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domingo, 21 de agosto de 2022

Prefácio de Arnaldo Godoy ao livro de Paulo Roberto de Almeida: Construtores da Nação: projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior

 O editor Pedro Henrique Alves, da Editora LVM, me avisa que o livro já está n disponível. Posso, portanto, divulgar agora alguns trechos do prefácio oferecido pelo professor Arnaldo Godoy ao meu livro.



Prefácio de Arnaldo Godoy ao livro de Paulo Roberto de Almeida:

Construtores da Nação: projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior

(São Paulo: LVM Editora, 2022, 304 p,; ISBN: 978-65-5052-036-6).

 

Paulo Roberto de Almeida impressiona, entre outros motivos, por sua determinação para fazer, em sua vida intelectual, nada que afete ou que ameace a sua independência.

(...)

Renomado pesquisador de nossa historiografia diplomática (a Formação da Diplomacia Econômica do Brasil é o meu predileto), Paulo Roberto tem também se interessado pelas várias nuances que substancializam um pensamento brasileiro, orientado para compreensão de Brasil, menos como metafísica, ainda que muito como uma ideia. O seu livro sobre os Construtores do Brasil, que define como um “ensaio de síntese histórica e de exposição argumentativa” é um “tour de force” em torno de ideias e pensadores que tentam explicar nossa condição.

O livro enfrenta quatro grandes temas: o Estado, Ordem, Progresso e a Democracia. É um enfrentamento aos tempos presentes. Vivenciamos a democracia corroída, o progresso em forma de retrocesso, a ordem pautada pelo deboche e o Estado com um butim. O que fazer? Teorizar é também uma forma de militância. Paulo Roberto, nesse sentido, é um militante. 

(...)

Construtores da Nação pode ser compreendido como um curso sobre o pensamento brasileiro, na tradição de Antonio Paim (História das Ideias no Brasil), de João Cruz Costa (História das Ideias no Brasil), de Vamireh Chacon (História das Ideias Socialistas no Brasil), de Paulo Mercadante (A Consciência Conservadora no Brasil) e de Fernando Azevedo (A Cultura Brasileira), autores que sempre se interessaram por grandes sínteses. Pode ser lido como um manual, a exemplo de Mariza Veloso e Angélica Madeira (Leituras Brasileiras). Pode ser lido também como um guia de leitura, como se lê Nelson Werneck Sodré (O que se deve ler para conhecer o Brasil). 

(...)

Paulo Roberto valeu-se de fontes primárias, lendo diretamente todos os autores que estudou: Cairu, Hipólito, Bonifácio, Varnhagen, Bernardo Vasconcelos, Paulino de Sousa, Paranhos (pai e filho), Nabuco, Rui, Monteiro Lobato, Afonso Arinos, San Tiago Dantas, Merquior, Roberto Campos. Há também a presença de fortíssima literatura secundária e explicativa: José Murilo de Carvalho, Vianna Moog, Emília Viotti da Costa, Antonio Cândido, Arno Wehling, João Camilo de Oliveira Torres, João de Scantimburgo e muitos outros. Há também a oportuna presença do historiador inglês Leslie Bethell, que tanto nos estudou.  

Construtores da Nação é um livro de história econômica, de história de nossa política externa, de historiografia crítica, de história política e de história sociológica. O autor quebra os limites entre várias disciplinas. Do ponto de vista historiográfico, é também um livro de profecias em forma de hipóteses, o chamado “what if” dos autores de expressão inglesa. É o caso, por exemplo, da reflexão em forma de lamento, que o leitor constata quando Paulo Roberto critica a sucessão de Getúlio, em 1945, que se fez em torno de um inexpressivo e hesitante general. A ascensão de Osvaldo Aranha, naquele momento, insiste Paulo Roberto, teria radicalmente alterado o rumo de nossa história.

(...)

Para os interessados em história econômica, as sessões sobre Cairu e Mauá são aliciantes. O tema das vantagens comparativas em Cairu, e suas posições contrárias à escravidão chamam a atenção. Paulo Roberto levanta o chamado problema Cairu, que radica no reducionismo de Sérgio Buarque de Holanda, prestigiado por um prefácio de Antonio Candido, para quem o autor de Visões do Paraíso teria desmascarado “a posição extremamente reacionária de Silva Lisboa”. Paulo Roberto explica-nos o equívoco que há nas tentativas de comparação entre Cairu e Hamilton, no contexto da importância do protecionismo para colônias ou colônias em processo e independência econômica. 

Também do ponto de vista da história de nossas ideias econômicas é importante o capítulo que explora as tensões entre Roberto Simonsen e Eugenio Gudin. Trata-se de um debate interminável. Simonsen defendia a planificação e a presença do Estado na organização econômica. Gudin defendia o liberalismo e o mercado. Para Paulo Roberto, Gudin mostrava-se como “uma espécie de Dom Quixote da economia de mercado”

(...)

Em Construtores da Nação há todo um panorama que fixa o pano de fundo e ao mesmo as bases de nossa condição brasileira. É um livro sobre pensadores brasileiros, que pensaram o Brasil, na compreensão de um brasileiro que também pensa o Brasil, com independência e firmeza de convicções. Em tempos de crise (e parece-me que a crise é de todos os tempos) fundamental que pensemos a crise em que estamos, na perspectiva daqueles que de certo modo sempre nos ensinaram como vencê-las, ou pelo menos como suportá-las. 

O problema, e creio essa a grande lição do livro de Paulo Roberto de Almeida, é que não aprendemos, por deficiência intelectual nossa, ou por preguiça também intelectual nossa, ou por desinteresse, ou por inaptidão para compreensão.

(...)

Brasília, julho de 2022.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo-USP

 

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Índice 

Construtores da Nação: projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior

 

Prefácio

       Arnaldo Godoy 

Apresentação

Nos ombros dos verdadeiros estadistas, Paulo Roberto de Almeida 

 

Introdução

Da construção do Estado à construção da Democracia 

 

Primeira parte: a construção do Estado

     O Estado antes da Ordem e da própria Nação 

1.  As vantagens comparativas de José da Silva Lisboa (Cairu)

2.  Por uma monarquia constitucional liberal: Hipólito da Costa  

3.  Civilizar os índios, eliminar o tráfico: José Bonifácio de Andrada e Silva

4.  Um Memorial para reformar a nação: Francisco Adolfo de Varnhagen

 

Segunda parte: a construção da Ordem

     Uma Ordem patrimonialista e oligárquica 

5.  Os liberais conservadores: Bernardo, Paulino e Paranhos

6.  Um aristocrata radical: Joaquim Nabuco 

7.  Bases conceituais da diplomacia: o paradigma Rio Branco

8.  O defensor do Estado de Direito: Rui Barbosa 

 

Terceira parte: a construção do Progresso

     O Progresso pelo Estado, com o Estado, para o Estado 

9.  Um empreendedor liberal numa terra de estatistas: Mauá

10. Um inglês imaginário e o nacionalista do petróleo: Monteiro Lobato

11. O revolucionário modernizador: Oswaldo Aranha

12. Duas almas pouco gêmeas: Roberto Simonsen e Eugenio Gudin 

 

Quarta parte: a construção da Democracia

     A Democracia carente de união nacional 

13. Em busca de uma esquerda democrática: San Tiago Dantas

14. O militante do parlamentarismo: Afonso Arinos de Melo Franco

15. As oportunidades perdidas do Brasil: Roberto Campos 

16. O liberalismo social de José Guilherme Merquior

 

A construção da Nação: um itinerário de 200 anos de história

 

Posfácio

O que a intelligentsia brasileira construiu em dois séculos de ideias e ações? 

 

Referências Bibliográficas para os Construtores da Nação 

Nota sobre o autor  

 

sábado, 28 de maio de 2022

Prefácio de Gelson Fonseca Jr., ao livro de J.A. Lindgren Alves: É Preciso Salvar os Direitos Humanos

 UM APELO NECESSÁRIO  

Gelson Fonseca Júnior

Prefácio ao livro de José Augusto Lindgren Alves:

É Preciso Salvar os Direitos Humanos

(São Paulo: Perspectiva, 2018)

 


 Para esta coletânea de artigos, José Augusto Lindgren Alves escolheu, com boas razões, um título que traz um apelo e tem sentido de urgência: É preciso salvar os direitos humanos. O apelo merece atenção porque feito por um dos mais notáveis especialistas brasileiros em direitos humanos, conhecido por sua ampla e respeitada produção. As reflexões de Lindgren começam a ser articuladas em 1989, quando apresenta a tese, As Nações Unidas e os Direitos Humanos, ao Curso de Altos Estudos, do Instituto Rio Branco. Em seguida, em 1994, publica seu primeiro livro, Os Direitos Humanos como Tema Global (Perspectiva, 1994) e, daí em diante, não interrompe mais a sua contribuição intelectual e diplomática à causa dos direitos humanos. No seu currículo, são sete livros e inúmeros artigos em revistas acadêmicas e jornais. Anoto que seus primeiros textos estão voltados para a diplomacia dos direitos humanos e todos se tornam referência necessária para quem estuda o tema, especialmente o Relações Internacionais e Temas Sociais: a Década das Conferências (IPRI-FUNAG, 2001). 

Gradualmente, o seu horizonte temático se alargou. As questões de direitos humanos naturalmente o estimularam a analisar os fatores sociológicos que condicionavam a sua promoção e aplicação. Também não faltou, em seus escritos, a preocupação filosófica, centrada no exame do sentido da universalidade da projeção dos DHs. Impressiona a maneira como Lindgren introduz a reflexão de clássicos, como Weber, Marx e Hannah Arendt, e de pensadores modernos, como Bobbio, Zizek, Lyotard, Alain Badiou, Derrida, Amartya Sem, Bernard-Henry Levy e, entre os brasileiros, Abdias Nascimento, Flavia Piovesan, Celso Lafer e Paulo Sergio Pinheiro. Assim, seus argumentos ganham em profundidade e estão em permanente diálogo com o melhor pensamento sobre os rumos da civilização na modernidade e na pós-modernidade. Na obra de Lindgren, ressalta ainda o fato de que suas ideias são, como se dizia, engajadas, ligadas frequentemente no debate nacional e internacional sobre as questões difíceis do campo. 

A carreira de Lindgren acompanha e estimula as suas reflexões. Ele chefiou a área de direitos humanos no Itamaraty em 95 e 96, participou das Conferências Globais das Nações Unidas, dos anos 90, a começar pela Conferência de Viena sobre Direitos Humanos, e, graças a seu conhecimento e reputação, foi eleito, a título pessoal, em 2002, como perito, para o Comitê para a Erradicação da Discriminação Racial (CERD), da Nações Unidas. Reeleito sucessivamente, está até hoje no Comitê. 

Nos artigos aqui compilados, todas as virtudes do pensador e do diplomata, do estudioso e do militante, aparecem e se combinam para propor uma reflexão madura, consistente, oportuna, e que deve ser lida, com proveito, por todos que querem um país (e uma ordem internacional) orientado por valores que sustentem a dignidade das pessoas e dos grupos sociais. Não tenho dúvidas de que o livro alargará o conhecimento de leigos e especialistas sobre o estado atual do debate sobre as questões de direitos humanos. E, ainda, vale a leitura pela elegância da apresentação dos argumentos, sempre claros, precisos, redigidos de tal forma que torna fácil mesmo a compreensão de temas complexos. 

A coletânea, organizada a partir de textos escritos entre 1996 e 2016, chama atenção, inicialmente, pela a abrangência da temática, unificada pela preocupação com o esmorecimento do prestígio da causa dos direitos humanos e suas consequências. O ponto de partida são os sinais múltiplos, crescentes, de que a luta pela defesa e promoção dos direitos humanas, que marca os anos 90, começa a sofrer distorções, encontra dificuldades para avançar. Aliás, como para provar que o problema é agudo e urgente, em fins de dezembro de 2017, o Princípe Zeid Raád Hussein, comissário de direitos humanos da ONU, anunciava que desistia de um segundo mandado na função com palavras contundentes, “After reflection, I have decided not to seek a second four year term. To do so, in the current geopolitical context, might involve bending a knee in supplication; muting a statement of advocacy; lessening the independence and integrity of my voice – which is your voice”.

No abrangente diagnóstico que Lindgren faz do problema do esmorecimento da causa dos DHs, a evolução recente do contexto político internacional e o comportamento das potências é um deles. Mas, sem hierarquizá-los, há outros fatores que, acredita o autor, se tornaram estruturais, como o da transferência da luta universal para causas particulares pela via do multiculturalismo e a própria dinâmica da burocracia internacional de DH que se multiplica em detrimento da eficácia. É impressionante o arsenal de argumentos, apoiado sempre por ilustrações valiosas, que Lindgren coleciona para demonstrar a sua tese. Parece que nada, na história recente da promoção dos direitos humanos, escapa a seu escrutínio. Lida com o tema da xenofobia na Europa, das torturas em Guantánamo, da evolução complicada da situação na Bósnia, de posições de Bento XVC, da ocidentalidade dos direitos humanos e muito mais. Resume a história da trajetória do sistema de direitos humanos, discute a diferença que tem em relação ao direito humanitário e mostra em que condições (paz e guerra) podem e devem ser aplicados. Também é valiosa a análise de dentro dos mecanismos multilaterais, especialmente da CERD. Neste tema, aliás, creio que a sua contribuição é única e reveladora. 

Uma das forças do texto é o de que não foge à polêmica. É corajoso, como tem sido corajosa a sua participação no CERD, muitas vezes isolado, ao enfrentar temas espinhosos como o dos excessos do politicamente correto. As afirmações de Lindgren são frequentemente contundentes, em retórica forte, sem meias palavras. Ao refletir com indignação racional ao que vê, combina sentimentos fortes e argumentos fortes. O descaminho da luta pelos direitos humanos, em sua concepção mais valiosa, como a que está fixada na Conferência de Viena de 1993 não é uma perda menor para uma ordem internacional carente de padrões éticos e, sobretudo, para homens e mulheres ainda discriminados, ainda longe de gozar direitos dos mais elementares direitos. 

Para situar as origens da preocupação de Lindgren, é necessário lembrar o que a causa dos direitos humanos realizou ou ajudou a realizar. A aceitação da universalidade dos direitos humanos e sua articulação multilateral em Viena têm reflexos notáveis para a luta social pela dignidade humana, nos últimos anos. Lindgren lembra que os direitos da mulher foram reconhecidos como integrantes dos direitos humanos universais; os homossexuais no Ocidente puderam começar a assumir-se; a escravidão passou a ser encarada como aberração equiparável aos crimes contra humanidade; a expressão afrodescendentes se firmou nos foros internacionais para abranger categorias distintas de negro e mestiços. No âmbito do direito brasileiro, os crimes contra a honra perderam legitimidade; aboliram-se conceitos como o de filhos bastardos e adulterinos; o próprio adultério deixou de ser crime; os homossexuais ganharam direitos civis iguais aos dos homens e mulheres; iniciaram-se as ações afirmativas para compensar desigualdades históricas. Cada uma dessas conquistas tem uma história própria, singular. Porém, a inspiração universalista dos direitos humanos, ao criar uma moldura ideológica consistente em defesa da dignidade individual, está presente em todas. 

É evidente que o trabalho de levar adiante as propostas e determinações da Declaração Universal dos Direitos Humanos, renovadas pela Conferência de Viena, e por tantos outros documentos internacionais, está longe de ser completada. Nos anos 90, no imediato pós-Guerra Fria, a percepção dominante era de que a conquista da universalidade dos DHs estava garantida e se tornava parte obrigatória do repertório de legitimidade internacional, constituindo referência política que com a vocação da permanência. As lutas não seriam por princípios ou teses, mas para realizá-los, para fazer com que modelassem a realidades; o que se pretendia eram mudanças de normas jurídicas, de comportamentos, de atitudes individuais e coletivas. Vale citar Lindgren que esclarece com acuidade o que significam: 

Com sua natureza cogente e valor referencial abrangente, os direitos humanos não são e não podem representar objetivos em si. Constituem, sim, instrumentos internacionais de conformação normativa, insuficientes, mas úteis, à disposição, em primeiro lugar, da cidadania para a obtenção do avanço social com justiça. 

 

O projeto não era, portanto, de curto prazo, mas incorporava e organizava aspirações da humanidade que vinham do Iluminismo. É verdade que, desde sempre, reconhecia-se que alguns dos obstáculos eram evidentes, como a manipulação política da causa, o alcance das exceções culturais, mas não seriam intransponíveis. Ou melhor, estavam lançados no caminho, atrasariam aqui e ali a aplicação do projeto maior, mas não mitigavam a força e a legitimidade dos objetivos. 

As esperanças de uma trajetória de afirmação crescente do espírito de Viena encontraram, porém, ao longo dos anos 90, novos obstáculos, tema central de Lindgren nesta coletânea, especialmente dos que foram criados como são fruto indesejado do sucesso “ideológico” da causa dos direitos humanos. Os obstáculos “antigos” não desapareceram e as restrições de direitos dos governos impostas por governos arbitrários, seculares ou teocráticos, as dificuldades de acesso de largos contingentes a bens que garantam dignidade mínima, continuam e precisam ser combatidas como têm sido. Há, porém, problemas novos, como a discriminação e a estigmatização de grupos sociais, o tratamento de emigrantes, e as formas inconcebíveis de tratamento de prisioneiros de guerra.[1] Como Lindgren aponta com razão, “Por mais que os Estados, democráticos ou não, precisem agir contra o crime e o terror para a proteção imprescindível à convivência e ao próprio usufruto dos direitos, as ações de prevenção e repressão têm regras mínimas”..., pois, caso contrário, “constituem uma desumanização do humano, sejam os alvos inocentes ou culpados... correspondem... à denegação daquilo que Hannah Arendt chamou `direito de ter direitos´.” Mais grave ainda, é a rapidez com que o mundo assimilou a tortura de muçulmanos suspeitos de terrorismo, assim como a reação superficial dos Estados responsáveis diante do clamor inicial contra ela”. Um sintoma do enfraquecimento da luta pelos direitos humanos é que praticamente desaparece da plataforma das lideranças políticas, mesmo em países ocidentais desenvolvidos (e os textos são anteriores à eleição de Trump para o Governo dos EUA).

Há dois outros fatores para os quais Lindgren chama atenção e que seriam o eixo central de sua reflexão: o multiculturalismo essencialista que permeia o discurso dos direitos humanos e as distorções que sofrem as instituições que foram criadas para a defesa dos direitos humanos. Nos dois casos, e daí a necessidade de debatê-los, há uma espécie de distorção de objetivos da luta original, ou por intepretações equivocadas dos preceitos originais (mas que tiveram significativo apelo social e político) ou por crescimento desordenado da burocracia multilateral que lida com os instrumentos que aplicam as normas e resoluções dos pactos e resoluções multilaterais. Os dois movimentos, por razões diferentes, levam a que se enfraqueça o que Lindgren considera o fundamental da causa dos direitos humanos, o sentido universal e a defesa do indivíduo. E, teriam paradoxalmente resultado do êxito de Viena, que aborda em um dos mais interessantes capítulos da coletânea. 

O primeiro tema, o essencialismo multiculturalista, é especialmente complexo e boa parte dos artigos, direta ou indiretamente, o aborda. O universal tem limites, aceitos pela própria Declaração de Viena (art. 5), e, como é difícil imaginar, para as exceções culturais, uma solução conceitual unívoca, o ajuste de seus termos se transfere para situações concretas. O significado de universal é fácil de conceber e está alicerçado por uma longa tradição da filosofia ocidental, fundada na concepção da igualdade fundamental dos seres humanos. O problema é o particular exatamente porque cada “particular” tem limites singulares, mais ou menos impermeáveis à incorporação das condicionantes que o universal sugere ou impõe. Lindgren aceita a ideia da diversidade como enriquecedora do convívio social e compreende a necessidade de que se estabeleçam políticas publicas para grupos vulneráveis. Mas, o que o preocupa é a “confusão que ora se faz entre os direitos culturais da Declaração Universal e os hoje alardeados ´direitos das culturas´ e direitos das minorias´”. Por várias razões e a primeira é doutrinária: tais direitos, consagrados em vários documentos, podem e devem ser defendidos, porém não seriam, em sua acepção mais rigorosa, direitos humanos pois lhes faltaria a condição universal. 

Outro problema é que a capa conceitual dos direitos das minorias abriga realidades muito diferentes e que rejeitam tratamento uniforme. A proteção dos costumes de uma tribo yanomami tem pouco que ver com o debate sobre o casamento arranjado entre os roma. “É um contrassenso equiparar os direitos humanos de pessoas discriminadas e perseguidas pela cor… ou dos indígenas e quilombolas que sempre viveram fora da sociedade principal, com o direito à diferença de culturas discriminadas ou não que, por vontade própria ou ideologia assumida, rejeitam esforços de integração na sociedade onde vivem”. Se se deixasse a cada grupo autodefinir os limites de sua particularidade e consequentemente a medida de aceitação das normas da sociedade em vivem e convivem, a fragmentação e o conflito dentro daquela sociedade poderia se exacerbar. Porém, não parece o melhor caminho impedir que, em alguma medida, os grupos definam o que lhes é essencial para preservar como grupo. Como se chega com razoabilidade ao limite do particular? A medida da defesa do particular tende assim a se converter em um processo político em torno de valores. Para Lindgren, a solução será sempre a de um universalista convicto, como ele mesmo se intitula. É o padrão de legitimidade dos DHs que oferece a melhor defesa para que os discriminados se protejam da discriminação e a melhor referência para circunscrever o que é particular. Como ele adverte, o particular sem limite pode gerar um tipo de fundamentalismo do politicamente correto, falsamente progressista, pode justificar a contrario sensu as tendências fascistas, ultranacionalistas que vêm ganhando terreno mesmo nas democracias ocidentais. O risco maior, porém, é político, como mostra em um capítulo notável, “O culturalismo como separatismo”, de que vale citar a conclusão: “O discurso culturalista não cria de per si reações perigosas, mas ao estimular diferenças, em vez de conciliá-las com algum sincretismo equânime, certamente fornece insumos que alimentam o racismo e a segregação”. 

Outro fator estrutural que minaria os ideais de Viena está ligado às opções de políticas econômicas e sociais que começam nos anos 90, com a hegemonia do neoliberalismo. Nas palavras de Lindgren, vivia-se um paradoxo, pois o apogeu do discurso humanista coincidia com a destruição de suas condições de realização.[2] Viena programara iniciativas que exigiam mais do Estado enquanto o sistema econômico exigia o Estado mínimo. A questão persiste e as crises financeiras em países como a Grécia e Portugal tiveram, como resultado, um encurtamento de vantagens e benefícios sociais (da assistência médica às pensões) que não seriam recuperados no curto prazo. É evidente que, nos países desenvolvidos, a rede de proteção social, mesmo prejudicada, ainda atende e responde a seus objetivos básicos. O problema é mais dramático nos países em desenvolvimento, mesmo no Brasil, em que a rede dos serviços sociais ainda está longe da eficácia e problemas como o envelhecimento da população alimenta problemas fiscais similares ao das economias maduras. O fato é que as realidades variam e muito. Nos Estados Unidos, por exemplo, uma das consequências da dominância do mercado (na sua forma recente) foi o aumento da concentração de renda e, mais grave, as tentativas de atenuá-las, como o Obama CARE BAMACARE, estão sendo questionadas: do outro lado do espectro político, na China, é evidente a melhoria da situação econômica de parte significativa da população, mas o progresso é limitado no campo dos direitos políticos. A natureza diferente dos problemas não diminui e, sim, reforça a necessidade de aceitar a inspiração universal dos direitos humanos. Se as soluções, em cada caso, serão diferentes, umas a exigir transformações estruturais, outras, mudanças conjunturais, umas, reformas institucionais, outras, ajustes de política, a necessidade de garantir e elevar a dignidade humana é a mesma em qualquer quadrante do planeta. Se não existe um receituário claro e único, é indispensável retomar a inspiração dos DHs, reintroduzi-la plenamente nos processos políticos. 

Um dos problemas decorrentes da concentração dos direitos humanos na luta identitária, ainda na visão de Lindgren, é o esmaecimento da compreensão das raízes estruturais de problemas que levam discriminação. A proliferação das lutas localizadas, ainda que tenham sobradas razões, convalida uma visão fragmentária da sociedade. As ligações estruturais entre classes desaparecem e luta social se dispersa. De novo, o problema é complexo e, ao estudá-lo, Lindgren oferece uma das chaves para compreender a sociedade contemporânea. Sem esquecer as distinções nacionais e regionais, no plano global, a desigualdade entre níveis de desenvolvimento ainda é avassaladora e não tem diminuído uniformemente. A diferença entre os países desenvolvidos e os estados “falidos” não precisa ser sublinhada para mostrar a diversidade do mundo. Aceitas as diferenças, o fato é que a própria natureza do mundo do trabalho que serviu, desde a Revolução Industrial, para definir identidades deixa, por razões muitas, de fazê-lo.[3] Com a globalização, mudam a economia e a sociedade. Muda também a natureza do trabalho e esmaecem os instrumentos tradicionais de protesto e revolta, mas não o quadro de desigualdade, de pobreza, de vulnerabilidades humanas. Creio que é este o contexto em que se dá a explosão das lutas identitárias que, na visão do autor, por justas e necessárias que sejam, seriam sempre limitadas e circunscritas, com o risco de que sejam usadas para que se esqueçam os problemas sociais maiores. Como o Lindgren afirma, “a tendência ora predominante do sistema é de privilegiar minorias em detrimento das atenções para o conjunto. Pouca atenção é dada internacionalmente aos direitos das camadas gigantescas de pobres sem etnia ou outro elemento diferencial que os destaque. Para o liberalismo hegemônico, os simplesmente pobres são marginalizados porque fora do mercado, responsabilizados pela própria pobreza num círculo vicioso que só pode levar ao crime”. 

Outro resultado paradoxal do êxito de Viena foi a multiplicação dos foros e instrumentos de promoção dos DHs. Aqui, a análise que Lindgren faz é especialmente valiosa (até porque raramente os membros de instituições multilaterais são tão claros e abertos nas críticas que fazem às mazelas do sistema). O diagnóstico é de novo contundente. Para proteger a situação de grupos ou categorias de pessoas, o sistema de promoção e proteção dos direitos humanos, ampliou o número de relatores temáticos (hoje mais de 30), multiplicou normas e instrumentos que, se revelam objetivos nobres e mesmo necessários, “torna o conjunto complexo, frouxo, sem hierarquia, com elementos claramente conflitivos”. Entre as consequências, a primeira é tornar difícil, mesmo para o especialista, acompanhar a profusão de recomendações que emana dos órgãos, recomendações que, muito frequentemente, caem no vazio porque os Estados simplesmente não têm condições de cumpri-las. Aliás, neste capítulo, são valiosas as observações de Lindgren sobre as demandas de estatísticas que incluam os grupos étnicos que, em muitos casos, são absolutamente irrealistas (como no caso de Luxemburgo) e, em outros, especialmente em países africanos (e mesmo europeus), conducentes a situações conflitivos mais do que positivas para o quadro de convivência social. O velho vício do irrealismo, tão frequente nas decisões multilaterais, frequenta, com vigor, o sistema de direitos humanos. 

A partir da sólida matriz conceitual que Lindgren construiu para o seu argumento, creio que um dos interesses na leitura da coletânea é o mosaico que o autor cria, tornando possível olhar, de vários ângulos, a questão central e, a cada passo, entender o seu alcance, suas nuances e, sobretudo, o porquê de seu apelo para salvar os direitos humanos. 

Na parte final do livro, Lindgren examina sua participação na CERD, além de levantar vários temas que chegaram à agenda da opinião pública. 

Assim, o relato da sessão comemorativa dos Cinquenta Anos da Convenção sobre Eliminação da Discriminação Racial é a oportunidade para discutir temas como a islamofobia, as opções históricas para o movimento dos afrodescendentes nos Estados Unidos, o alcance do conceito de minorias, o racismo como fenômeno planetário, a questão do politicamente correto e os exageros que pode induzir.[4] Ao longo do capítulo, questões como a polêmica sobre o uso da burca ou a atitude dos que afirmam que os DHs servem para proteger criminosos, são abordados com franqueza e com sólidos argumentos. O capítulo sobre a Americanização Global é um resumo perfeito de tendências que ele tem observado com a preferência pelos particulares, induzido pelo multilateralismo, com consequências negativas para o sentido universal que deve comandar a promoção dos direitos humanos. 

Na narrativa sobre a sua participação no CERD, Lindgren discute o “essencialismo multicultural”, mostrando as distorções que o conceito de etnia introduz, levando a que, em certas circunstâncias, o Comitê tenda a “dar mais atenção às etnias como comunidades a serem mantidas intactas do que as manifestações de racismo contra elas”. Para ele, além do fato de que o multicultural cai mais na competência da UNESCO do que propriamente na de um órgão de direitos humanos, “algumas das práticas recomendadas para situações específicas aparecem como regras uniformes, aplicadas a todos os casos como se a realidade devesse sempre amoldar-se a um parâmetro nunca definido na Convenção.” É valioso o seu depoimento sobre a tentativa de debater o alcance do “multiculturalismo” na Comitê para esclarecer o que se pretendia, ou defender a integração das minorias na sociedade onde se inseriam, mantendo o essencial de suas culturas, mas observando as regras abrangentes, ou mantê-las separadas com suas culturas intocáveis. Lindgren defende a primeira opção que se identifica com as propostas de Martin Luther King e Mandela, mas não consegue que o órgão adote uma posição clara sobre o tema. Mostra em seguida como certas recomendações gerais, como o levantamento de estatísticas que desagreguem as etnias podem simplesmente não ter sentido e, mais grave, em certas circunstâncias, levar a exacerbação de conflitos e não ajudarem a conciliação nacional, especialmente em países africanos. O argumento ganha força pela análise criteriosa de decisões do CERD, de maneiras como examina e decide sobre situações de países.[5] É especialmente valiosa a análise que faz da sessão de 2012, mostrando como evolui o debate em torno dos relatórios do Quênia, do Reino Unido, do Canadá, de Portugal, do Vietnã, do México, dos países muçulmanos e dos Estados Unidos. Entramos na intimidade do Comitê, de suas tendências e impasses, sempre apresentados com franqueza e objetividade. Temos, assim, na coletânea, um documento precioso para quem for estudar processos de decisão em organismos internacionais. 

Vale ainda, e muito, a leitura dos capítulos em que Lindgren discute o terrorismo, a crise dos refugiados (aqui, de maneira premonitória porque o artigo é de….), uma fala polêmica de Bento XVI, uma fotografia que ficou conhecida como o da Pietá Muçulmana, a caricatura de imagens sagradas… enfim, nada de relevante e polêmico na questão dos direitos humanos escapa ao exame sensível de Lindgren. 

O fato de que o tema dos direitos humanos tenha perdido prestígio pode levar a uma atitude um tanto pessimista, mas não menos engajada e, no fundo, esperançosa que a luta volte aos melhores trilhos. A cada capítulo, sempre aparecem ideias e sugestões sobre correções possíveis. Seu trabalho no CERD, muitas vezes solitário, a frequência com que traz ao debate público os problemas da promoção dos direitos humanos, são credenciais importantes para uma luta complexa, difícil, com revezes, mas uma luta necessária e urgente. Uma das perguntas que fica é quem salvará, como se retomará a luta, com que forças Lindgren conta em seu esforço e pregação. Penso que uma das diferenças entre os anos 90 e hoje é que os atores que levaram adiante a causa ou se enfraquecem ou a abandonaram. É difícil, como ele mostra, reconstituir a coalizão de ONGs, movimentos sociais e, especialmente, governos das potências ocidentais na mesma direção. A questão dos direitos humanos é, ao fim e ao cabo, parte de processos políticos. Por mais que a ordem seja influenciada por movimentos sociais, não seja mais exclusivamente entre soberanos, o fato de que, no universo internacional, as hegemonias dependem de poder. Como mobilizá-lo? Falando de direitos humanos, Lindgren fala dos processos ideológicos no mundo contemporâneo, de novas padrões de disputa de poder, de rumos civilizacionais, que opõem fundamentalistas e modernizadores, entre dogmáticos e secularistas, entre teocratas e humanistas conflitos inter e intra-religiosos que se acavalam a rivalidades políticas intertribais e interétnicas. Valores e poder andam sempre juntos. E nem sempre é fácil casar os melhores valores com os que comandam as forças hegemônicas. Porém, há modos de contornar o problema quando se manifesta a dissintonia. Creio que uma das consequências permanentes de Viena é que o sentido universal da defesa dos direitos humanos vale em si mesmo. Vale como padrão de legitimidade, mesmo contra forças hegemônicas. Pode ser descumprido, pode ser distorcido, mas a referência de legitimidade persiste. É preciso afirmá-lo com força e bons argumentos. Por várias razões, tão bem descritas e analisadas por Lindgren, a aspiração universalista não foi quebrada, mas está certamente fragilizada. A causa ficou esmaecida, confusa talvez, e, nem assim, se enfraqueceu. Não há melhor apelo para reconstituir o movimento que o apelo de livros como o de J. A. Lindgren Alves.

 



[1] Em suas palavras: “Seguramente ninguém que defendesse os direitos humanos poderia aceitar, em qualquer circunstância, as torturas e tratamentos degradantes infligidos aos prisioneiros em quartéis e prisões americanas em Guantánamo, Al Ghraib, Baghram e outras. Não obstante, nenhuma resolução condenatória, nenhuma reprovação formal pelo sistema de proteção aos direitos humanos foi formalmente subscrita”.

[2] Lindgren é contundente na crítica ao liberalismo, Em lugar da democracia política, o que se veio a implantar com a globalização econômica foi o ´liberalismo´ da eficiência selvagem, sem contrapesos ou pruridos de preocupação social… Longe das liberdades e direitos fundamentais esperados, a liberdade que se afirmava no planeta era uma liberdade econômica não emancipatória”.

[3] Basta lembrar que, nos países latino-americanos, especialmente no Brasil, as greves já não estão ligadas ao trabalho industrial, mas a categorias de serviço, especialmente de funcionários públicos.

[4] Há alguns relatos de episódios que viveu no CERD que são a ilustração evidente de como se distorce o politicamente correto. Um deles é a crítica à representação do Papai Noel na Holanda que é acompanhado de um menino “negro”, o que foi visto como racista. Porém, esclareceu-se que o menino não era negro, mas estava negro, pois como o ajudante do Papai Noel, encarregado de distribuir os brinquedos, descia pelas chaminés e, claro, se sujava com a fuligem.

[5] Um dos exemplos que lembra é o de Luxemburgo que, com população de 500 mil habitantes e é constituída por 43% de estrangeiros de mais 170 nacionalidades. Por eximir-se de apresentar a estatística desagregada, o CERD é censurado e instado a fazê-lo. Demandas similares foram feitas a países africanos que, evidentemente, tem problemas peculiares e as distinções étnicas alimentadas pelas potências coloniais e que, caso se fomentassem sistemas especiais de proteção a minorias, teria certamente consequências negativas para as bases de unidade nacional. Os exemplos que dá sobre as recomendações a Ruanda são eloquentes da aplicação de uma perspectiva racialista. Também exemplares a análise que faz da atitude do Comitê em relação aos Estados Unidos e ao Iraque e o ISIS.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Visconde do Uruguai: o "pai fundador" da diplomacia brasileira livro de Paulo Fernando Pinheiro Machado, prefácio de Paulo Roberto de Almeida

Convido os interessados em história diplomática a conhecer o livro recém publicado sobre o Paulino José Soares de Souza, pois ali se situa, verdadeiramente, o nascimento da diplomacia brasileira. Como estimulante, ofereço meu prefácio ao livro.

Paulo Roberto de Almeida


A construção da diplomacia brasileira por um de seus pais fundadores

  

Paulino José Soares de Souza não figura entre os founding fathers da nação, inclusive porque, nascido em Paris, em 1807, só tinha 15 anos quando da declaração da autonomia, em 1822. Mas, ele foi, indiscutivelmente, um dos pais construtores do Estado brasileiro e um dos fundadores de sua diplomacia, tal como ela conseguiu se libertar de duas pesadas amarras da herança internacional portuguesa e passou a cuidar, verdadeiramente, dos interesses nacionais. Este livro, do eminente colega diplomata e distinto intelectual Paulo Fernando Pinheiro Machado, consolida toda a informação disponível sobre a atuação de Paulino como chanceler (duas vezes), tanto no plano conceitual, quanto no terreno da prática, tendo ele “encerrado” dois episódios que tinham ficado em aberto desde a independência, e dando a partida a uma política externa que será continuada por seus sucessores, com destaque para os dois Rio Branco, o visconde e o barão, cuja tradição de qualidade tornou-se um patrimônio da diplomacia republicana, prolongada até praticamente o período recente.

O Brasil nascente iniciou-se na vida internacional tendo de resolver três problemas herdados da política externa de Portugal, dos quais o primeiro foi contornado logo após a Restauração dos Bourbons na França pós-napoleônica e dois outros prolongados justamente até a atuação de Paulino, no começo dos anos 1850. Caiena, a futura Guiana francesa, que tinha sido ocupada por forças enviadas pelo príncipe regente D. João logo após a chegada da Corte portuguesa no Rio de Janeiro – uma forma de vingança contra Napoleão, que tinha mandado invadir Portugal em 1807 –, foi devolvida à França pelo tratado de Utrecht de 1817. Mas o problema do tráfico escravo, nas relações com a principal potência da época, a Grã-Bretanha, e a questão da Cisplatina – o futuro Uruguai, também invadido por forças portuguesas durante a presença da Corte no Brasil –, incorporada ao território do Império, e foco do nosso primeiro conflito com as Províncias “Desunidas” do Prata, permaneceram como dois focos imediatos de tensão nas relações exteriores da nova nação independente, ao lado e além do próprio reconhecimento diplomático do novo Estado pelas demais potências e vizinhos regionais, finalmente resolvido a partir de 1825. Essas duas questões só foram resolvidas, pelo menos nos seus aspectos mais cruciais, graças à atuação de Paulino na sua segunda encarnação como ministro dos Negócios Estrangeiros, antes mesmo que ele recebesse o título de Visconde do Uruguai, que só chegou em 1854, depois que ambos já tinha encontrado soluções satisfatórias, graças ao segundo melhor chanceler do novo Império do Brasil, depois do primeiro, José Bonifácio, um dos pais fundadores, também conhecido como o “patriarca da Independência”.

Este livro tem um título apropriado, “Ideias e diplomacia”, pois estes são os dois grandes conceitos em torno dos quais Paulo Fernando Pinheiro Machado organiza os seus argumentos substantivos, mas também traz, em seu subtítulo, uma afirmação mais do que apropriada: o “nascimento da política externa brasileira”. Com efeito, até o começo das Regências, a política externa do Brasil tinha sido quase “portuguesa”, e não só pelos problemas do Prata e do tráfico, mas também em função das tribulações de D. Pedro I com os assuntos da antiga metrópole: entre estas se incluem as desventuras de D. João VI de volta ao trono de Portugal, a ambição de D. Miguel, irmão de D. Pedro, este o herdeiro legítimo da coroa na morte (altamente suspeita) do pai em 1826, sua luta deste para fazer de sua filha, Maria da Glória, a legítima sucessora como futura D. Maria II, em benefício de quem abdicou da coroa portuguesa, o que só se efetivourealmente depois da verdadeira guerra civil que teve de travar contra o absolutista D. Miguel, já após sua própria abdicação como imperador do Brasil e volta definitiva a Portugal, em 1831. 

A política externa do primeiro Reinado foi, assim, “portuguesa”, pelo menos em certa medida, por causa dessas desventuras sucessórias, mas também tolhida pelos dois outros problemas que atazanaram a pequena Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros por mais de duas décadas numa delas. O problema da Cisplatina vinha da longeva tentativa lusitana de controlar pelo menos a margem superior do Rio da Prata – aliás, “descoberto” por um navegador português antes mesmo da passagem de Fernão de Magalhães, a quem se deve o nome da futura capital, Montevidéu, “monte vídeo” –, prolongada pela fundação e diversas ocupações da Colônia do Sacramento (onde nasceu Hipólito da Costa, que também pode ser considerado um dos “pais fundadores” da nação), até esta ser “devolvida” à Espanha pelo tratado de Madri de 1750, em troca das missões jesuíticas no Rio Grande do Sul. Foi um erro da administração do império português no Brasil ter ocupado um território visivelmente castelhano, antigamente pertencente ao Vice-Reinado do Rio da Prata (como também era o caso do Paraguai e do sul da futura Bolívia) e foi um erro ainda maior da constituição do nascente Império ter incorporado à jurisdição do novo Estado uma Província Cisplatina, à qual eram reconhecidos um sistema tributário diferente do resto do Império, ademais da própria língua espanhola. Depois da guerrilha contra os seguidores de Artigas, vencidos pelos “brasileiros” – o próprio D. Pedro chegou a se deslocar ao Uruguai –, a guerra aberta travada pelos “orientales” de Lavalleja, com o apoio aberto de Buenos Aires, constituiu o primeiro percalço infeliz da política externa “brasileira”, que teve ainda de enfrentar a hostilidade da França e da própria Grã-Bretanha, a quem coube impor um armistício, já em 1828, base da independência da futura República Oriental. Mas os “estancieros” gaúchos e o próprio Brasil continuaram a se imiscuir nos assuntos internos uruguaios, o que ainda provocaria os demais conflitos no Prata, que se prolongaram até o segundo Reinado.

No outro dossiê herdado de Portugal, mas assumido plenamente pelos novos “donos” do Império, a tensão bilateral com a Grã-Bretanha por causa do tráfico escravo, os irritantes já vinham desde os tratados desiguais de 1810, que Portugal teve de contrair, continuaram no Congresso de Viena (1815), foram objeto de vários acordos bilaterais “para inglês ver”, antes e depois da independência, e continuaram envenenando as relações bilaterais durante todo o período regencial e ao início do segundo Reinado, quando o Bill Aberdeen passa a ameaçar a própria soberania do Império. Todos esses problemas são detalhadamente tratados no livro agora publicado – derivado de uma tese no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio Branco em 2010 –, mas não apenas em suas démarches propriamente diplomáticas, mas sobretudo no terreno da formulação política dos princípios e valores e dos fundamentos conceituais da diplomacia brasileira. 

Não cabe neste prefácio tratar de todas as questões práticas de diplomacia de que se ocupa Paulo Fernando Pinheiro Machado, com a minúcia de quem leu todos os relatórios, as obras do próprio Paulino e a literatura secundária, com foco centrado nesse “nascimento da política externa brasileira”, como evidenciado no subtítulo da obra. Mas, o seu texto é ainda mais precioso do ponto de vista intelectual, uma vez que ele se lança numa história das ideias, tanto as mais gerais – como as doutrinas políticas em voga em meados do século XIX –, como, principalmente, as do próprio Paulino, a quem ele trata pelo seu título nobiliárquico antes mesmo que ele adquirisse a distinção (Visconde “com grandeza”, como lhe atribuiu o imperador). Paulino não deixou memórias sequer um relato de sua imensa atividade à frente das diversas atribuições, diplomáticas ou outras, que recebeu desde a “correção” do Regresso, ainda no final das Regências, e durante o “tempo saquarema”, ao início do segundo Reinado. Mas ele deixou duas obras de “direito administrativo”, que são verdadeiros manuais de organização do Estado imperial, num momento em que este carecia de códigos, regulamentos e normas que pudessem guiar os dirigentes encarregados da gestão dos negócios internos e externos; Paulino foi um dos poucos a fazê-lo, com base numa leitura atenta da boa doutrina e dos estatutos em vigor nos principais países que moldavam o sistema internacional em sua época, tanto da tradição continental, quanto no âmbito anglo-saxão. 

Mais importante ainda, do ponto de vista da organização do corpo diplomático brasileiro e do próprio funcionamento da diplomacia do Império, que, naquela época, estava compartimentado em pelo menos três “carreiras” (o termo não se aplica inteiramente) distintas e separadas: os diplomatas propriamente ditos, que passavam a vida circulando entre os postos no exterior, as legações do Império na Europa, nas Américas e algumas na Ásia, os poucos funcionários da Secretaria de Estado no Rio de Janeiro, e os encarregados dos serviços consulares, geralmente dotados de menor consideração hierárquica e política, pois que se ocupando daqueles assuntos que eram desdenhosamente chamados de “secos e molhados”, ou seja, estampilhas cartoriais, vistos e rudimentos da promoção comercial. Foi Paulino que reformou o primeiro Regulamento da Secretaria de Estado – dado por Aureliano de Souza, em 1842 – e que produziu, de sua própria mão, uma sucessão de documentos que fundamentaram, organicamente, o funcionamento do antigo Ministério dos Negócios Estrangeiros, de uma forma que nunca tinha sido feita até então. A importância dessa obra administrativa, mais do que relevante, efetuada em sua segunda gestão como chanceler, merece que esses documentos de organização sejam mencionados por inteiro (e aqui eu recorro à excelente pesquisa feita pelo nosso colega Flávio Mendes de Oliveira Castro, na sua obra Itamaraty: dois séculos de história): 

1) a primeira organização do corpo diplomático brasileiro (Lei n. 614, de 22/08/1851);

2) o segundo regimento do corpo diplomático (Decreto n. 940, de 20/03/1852);

3) o decreto que fixou o número e as categorias das missões diplomáticas (1852);

4) o decreto que determinou uma inédita tabela de remuneração no exterior (1852).

 

Como explicitou Flávio Castro, esses quatro diplomas legais “vieram consolidar, em textos próprios, uma série de medidas administrativas, de disposições orgânicas e funcionais do Serviço Diplomático já capituladas, esparsamente, em administrações anteriores” (op. cit., Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, vol. I, p. 93). Mas Paulino fez ainda muito mais: ele se preocupou com a qualidade do capital humano com o qual deveria passar a trabalhar, doravante, a diplomacia brasileira. Como ainda relata Flávio Castro: 

Anexas ao Regulamento Paulino de Souza vieram à luz as

Instruções para o exame dos candidatos ao lugar de Adido de Legação, às quais se refere o Regulamento n. 940, de 20 de março de 1852

que acreditamos ser o primeiro programa oficial exigido para o ingresso na carreira diplomática. A Comissão Examinadora seria composta de três membros, presidida pelo Ministro de Estado. O exame deveria ser prestado publicamente, em sala da Secretaria de Estado, com a duração de duas horas, sendo 20 minutos dedicados a cada uma das seguintes matérias: 

1º. – Conhecimento das línguas modernas, especialmente da inglesa e francesa, devendo o candidato traduzir, escrever e falar esta última.

2º. – História Geral e Geografia Política, História Nacional, e notícia dos Tratados feitos entre o Brasil e as Potências estrangeiras.

3º. – Princípios gerais do Direito das Gentes, e do Direito Público nacional e das principais nações estrangeiras. 

4º. – Princípios gerais de economia política, e do sistema comercial dos principais Estados, e da produção, indústria, importação e exportação do Brasil.

5º. – A parte do Direito Civil relativa às pessoas e princípios fundamentais em matéria de sucessão.

6º. – Estilo diplomático, redação de despachos, notas, relatórios, etc.

O escalonamento da carreira foi assegurado pelo artigo 4º do Regulamento Paulino de Souza, que determinava o processo de ascensão ao cume da hierarquia. O funcionário progrediria ao cargo imediatamente superior, não dando mais margem às interpolações de adventícios. (...)

Os adventícios no Serviço Diplomático de então eram os Embaixadores de fora da carreira..., Chefes e Empregados de Missões Especiais, que poderiam ser também estranhos à carreira. Tais funcionários, se continuassem servindo ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, não teriam os benefícios e vantagens da estabilidade remunerada ou da aposentadoria...

No Regulamento Paulino de Souza não foram estabelecidas normas precisas sobre critérios a seguir para promoções. Há, porém, a referência de que o serviço em Legações de países americanos ou o exercício das funções de Secretário ou de Adido na Legação de Londres, além de outros, seriam motivos de preferências nas promoções... Segundo instruções especiais..., haveria uma revisão da lista de Adidos de 1ª. e 2ª. Classes, ‘a fim de serem eliminados aqueles que houverem dado provas de pouca capacidade, ou tiverem procedimento menos regular’. (Castro, 2009, p. 98-100; ênfases no original)

 

As reformas introduzidas por Paulino constituíram, sem dúvida alguma, a mais importante reforma estrutural jamais efetuada na carreira e no serviço diplomático até então, sendo que um novo Regulamento de organização só seria introduzido em 1859 pelo ministro José Maria da Silva Paranhos. Mas o Visconde do Rio Branco o fez sem tocar, por exemplo, nos requerimentos de seleção de adidos de 1ª. classe, porta obrigatória de ingresso na carreira, o que confirma que Paulino estabeleceu um padrão de qualidade no recrutamento dos servidores do quadro diplomático que seria invariavelmente seguindo, com as pequenas adaptações pertinentes, até os nossos dias. De fato, a aura de excelência do Itamaraty atual deita raízes nas reformas e nos estatutos concebidos, escritos e implementados por Paulino, antes até que ele recebesse a honra de ser elevado ao título de Visconde do Uruguai. 

Se examinarmos, por exemplo, a lista acima das matérias exigidas para a admissão de novos servidores constata-se que esse imenso conhecimento das mais diversas disciplinas continuou a ser exigido dos candidatos à carreira nos 170 anos seguintes, depois que Paulino traçou, pela primeira vez, essa amplitude de domínio de matérias afetas ao trabalho diplomático (e consular também, com variações apropriadas) que o aspirante precisaria ter antes de passar a integrar o reduzido, mas capacitado corpo diplomático brasileiro, uma obra magnífica de Paulino. Com efeito, no seu decreto 941, de 1852, ele também fixou o número e a categoria dos funcionários que caberia manter nas 21 missões diplomáticas que o Império passou a manter no exterior, integradas por 15 a 19 adidos, 7 secretários, 12 encarregados de negócios – no Paraguai, no Chile, conjuntamente na Venezuela, Nova Granada (Colômbia) e Equador, e em nove monarquias europeias –, 2 ministros residentes – na Bolívia e na Prússia e cidades hanseáticas – e 7 Enviados Extraordinários e Ministros Plenipotenciários (que são chamados atualmente de embaixadores), estes nas Américas (Estados Unidos, Confederação Argentina, Uruguai e Peru) e na Europa (Grã-Bretanha, França e Portugal). 

Em outros termos, Paulino conduziu, com maestria, não só a política externa do Império, como demonstra com total domínio de cada um dos assuntos substantivos Paulo Fernando Pinheiro Machado, como o estadista do Regresso também soube organizar, nos mínimos detalhes, toda a organização, o funcionamento e a seleção do pessoal diplomático. Ele estabeleceu um padrão de qualidade que, se foi modificado ao sabor da evolução natural da política regional e internacional do Brasil, jamais deixou de se pautar pelo espírito das normas e requerimentos exigentes que Paulino traçou em matéria de desempenho funcional e de rigor intelectual dos diplomatas recrutados para serviço exterior do país. 

Ao lado de outros grandes nomes vindos da Regência, liberais ou conservadores, como Bernardo de Vasconcelos, Honório Hermeto, Eusébio de Queirós Mattoso, Alves Branco e Paranhos, o Visconde do Uruguai foi um dos grandes estadistas e agentes políticos do Império, atuando tanto na esfera política, constitucional, administrativa, quando, principalmente, no nascimento e na consolidação de uma política externa propriamente brasileira, e não mais “portuguesa”, como ele ainda encontrou ao assumir pela primeira vez a chancelaria (em 1843). De 1849 a 1853, ele foi o mestre absoluto do todos os atos na frente externa, mesmo numa agenda tão pouco favorável à imagem do Brasil no exterior, como era a infeliz defesa do tráfico. Paranhos, que o seguiu mais adiante, também teve de se ocupar do dossiê da escravidão, o que ele fez pela Lei do Ventre Livre, em 1871. 

Esta obra primorosa – inclusive e principalmente pelo seu lado de “história das ideias” – rende homenagem à figura humana, ao homem político, ao pensador insigne e ao estadista excepcional que foi o Visconde do Uruguai, um formulador consistente das bases institucionais de funcionamento do Estado imperial, um leitor de Burke, de Guizot, de Tocqueville, mas que sabia adaptar doutrinas e regulamentos estrangeiros às condições materiais e sociais de uma nação ainda em formação como era o Brasil em meados do século XIX. Ele debateu com outros tribunos do Império, como Tavares Bastos ou Zacarias de Góis e Vasconcelos, sobre os temas mais candentes de nossa organização política, defendendo o modelo de Estado que ele julgava ser o mais conforme às possibilidades concretas de um país ainda atrasado em quase todos os quesitos civilizatórios, mas que ele pretendia ter uma estrutura administrativa e um corpo de funcionários similares, se não semelhantes, aos dos Estados mais avançados da Europa. 

Como escreveu sobre ele uma das principais estudiosas de sua obra e pensamento: 

No Brasil o mundo da política era, segundo Uruguai, desvirtuado e perigoso, sujeito às paixões e aos interesses mesquinhos nascidos nas localidades – onde faltavam homens talhados para agir visando ao interesse público. O maior dique contra esse mundo era a administração. Em toda a obra do visconde transparece a valorização da administração, terreno da neutralidade e da eficácia, em contraposição à esfera da política, presa fácil das facções. (Gabriela Nunes Ferreira, “Visconde do Uruguai: teoria e prática do Estado brasileiro”, in: André Botelho e Lilia Moritz Schwarcz (orgs.), Um enigma chamado Brasil: 20 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 18-31, cf. p. 26)

 

Senador do Império, ministro de Estado por duas vezes na Justiça e por três vezes na pasta dos Negócios Estrangeiros, embaixador em missão especial na França, para tratar do caso da Guiana – que só seria resolvido na República, pelo barão do Rio Branco –, Paulino José Soares de Souza não deixou um registro circunstanciado de seu imenso trabalho de gestor, de político, de chefe fundador de uma diplomacia verdadeiramente brasileira, mas ofereceu sua contribuição de estadista como autor de duas obras de direito administrativo. Seu neto, José Antonio Soares de Souza, deixou sobre ele um relato encomiástico, mas honesto, na obra A vida do visconde do Uruguai (1944), com ampla informação sobre cada uma de suas múltiplas atividades nos diversos cargos em que se desempenhou sempre de forma brilhante. Outros estudiosos importantes, como José Murilo de Carvalho, que organizou a reedição de suas principais obras (2002), ou Ilmar Mattos (1999), examinaram o seu trabalho como construtor do Estado imperial. Esta obra, de meu colega Paulo Fernando Pinheiro Machado, completa agora, pelo estudo de suas ideias e pelo acompanhamento de sua ação na diplomacia, o panorama virtualmente completo desse grande formador do Brasil na primeira fase de sua existência como nação independente.  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata e professor

Brasília, dezembro de 2021

 

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Livro sobre o Visconde do Uruguai: Ideias e Diplomacia, de Paulo Fernando Pinheiro Machado; prefácio de Paulo Roberto de Almeida

Um livro de um colega diplomata, que me fez a honra de pedir o prefácio: 


Paulo Fernando Pinheiro Machado: 
Ideias e diplomacia: O Visconde do Uruguai e o nascimento da política externa brasileira – 1849-1853 
(Lisboa: Lisbon International, 2022; ISBN: 978-989-37-2189-6).

SUMÁRIO

 

PREFÁCIO, Paulo Roberto de Almeida


INTRODUÇÃO

1. O PAPEL DAS IDEIAS NA POLÍTICA

    1.1 CATEGORIAS DE IDEIAS

    1.2 O IMPACTO DAS IDEIAS NA POLÍTICA


2. O CONTEXTO: O MUNDO RESTAURADO PÓS‑GUERRAS NAPOLEÔNICAS

    2.1 PAX BRITANNICA

    2.2 AS POTÊNCIAS DO CONCERTO EUROPEU

    2.3 A AMÉRICA ESPANHOLA E O RIO DA PRATA

    2.4 A POSIÇÃO DO BRASIL


3. ORIGENS E GESTAÇÃO DO PENSAMENTO DIPLOMÁTICO DO VISCONDE DO URUGUAI 

    3.1 ORIGENS FAMILIARES

    3.2 EDUCAÇÃO FORMAL

    3.3 RELAÇÕES SOCIAIS

    3.4 EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL


4. O PENSAMENTO POLÍTICO E DIPLOMÁTICO DO VISCONDE DO URUGUAI 

    4.1 O PENSAMENTO CONSERVADOR

    4.2 O PENSAMENTO POLÍTICO DO VISCONDE DO URUGUAI

    4.3 URUGUAI E O IMPÉRIO


5. A DIPLOMACIA COMERCIAL

    5.1 OS TRATADOS DESIGUAIS

    5.2 A REAÇÃO AO SISTEMA DE TRATADOS

    5.3 A DIPLOMACIA FINANCEIRA


6. A SITUAÇÃO FINANCEIRA NO PRATA EM MEADOS DA DÉCADA DE 1840

    6.1 A DIPLOMACIA FINANCEIRA DO VISCONDE DO URUGUAI

    6.2 LIMITES: A GRANDE POLÍTICA AMERICANISTA


7. A SITUAÇÃO NO MOMENTO DA INDEPENDÊNCIA

    7.1 A IDÉIA DE NACIONALIDADE NO BRASIL

    7.2 A POLÍTICA DE LIMITES ANTES DA GESTÃO DO VISCONDE DO URUGUAI

    7.3 A POSIÇÃO DO VISCONDE DO URUGUAI

    7.4 A POSIÇÃO DOS SUCESSORES DO VISCONDE

    7.5 AS RELAÇÕES COM A INGLATERRA: DO CONFLITO À PACIFICAÇÃO


8. UMA RELAÇÃO CONFLITUOSA: AS MÁGOAS DA INDEPENDÊNCIA

    8.1 A POSIÇÃO DO VISCONDE DO URUGUAI

    8.2 PRECURSORES E SEGUIDORES DA POLÍTICA DO VISCONDE

    8.3 O PRATA: DA NEUTRALIDADE À INTERVENÇÃO


9. O CONTEXTO GEOPOLÍTICO DA REGIÃO

    9.1 O CONTEXTO GEOPOLÍTICO DA REGIÃO

  9.2 A POLÍTICA DO IMPÉRIO PARA O PRATA ATÉ 1849: ABAETÉ E A DOUTRINA DA NEUTRALIDADE

   9.3 A POLÍTICA DO VISCONDE DO URUGUAI: A DOUTRINA DA INTERVENÇÃO

   9.4 A POLÍTICA PARA O PRATA DEPOIS DO VISCONDE


CONCLUSÕES

REFERÊNCIAS


Trechos do meu Prefácio:

A construção da diplomacia brasileira por um de seus pais fundadores

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor 

 

Paulino José Soares de Souza não figura entre os founding fathers da nação, inclusive porque, nascido em Paris, em 1807, só tinha 15 anos quando da declaração da autonomia, em 1822. Mas, ele foi, indiscutivelmente, um dos pais construtores do Estado brasileiro e um dos fundadores de sua diplomacia, tal como ela conseguiu se libertar de duas pesadas amarras da herança internacional portuguesa e passou a cuidar, verdadeiramente, dos interesses nacionais. Este livro, do eminente colega diplomata e distinto intelectual Paulo Fernando Pinheiro Machado, consolida toda a informação disponível sobre a atuação de Paulino como chanceler (duas vezes), tanto no plano conceitual, quanto no terreno da prática, tendo ele “encerrado” dois episódios que tinham ficado em aberto desde a independência, e dado a partida a uma política externa que será continuada por seus sucessores, com destaque para os dois Rio Branco, o visconde e o barão, cuja tradição de qualidade tornou-se um patrimônio da diplomacia republicana, prolongada até praticamente o período recente.

O Brasil nascente iniciou-se na vida internacional tendo de resolver três problemas herdados da política externa de Portugal, dos quais o primeiro foi contornado logo após a Restauração dos Bourbons na França pós-napoleônica e dois outros prolongados justamente até a atuação de Paulino, no começo dos anos 1850. Caiena, a futura Guiana francesa, que tinha sido ocupada por forças enviadas pelo príncipe regente D. João logo após a chegada da Corte portuguesa no Rio de Janeiro – uma forma de vingança contra Napoleão, que tinha mandado invadir Portugal em 1807 –, foi devolvida à França pelo tratado de Utrecht de 1817. Mas o problema do tráfico escravo, nas relações com a principal potência da época, a Grã-Bretanha, e a questão da Cisplatina – o futuro Uruguai, também invadido por forças portuguesas durante a presença da Corte no Brasil –, incorporada ao território do Império, e foco do nosso primeiro conflito com as Províncias “Desunidas” do Prata, permaneceram como dois focos imediatos de tensão nas relações exteriores da nova nação independente, ao lado e além do próprio reconhecimento diplomático do novo Estado pelas demais potências e vizinhos regionais, finalmente resolvido a partir de 1825. Essas duas questões só foram resolvidas, pelo menos nos seus aspectos mais cruciais, graças à atuação de Paulino na sua segunda encarnação como ministro dos Negócios Estrangeiros, antes mesmo que ele recebesse o título de Visconde do Uruguai, que só chegou em 1854, depois que ambos já tinha encontrado soluções satisfatórias, graças ao segundo melhor chanceler do novo Império do Brasil, depois do primeiro, José Bonifácio, um dos pais fundadores, também conhecido como o “patriarca da Independência”.

Este livro tem um título apropriado, “Ideias e diplomacia”, pois estes são os dois grandes conceitos em torno dos quais Paulo Fernando Pinheiro Machado organiza os seus argumentos substantivos, mas também traz, em seu subtítulo, uma afirmação mais do que apropriada: o “nascimento da política externa brasileira”. Com efeito, até o começo das Regências, a política externa do Brasil tinha sido quase “portuguesa”, e não só pelos problemas do Prata e do tráfico, mas também em função das tribulações de D. Pedro I com os assuntos da antiga metrópole: entre estas se incluem as desventuras de D. João VI de volta ao trono de Portugal, a ambição de D. Miguel, irmão de D. Pedro, este o herdeiro legítimo da coroa na morte (altamente suspeita) do pai em 1826, sua luta deste para fazer de sua filha, Maria da Glória, a legítima sucessora como futura D. Maria II, em benefício de quem abdicou da coroa portuguesa, o que só se efetivourealmente depois da verdadeira guerra civil que teve de travar contra o absolutista D. Miguel, já após sua própria abdicação como imperador do Brasil e volta definitiva a Portugal, em 1831. 

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Senador do Império, ministro de Estado por duas vezes na Justiça e por três vezes na pasta dos Negócios Estrangeiros, embaixador em missão especial na França, para tratar do caso da Guiana – que só seria resolvido na República, pelo barão do Rio Branco –, Paulino José Soares de Souza não deixou um registro circunstanciado de seu imenso trabalho de gestor, de político, de chefe fundador de uma diplomacia verdadeiramente brasileira, mas ofereceu sua contribuição de estadista como autor de duas obras de direito administrativo. Seu neto, José Antonio Soares de Souza, deixou sobre ele um relato encomiástico, mas honesto, na obra A vida do visconde do Uruguai (1944), com ampla informação sobre cada uma de suas múltiplas atividades nos diversos cargos em que se desempenhou sempre de forma brilhante. Outros estudiosos importantes, como José Murilo de Carvalho, que organizou a reedição de suas principais obras (2002), ou Ilmar Mattos (1999), examinaram o seu trabalho como construtor do Estado imperial. Esta obra, de meu colega Paulo Fernando Pinheiro Machado, completa agora, pelo estudo de suas ideias e pelo acompanhamento de sua ação na diplomacia, o panorama virtualmente completo desse grande formador do Brasil na primeira fase de sua existência como nação independente. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, dezembro de 2021