comparou a permanência da então chanceler alemã, Angela Merkel, no cargo, à situação de Ortega. Na época, Ortega já tinha passado por sua quarta eleição seguida, sem concorrentes. Nos meses anteriores à eleição, prendera sete pré-candidatos, 39 políticos, empresários, jornalistas e estudantes, além de ter cassado três partidos políticos.
A iniciativa dentro do Conselho de Direitos Humanos da ONU reuniu governos de esquerda e centro-esquerda não apenas na América Latina, como o chileno e o colombiano, mas também na Europa. É o caso de Portugal, Espanha e Alemanha. A declaração da delegação do Canadá, reiterada pelo Chile, aponta os achados de um comitê de peritos, com indicação de possível cometimento de crimes contra a humanidade por Ortega, e defende a continuidade das investigações.
O Brasil integra o grupo que discute o tema, mas não endossou a declaração. O silêncio foi quebrado na terça-feira, quando o chefe da delegação permanente do Brasil em Genebra, embaixador Tovar da Silva Nunes, disse que o País se preocupa com os relatos de “sérias violações de direitos humanos e restrições ao espaço democrático, em especial execuções sumárias, detenções arbitrárias e tortura contra dissidentes políticos”. Ele não usou o termo “crimes contra a humanidade” e também não fez menção à continuidade do trabalho dos peritos.
Disse que o Brasil poderia receber nicaraguenses que perderam sua nacionalidade por ordem de Ortega. Até agora, as discussões geraram apenas declarações, mas não um documento a ser votado. O Conselho de Direitos Humanos ainda discute uma resolução sobre o tema – e o Itamaraty trabalha para abrandar os termos do texto e incluir a perspectiva de tentativa de diálogo com o governo de Ortega.
A gestão petista afirma que o País preferiu adotar uma posição desvinculada do grupo para manter-se como possível mediador com Ortega (mais informações nesta página). Lula busca posição de mediação em conflitos internacionais na região e fora, como no caso da guerra na Ucrânia. Também houve desconforto no Ministério das Relações Exteriores com o fato de relatório dos especialistas apresentado na semana passada comparar ações de Ortega ao nazismo.
Tenho a sensação de que o PT tem uma dificuldade muito grande de se atualizar com relação ao estado das esquerdas na América Latina. A chave do anti-imperialismo que aproximou essas forças no passado, ela já não se justifica como linha de atuação de política externa hoje”, disse o cientista político e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Guilherme Casarões.
Contradição
Membro do grupo de trabalho do Ministério dos Direitos Humanos de combate ao discurso de ódio no Brasil, Casarões afirmou que o governo Lula perde a chance de exercer uma liderança regional ao não se posicionar de maneira clara sobre a Nicarágua. “Cria-se a contradição. No limite o governo vai ser cobrado por defender algo internamente que não sustenta externamente.”
O embaixador Rubens Barbosa disse que o Brasil sempre condenou esse tipo de violação. “Li a declaração de Genebra. Ela é uma maneira de não condenar o regime da Nicarágua. Lula quer ter influência para encaminhar uma solução. No caso do Brasil, dentro dos princípios ocidentais de democracia e direitos humanos, a gente não pode defender isso só internamente. É preciso coerência.”
Ditadura comparada com democracia alemã
Durante a campanha eleitoral, Luiz Inácio Lula da Silva comparou, em entrevista ao jornal espanhol El País, a permanência no poder de Daniel Ortega, na Nicarágua, com a da então primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel. “Por que Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não? Qual é a lógica?”, questionou Lula, que manteve relação próxima e amistosa com Ortega durante seus primeiros mandatos.
Deputado quer saber por que governo Lula se omite sobre ditadura de Ortega
Celso Amorim se reúne com Nicolás Maduro em viagem à Venezuela
Por Fernanda Rouvenat e Ricardo Abreu, GloboNews — Brasília
09/03/2023
O chefe da Assessoria Especial da Presidência da República, Celso Amorim, liderou na quarta-feira (8) uma delegação brasileira em viagem à Venezuela. A agenda do diplomata já contou com um encontro com Nicolás Maduro.
O presidente venezuelano, após a reunião, compartilhou nas redes sociais registros da agenda, que a definiu como "grato encontro".
Maduro também escreveu que a Venezuela e o Brasil estão "comprometidos com a renovação de acordos de união e solidariedade que garantem o crescimento e o bem estar" dos dois países.
Fontes do Itamaraty disseram que o encontro do ex-chanceler com o presidente venezuelano é um "passo natural" do processo de reabertura da Embaixada do Brasil em Caracas.
"No momento em que você reabre uma embaixada, você envia uma missão de alto nível ao país", explicou uma fonte.
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) rompeu relações com o governo de Nicolás Maduro e retirou diplomatas de Caracas, em 2020.
Bolsonaro reconhecia como chefe de Estado o autoproclamado presidente Juan Guaidó, opositor de Maduro. Com a vitória de Lula nas eleições, o Brasil retomou as relações com a gestão de Maduro.
Oposicionistas ao governo Lula criticam essa posição de aproximação do Brasil com o governo venezuelano. Argumentam que a Venezuela é uma ditadura e que Maduro enfraqueceu as instituições democráticas do país.
Uruguai e Paraguai no G20
Enquanto Amorim viajou à Venezuela, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, esteve no Paraguai, nesta quarta-feira.
Em assunção, Vieira se reuniu com o presidente Mario Benítez, no Palácio de López. No encontro, o Brasil formalizou o convite para que o Paraguai integre os trabalhos do G20 – grupo das maiores economias do mundo – em 2024.
O Brasil presidirá o grupo no próximo ano e tem a prerrogativa de fazer alguns convites.
O Paraguai terá eleições presidenciais em abril deste ano, com atenção especial do Brasil.
O país observa uma disputa polarizada entre direita e esquerda. De um lado, o favorito na disputa Santiago Peña, considerado a nova cara do partido de direita conservadora Colorado. Do outro, Efraín Alegre, que concorre pela terceira vez, agora em uma coalizão com o centro e a centro-esquerda.
Durante a semana, o chanceler brasileiro Mauro Vieira recebeu também a visita de ministros do Uruguai e, na ocasião, também convidou o país para fazer parte do G20.