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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Delgado de Carvalho: Historia Diplomatica do Brasil, introducao Paulo Roberto de Almeida

Descubro agora que uma introdução que eu tinha feito em 1997 para uma primeira re-edição facsimilar do famoso livro de Delgado de Carvalho foi recentemente republicada numa nova edição, inteiramente refeita pelo Senado Federal.
Meus agradecimentos ao mestre editor Joaquim Campelo, do Conselho Editorial do SF:


1239. “Em busca da simplicidade e da clareza perdidas: Delgado de Carvalho e a historiografia diplomática brasileira” (reedição do texto escrito em Brasília, em 12 dezembro 1997, 25 pp.; publicado originalmente como reedição fac-similar de Carlos Delgado de Carvalho (1884-1980), História Diplomática do Brasil (1ª ed.: São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959; edição fac-similar: Brasília: Senado Federal, 1998; Coleção Memória brasileira n. 13, lxx, 420 p.), pp. xv-l, incorporando ainda apresentação do Emb. Rubens Ricupero (pp. iii-xiv). Nova edição pelo Senado Federal, redigitada: História Diplomática do Brasil (Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2016, 504 p., il., Edições do Senado Federal, vol. 224; texto PRA, p. 23-55). Relação de Originais n. 600.

O livro está disponível na Editora do Senado Federal. Aqui o  texto de minha introdução original, de 1997:


Introdução

Em busca da simplicidade e da clareza perdidas:
Delgado de Carvalho e a historiografia diplomática brasileira

Paulo Roberto de Almeida
Doutor em Ciências Sociais. Diplomata.

A reedição fac-similar deste livro de Carlos Delgado de Carvalho, História Diplomática do Brasil, vem responder a uma necessidade bibliográfica tanto quanto atender a uma antiga aspiração de profissionais da diplomacia brasileira. Com efeito, quase dez anos atrás, o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, do Itamaraty, projetava relançá-lo em edição igualmente fac-similar, empreendimento certamente bem-vindo já naquela época, mas que não logrou então concretizar-se em virtude das prosaicas dificuldades de financiamento que soem atormentar, de forma recorrente, as instituições que vivem de recursos públicos.
A empresa foi agora viabilizada graças à feliz iniciativa dos organizadores da coleção “Memória Brasileira” do Senado Federal, em especial nas pessoas de seu coordenador institucional, Senador Lúcio Alcântara, e de seu principal animador, Professor Estevão C. de Rezende Martins, que atendeu prontamente minha sugestão de incluí-lo nesta já prestigiosa coletânea de obras importantes sobre temas brasileiros. Ela vem preencher não apenas uma lacuna propriamente inexplicável em termos editoriais, como também um vácuo didático há muito tempo sentido entre os estudiosos da política externa e das relações internacionais do Brasil em geral e entre os jovens diplomatas em particular.
Obra de reconhecidos méritos metodológicos e substantivos, como já amplamente sublinhado no texto precedente do embaixador Rubens Ricupero, sua edição num circuito não comercial também se beneficia intelectualmente da publicação, tão oportuna quanto tardia, parafraseando seu próprio título, da Apresentação que esse notável diplomata e professor da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco havia preparado, em 1989, quando da tentativa anterior de republicação pelo IPRI.
Eis-nos, portanto, finalmente recompensados com nova divulgação de uma obra quase tão mítica quanto rara, pois que desaparecida das livrarias logo nos primeiros anos de sua primeira edição comercial, em 1959 e intensamente buscada nos sebos desde então. Para os muitos candidatos à sua leitura indispensável, ela subsistia apenas nos poucos volumes já “maltratados” emprestados pelas bibliotecas especializadas ou então, necessité oblige, tinham de ser cedidos “religiosamente”, com todas as advertências do gênero, por seus felizes e raros possuidores aos muitos ávidos interessados (como este que aqui escreve). Como afirma Ricupero na abertura de sua apresentação, este livro, por mais de uma razão, tinha se tornado insubstituível, ou quase.
Com efeito, durante mais de três décadas a partir dos anos 60, e mais exatamente até a publicação do trabalho de síntese dos pesquisadores Amado Cervo e Clodoaldo Bueno [1] e, mais recentemente, da obra póstuma do historiador José Honório Rodrigues, [2] esta obra despretenciosa de Delgado constituiu, junto com o título homônimo e contemporâneo de Hélio Vianna, [3] leitura obrigatória e objeto de consulta incontornável de todo e qualquer estudioso da política externa e das relações internacionais do Brasil, em especial de turmas inteiras e sucessivas de vestibulandos e alunos do Curso de Preparação à Carreira Diplomática mantido desde 1946 pelo Instituto Rio Branco. O CPCD foi convertido, em 1995, na primeira fase de um “programa de formação e aperfeiçoamento”, seu currículo acadêmico e profissional passou por diversas modificações, mas o livro de Delgado de Carvalho continua a figurar, em primeiro plano, na lista de leituras da disciplina de história diplomática.
Tendo originado-se, precisamente, de aulas ministradas por Delgado de Carvalho no Instituto Rio Branco, em 1955, o livro teve a desventura editorial de ter conhecido uma única e singela edição, tornando-se propriamente introuvable com o passar dos anos. Seu vigor intelectual, entretanto, contrasta flagrantemente com seu presumido envelhecimento físico. O único exemplar disponível na Biblioteca do Itamaraty, por exemplo, está desfazendo-se virtualmente, carregando as marcas literais de uma intensa e repetida utilização visual e “manual” por gerações sucessivas de leitores atentos — páginas desprendidas ou rasgadas, lombada e costura desfeitas, incontáveis sublinhados, felizmente a maior parte a lápis —, o que apenas vem confirmar, precisamente, a preservação de suas qualidades intrínsecas.
Desde a tentativa meritória, mas malograda, do IPRI de relançá-lo em segunda edição, a exemplo do que tinha sido feito com a obra em três volumes de Pandia Calógeras, [4] o livro parecia condenado a continuar sua trajetória solitária para a lista das raridades bibliográficas, quando não para a relação ainda mais triste dos fisicamente desaparecidos. É verdade que o lançamento da obra conjunta de Amado Cervo e de Clodoaldo Bueno tinha tirado muito da urgência didática de se reeditar este manual indispensável a todo estudioso de nossa história diplomática, mas também é um fato que, por suas virtudes próprias — texto claro e direto, organização sistemática racional e até mesmo atualidade fatual — o livro de Delgado nunca deixou de merecer uma segunda edição comercial, de preferência com as atualizações devidas.
O falecimento de Delgado, em 1980, na provecta idade de 96 anos, obstou, evidentemente, que essa atualização fosse feita pelo próprio autor, mas não deveria hipoteticamente ter impedido uma iniciativa nesse sentido por parte dos principais interessados na preservação de seu conteúdo didático, a começar pelo setor acadêmico da Chancelaria brasileira, isto é, o Instituto Rio Branco ou, mais uma vez, o IPRI. A bem da verdade, devo confessar que acalentei por um momento, em meados dos anos 80, a pretensão de “continuar” a obra de Delgado, corrigindo-a naqueles pontos que considerava temporalmente defasados ou mudando certas ênfases temáticas na fase contemporânea. O inevitável nomadismo da carreira e as muitas outras obrigações profissionais e acadêmicas, obrigatória ou voluntariamente assumidas desde então, obstaculizaram contudo tal empenho intelectual. Posteriormente, o anúncio continuado de sua “iminente” republicação fac-similar pelo IPRI, ou mesmo “ameaças” posteriores de nova edição comercial, dissuadiram-me na prática de lançar-me em tal empresa de aggiornamento de uma obra ainda largamente atual e singularmente moderna, a despeito mesmo de sua concepção finalmente “tradicional”. Com efeito, o caráter objetivo e o espírito vivo desta obra fizeram com que ela se mantivesse como o protótipo historiográfico do que deveria ser uma história fatual sobre nossa política exterior, independemente e ao lado da emergência de uma nova historiografia que busca “interpretar” ou “contextualizar” essas mesmas relações exteriores.
Na ausência de um projeto do gênero, de caráter institucional ou por simples iniciativa individual, o terreno continua aberto a que obra similar de caráter histórico retome ou complete este livro didático, sempre válido, de Delgado de Carvalho. A presente edição poderia representar, justamente, uma espécie de estímulo editorial a que um empreendimento desse tipo seja concebido e levado adiante por diplomatas ou por pesquisadores acadêmicos. A base intelectual colocada aqui por Delgado constitui terreno sólido sobre o qual poderia erguer-se tal trabalho de atualização historiográfica, acrescida da sempre bem-vinda complementação documental, que não era de menor importância segundo sua concepção original. Aguardando que tal iniciativa possa encontrar candidatos, vejamos, nesta introdução metodológica, como se situa este livro de Delgado no contexto dos demais exemplos de análise ou de relato histórico das relações exteriores do Brasil, quem foi seu autor e quais foram suas principais obras, como se sustenta este trabalho em face das exigências heurísticas de uma “história diplomática” nacional e como evoluiram, desde sua publicação, os estudos de política externa do Brasil.
O presente texto, cujas partes centrais foram concebidas de maneira independente e escritas cronologicamente à distância da Apresentação preparada originalmente em 1989 pelo Emb. Ricupero, não tem a pretensão de complementar a excelente análise intelectual desta obra já efetuada pelo então representante do Brasil junto ao GATT e atual Secretário-Geral da UNCTAD. A breve síntese sobre a vida e a obra de Delgado aqui inserida foi elaborada inicialmente como parte de um esforço mais vasto de levantamento bibliográfico e de resenha crítica da historiografia brasileira de relações internacionais, tendo sido publicada parcialmente em revista acadêmica cinco anos atrás. [5] As demais seções desta introdução geral a esta obra de Delgado pretendem, justamente, ressaltar seu valor específico no contexto da literatura especializada disponível ao público interessado em história diplomática do Brasil e demonstrar a pertinência de uma nova edição aggiornata.

AC-DC: Calógeras como marco historiográfico
Pandiá Calógeras, o “Clausewitz” da política externa do Brasil, foi quem iniciou, verdadeiramente, o estudo científico das relações internacionais do País. Para isso, ele tinha recuado praticamente até o nascimento da nação portuguesa, seguido os passos de suas aventuras coloniais e déboires europeus e acompanhado atentamente as primeiras etapas da diplomacia brasileira, desde o reconhecimento da independência até a luta contra Rosas, em 1851-52. Fazer história diplomática, depois de Calógeras já não seria mais obra de simples diletantes ou de cronistas do regime em vigor e, de fato, tornar-se-ia difícil seguir os passos de quem exerceu diuturnamente o ofício de escritor-historiador praticamente desde o nascimento até o final da República Velha.
Ele foi, aliás, pioneiro em várias vertentes da historiografia brasileira: história política, monetária (seu La Politique Monétaire du Brésil é primoroso), história administrativa, dos tributos, dos transportes, mineralógica e energética etc. No setor que nos interessa, Calógeras representou, para todos os efeitos, um marco historiográfico na reconstituição das relações exteriores do Brasil, a ponto de se poder, a exemplo do título desta seção, operar uma espécie de “ruptura epistemológica” em torno de sua obra.
Depois de Calógeras e seus livros monumentais sobre as relações exteriores do Brasil, de fato desde o período colonial português, os diplomatas e historiadores que se dedicaram ao estudo da política externa do Brasil passaram a abordar períodos históricos mais limitados, espaços geográficos mais restritos ou temas políticos mais específicos, versando geralmente sobre problemas de fronteiras ou sobre questões diversas da diplomacia imperial. Nesse quadro, merecem registro algumas obras de história diplomática, em primeiro lugar a síntese geral da política externa brasileira realizada por Renato de Mendonça, que, publicada no exterior, na verdade cobre quase que exclusivamente o período colonial, chegando tão somente ao reconhecimento da Independência. [6] José Antônio Soares de Souza, por sua vez, produziu diversos estudos monográficos sobre o período monárquico e a questão do Prata em particular. [7] O diplomata Teixeira Soares também se ocupou da mesma problemática, bem como da formação das fronteiras. [8] Em todos eles há uma espécie de racionalização intrínseca a respeito dos “acertos” da política imperial e sobre a inexistência, por exemplo, de alternativas diplomáticas ao quadro de conflitos na região platina.
Essas obras eruditas destinavam-se contudo a um público restrito, geralmente formado pelos demais historiadores ou pelos próprios profissionais da carreira diplomática. O Instituto Rio Branco (IRBr), que começou a funcionar em 1946, passou a organizar cursos de formação ou de aperfeiçoamento de diplomatas, para os quais foram convidados alguns desses eminentes historiadores, muitos deles dedicados igualmente à instrução de oficiais militares nos Estados-Maiores das Forças Armadas. Os historiadores José Honório Rodrigues e Hélio Vianna e o geógrafo Carlos Delgado de Carvalho foram alguns desses muitos intelectuais de renome que abrilhantaram os cursos do IRBr entre finais da década de 40 e princípios dos anos 60.
O esforço de sistematização permitiu, em cada um desses casos, a elaboração de “notas de curso” que puderam ser ulteriormente transformadas em trabalhos independentes, dos quais apenas os de Vianna e Delgado lograram alcançar publicação comercial ainda nos anos 50, ambos intitulados História Diplomática do Brasil. Esses dois volumes, precisamente, constituíram a matéria-prima educacional para que gerações sucessivas de estudantes brasileiros se habilitassem no vestibular de ingresso e, ulteriormente, acompanhassem o próprio curso do IRBr de preparação à carreira diplomática, permanecendo como referências obrigatórias nesse terreno até o surgimento da obra mais moderna dos Professores Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno e a tão delongada publicação das notas de curso de José Honório Rodrigues.

Hélio Vianna e a visão oficial da política externa
O primeiro volume a vir a lume foi o História Diplomática do Brasil de Hélio Vianna, trabalho baseado em curso ministrado em 1947 sobre a história das fronteiras do Brasil (publicado originalmente pela Biblioteca Militar em 1949) e completado por texto sobre história diplomática resultante de curso de aperfeiçoamento no IRBr em 1950. A primeira edição, há muito esgotada, foi publicada pelas Edições Melhoramentos em 1958, sendo ulteriormente acoplada, em sua 2ª edição, a outro trabalho do autor, História da República, esta por sua vez destacada da História do Brasil.
A História Diplomática de Hélio Vianna é, antes de mais nada, uma obra híbrida, pois que retoma trechos inteiros do História das Fronteiras, logrando contudo uma certa unidade temática e de tratamento linear sobre os principais eventos das relações internacionais do Brasil desde os descobrimentos até, na segunda e última edição, o problema dos mísseis soviéticos em Cuba, em 1961, com ênfase, evidentemente, nos diversos processos de fixação de limites com os vizinhos países sul-americanos. A posição conservadora do autor reflete-se claramente nesta obra, que opera, nas mais diferentes passagens, uma justificação integral das escolhas oficiais a cada momento de nossa história política.
Como na obra homônima de Delgado, o trabalho de Hélio Vianna também se socorre de diversas citações de especialistas ou de documentos oficiais, mas as transcrições, em menor número, estão incorporadas ao próprio texto. Seu livro, igualmente didático, está organizado em torno da atuação dos governos e das chancelarias, como todo manual de história política tradicional. No que se refere às relações exteriores do Brasil, o livro se conclui, como seria o caso também com a História Diplomática de Delgado de Carvalho, com menção à Operação Pan-Americana, iniciativa multilateral regional tomada pelo Governo do Presidente Juscelino Kubitschek, com escassos resultados práticos, mas permitindo o surgimento ulterior da “Aliança para o Progresso” do Presidente Kennedy.
Trata-se, a exemplo da obra correspondente de Delgado de Carvalho, de um trabalho pertencente claramente à categoria das “obras gerais”, isto é os manuais de síntese, de escopo essencialmente fatual e, no caso de Vianna, praticamente “oficial”, em termos de postura interpretativa. Mas, à diferença do livro do primeiro, o trabalho de Hélio Vianna dá muito maior ênfase aos episódios da história colonial e monárquica independente do que ao período republicano contemporâneo, que constitui o essencial da contribuição inovadora do primeiro, cujo manual é um exemplo daquilo que os franceses chamariam de histoire immédiate. Pode-se dizer, portanto, que os dois livros homônimos se complementam reciprocamente, tanto em informação como em seleção de episódios significativos.
Hélio Vianna não pretendia se situar no plano analítico de A Política Exterior do Império de Pandiá Calógeras, por exemplo, que operava uma reconstituição histórica profissional de todo o itinerário histórico das relações internacionais de Portugal e do Brasil desde as origens ibéricas até a queda do ditador Rosas da Argentina (1852). Ele permaneceu numa outra vertente, a da recompilação das interpretações consagradas sobre os episódios mais importantes da política exterior oficial, e não chega a superar os limites estritos da “história diplomática”. De todo modo, seu minucioso trabalho fatual é complementar ao livro de Delgado de Carvalho, já que se estende nos períodos e temas em que este último não pretendeu cobrir em detalhes, como é o caso da história colonial e da expansão portuguesa para além dos limites traçados originalmente em Tordesilhas. Como o de Delgado, o manual de Vianna quiçá mereceria também uma segunda edição, de preferência atualizada.

O homem Delgado de Carvalho: um gentleman cartesiano
Carlos Delgado de Carvalho foi um dos últimos representantes, no Brasil, de uma geração dividida entre duas épocas: uma cultura estilo belle époque, que sobreviveu ao Brasil monárquico do século XIX e que ainda projetou influências no comportamento semi-aristocrático das elites da Primeira República, e uma outra, dita “cultura de massas”, típica de uma estrutura social em intenso processo de transformação a partir da Revolução de 1930. Sua longevidade permitiu-lhe atravessar os mais diferentes regimes políticos do País e seus diversos sistemas educacionais, mas Delgado também era uma personalidade distraída, a ponto de ignorar quais fossem os mandatários do momento. Tendo nascido em Paris em 1884, filho de um Secretário da Legação brasileira — monarquista como todos os demais integrantes do serviço diplomático —, ele só veio a conhecer o Brasil, contra a vontade do Pai, aos 22 anos de idade, em 1906, tendo de se naturalizar brasileiro novamente em virtude de ter prestado serviço militar no Exército francês pouco tempo antes.
Sua educação seguiu o modelo adotado pelas boas famílias da belle époque, com preceptores estrangeiros, colégios internos e um perfeito multilinguismo: aprendeu inglês com sua avó materna, em Londres, francês e várias outras línguas em colégios da França e da Suíça. Tendo diplomado-se como “Bachelier de l’Enseignement Sécondaire Classique”, em Paris, em 1905, ele completa, em 1910, como aluno da École Libre des Sciences Politiques, uma tese intitulada “Un Centre Économique au Brésil: l’État de Minas” e escreve, nesse mesmo ano, um minucioso trabalho de geografia, Le Brésil Méridional. Esse livro, uma cuidadosa análise da estrutura física, econômica e humana dos estados sulinos (que à época incluiam São Paulo) foi certamente inovador na geografia brasileira e talvez mesmo até na francesa, pois que centrado na apresentação e discussão minuciosa de três culturas socio-econômicas distintas e contrastantes: “le pays du café”, “le pays du maté” e “le pays de l’élevage”. Sua orientação para a geografia se reforça nessa época, tendo escrito em 1913 um livro prefaciado por Oliveira Lima, Geografia do Brasil. Um estágio feito no Museu de Londres durante a Primeira Guerra Mundial lhe daria oportunidade de escrever mais um trabalho, Météorologie du Brésil, capacitando-o ulteriormente a trabalhar para o Serviço Pluviométrico do Brasil, elaborando, na década seguinte, mais de meia centena de mapas do Nordeste.
Sua produção acadêmica intensifica-se então, paralelamente à prática educacional. Em 1916 é convidado para o cargo de professor extraordinário da Escola de Altos Estudos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Pouco depois presta concurso para a cadeira de inglês do Colégio Pedro II, apresentando o trabalho “Esboço Histórico das Origens e Formação da Língua Inglesa”. Em 1920 torna-se professor de sociologia no mesmo Colégio, ao qual ficaria ligado toda a sua vida. Delgado chegou mesmo a exercer, por curto período, o cargo de diretor do Colégio Pedro II, no imediato seguimento da Revolução de 1930, tendo sido designado, em 1931, vice-diretor da instituição, função que manteria até seu falecimento.
Em 1921, o Ministro do Exército Pandiá Calógeras convida-o para ser conferencista das Escolas de Intendência. Escreve, nos anos 20, os livros Corografia do Distrito Federal, Geografia Econômica da América do Sul, Fisiografia do Brasil e uma notável introdução aos estudos de geografia moderna, Metodologia do Ensino Geográfico (1925). Desde 1923, e até sua aposentadoria compulsória aos 70 anos, dedica-se igualmente ao ensino de sociologia na Escola Normal (depois Instituto de Educação). Em 1936, com a fundação da Universidade do Distrito Federal, torna-se catedrático de História Contemporânea e, a partir de 1939, de História Moderna e Contemporânea da antiga Universidade do Brasil (depois UFRJ), desempenhando-se nessa cadeira até sua aposentadoria compulsória. Esteve associado desde o início ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (fundado em 1935) e muitos de seus trabalhos — Exercícios e Práticas de Geografia (1941), Geografia dos Continentes (1943) — trazem tanto a marca da atividade didática quanto a colaboração constante com essa instituição.
Em 1954, já com 70 anos de idade, quando muitos encerram suas atividades, Delgado de Carvalho começou nova fase de intensa produtividade em sua vida acadêmica e de professor, a começar pela cadeira de História Diplomática no Instituto Rio Branco, da qual resultaria este livro. Também a partir de 1954, e até 1960, foi professor no curso de jornalismo da Faculdade Nacional de Filosofia. Data dessa época uma ainda legível História Geral em quatro volumes (1956), de formato e finalidade essencialmente didáticos, mas podendo preencher, graças a sua qualidade e profundidade, as estantes de qualquer historiador profissional ou leitor erudito.
Intensifica-se também nessa mesma época o trabalho que já vinha desenvolvendo no IBGE, juntamente com Therezinha de Castro, que se torna sua assistente e colaboradora em inúmeros trabalhos. Como resultado dessa colaboração emerge, em 1960, sob cobertura editorial do Conselho Nacional de Geografia, o Atlas de Relações Internacionais, republicado posteriormente, em forma de fascículos na Revista Brasileira de Geografia (1967). Em 1963 são publicados dois livros: Organização social e política brasileira (pelo Centro de Pesquisas Educacionais) e África: geografia social, econômica e política (com biografias sumárias preparadas por Therezinha de Castro. Nos anos 70 ainda permanecia ativo, tendo sucessivamente publicado, geralmente pela Editora Record do Rio de Janeiro Civilização Contemporânea (em 1970, com 557 páginas!) Relações Internacionais (1971, 327 p., pela São Paulo Editora), História das Américas (1976) e História Documental, Moderna e Contemporânea (1976), este último uma coletânea de textos de personalidades e de historiadores relevantes.

A obra “diplomática” de Delgado: modesta, original e completa
História Diplomática do Brasil é, antes de mais nada, um manual didático extremamente útil ao estudioso que deseje adquirir uma visão ampla das relações exteriores do Brasil em quatro séculos de história, com forte ênfase no período contemporâneo. Como text-book acadêmico ele cumpre de maneira amplamente satisfatória esse papel de informação fatual sobre os eventos e processos que marcaram historicamente a inserção internacional do Brasil, inclusive com uma utilíssima transcrição de trechos selecionados dos autores mais significativos que escreveram sobre suas relações exteriores. Essa compilação de “fontes”, apresentada sob a forma de “Excerpta”, compensa, em parte, mas não substitui, a falta de uma verdadeira bibliografia e obras de referência, que talvez existisse na versão original dos manuscritos, infelizmente perdidos pelo editor.
Em seu preâmbulo, Delgado menciona outros autores que trataram da história diplomática do Brasil, como Hélio Vianna, Teixeira Soares, Renato de Mendonça, Macedo Soares e Pedro Calmon, mas curiosamente não se refere a Pandiá Calógeras, apesar de que um excerto da Política Exterior do Império seja transcrito no livro. No próprio corpo da obra, Delgado tampouco deixa de transcrever alguns dos autores selecionados para a “Excerpta”, mas sempre de maneira pertinente e comedida. Em todo caso, a seleção operada por Delgado para essa seção, extremamente útil como referência a fontes primárias ou à bibliografia secundária, é bastante eclética, indo de historiadores portugueses aos memorialistas brasileiros, orgulhosos do passado imperial, e até a um historiador marxista como Caio Prado Júnior. Ressalte-se, entretanto, que, do total de 409 páginas de seu livro, 317 correspondem efetivamente à produção de Delgado e apenas 92 à transcrição de outros autores ou fontes documentais. Mesmo essa compilação apenas complementa o entendimento de cada época, mas não diminui o valor da produção intelectual do próprio Delgado, que se sustenta inteiramente sem os excertos.
O que mais chama a atenção nessa obra é, contudo, sua atualidade, já que todo o passado colonial português, normalmente valorizado nas obras históricas dos autores tradicionais, recebe apenas um tratamento introdutório, com a modesta extensão de 19 páginas. Todo o resto é Brasil independente e mais da metade, de fato, é dedicado ao Brasil República. Como já ressaltado pelo Emb. Ricupero na Apresentação, o próprio Delgado justifica em seu Preâmbulo essa preferência: “A meu ver, é uma falha inexplicável dos nossos atuais programas secundários de atribuir à história dos portugueses no Brasil, dito ‘período colonial’, uma importância e desenvolvimento equivalente aos nossos 67 anos de Império e 70 anos de República” (p. xviii).
Delgado, de seu lado, faz uma opção preferencial e manifesta pela contemporaneidade, às vezes até pela atualidade mais imediata, como é o caso já citado da Operação Pan-americana, iniciativa conduzida pela diplomacia tenaz de Juscelino Kubitschek e que estava ainda se desenvolvendo no momento mesmo do fechamento do livro. Este, publicado em 1959, traz ainda a seguinte informação no capítulo relativo ao pan-americanismo: “A 17 de novembro [de 1958], reunia-se em Washington, o Comitê dos 21 [no âmbito da OEA, para tratar da OPA], no qual Augusto Frederico Schmidt chefiava a delegação brasileira” (p. 343). Mais atualidade, impossível: trata-se do mais puro exercício daquilo que os franceses chamariam de histoire immédiate.

Características analíticas e metodológicas
Com todo a sua modernidade e pertinência, o livro de Delgado ainda assim se ressente de uma dispersão metodológica no tratamento dos diversos temas selecionados. O texto é conciso no desenvolvimento da história colonial (que comporta tão somente um curto capítulo inaugural, embora seguido de várias compilações de autores), bastante equilibrado no tratamento do Império (nove capítulos ao todo, inclusive um “econômico” sobre os tratados de comércio) e, no que se refere à República, relativamente insatisfatório do ponto de vista de uma abordagem integrada e compreensiva desse período, a despeito mesmo da riqueza e da diversidade da informação compilada.
Esse período é tratado mais em função dos problemas da política externa de governos sucessivos, numa vertente propriamente diplomática (reconhecimento da República, intervenção estrangeira na revolta de 1893, fronteiras), do que no seguimento de uma análise integrada da história das relações exteriores ou das relações internacionais do Brasil. Assim, depois de um capítulo inicial sobre o reconhecimento da República e de um outro sobre a intervenção estrangeira na revolta de 1893, seguem-se quatro grandes capítulos sobre os problemas de fronteiras, tema evidentemente obrigatório — e bastante “atual”, até uma data ainda recente — nos programas curriculares de diplomatas e militares.
As políticas externas dos governos republicanos são examinadas num único capítulo: “Rio Branco, Chanceler da Paz e seus Sucessores”, o que se revela inadequado em razão da complexidade dos problemas em cada época, sobretudo no período varguista. Basta dizer que as relações internacionais do Brasil entre 1913 e 1959 estão em grande parte comprimidas nas últimas 20 páginas desse capítulo, mas aqui seguindo uma abordagem essencialmente biográfica dos fatos mais relevantes desse longo período, como se a política externa dos “sucessores” de Rio Branco tivesse sido realmente determinada, ou essencialmente definida, pelas orientações pessoais de cada um dos respectivos chanceleres.
Em todo caso, a abordagem pelas questões relevantes ou temáticas continua pelo resto do livro: a doutrina Monroe e as intervenções, o pan-americanismo acadêmico (na verdade um importante capítulo, cobrindo o desenvolvimento jurídico do pan-americanismo e, depois, uma série de grandes temas de nossa política exterior regional), os Estados Unidos e as Repúblicas latinas (de fato as relações Brasil-Estados Unidos) e o isolacionismo e as guerras mundiais (tratando inclusive do problema da Liga das Nações). O enfoque é quase sempre político, segundo a visão da história tradicional, com uma descrição objetiva da atuação das diversas chefias da Chancelaria brasileira e algumas (raras) pinceladas sobre os problemas econômicos envolvidos. Mas, não há, propriamente, um tratamento abrangente e “contextualizado” (para usar um termo da moda) da política externa governamental no quadro de um país agro-exportador, em processo de industrialização e ocupando uma posição marginal na macroestrutura política mundial.

Limites e virtudes da história fatual
Ressalve-se, porém, que esse tipo de história “interpretativa” não fazia parte da concepção didática e instrumental que Delgado emprestou a suas notas de curso finalmente convertidas em livro. Como advertiu Ricupero, não se pode julgar uma obra desse porte armado com os instrumentos analíticos e as orientações historiográficas de nossa própria época. Seria totalmente anacrônico, portanto, condenar o fatualismo de Delgado com base numa pretensa superioridade do “processo estrutural” de longo curso sobre o imediatismo da “matéria-prima” da História, como se Braudel e os annalites não praticassem igualmente a histoire événementielle.
Ao contrário, e sem mencionar a preocupação pedagógica, a obra de Delgado de Carvalho é realmente preciosa pelo que tem de acúmulo de fatos históricos, mesmo se muitos outros estão completamente descurados, como por exemplo as grandes conferências econômicas do pós-guerra, de Bretton Woods às rodadas do GATT, passando pelo conferência de Havana e as reuniões econômicas e comerciais pan-americanas, mencionadas apenas en passant. Os fatos ou processos de tipo propriamente econômico, como as grandes correntes de comércio, o esforço industralizador e outros, perdem-se no emaranhado de acontecimentos políticos que recheiam — ou ocupam plenamente — o livro.
Esses fatos estão, grosso modo, ordenados logicamente e quase sempre são pertinentes ao capítulo em causa, mas por vezes há um deslize para o anedótico ou o acessório. Ao tratar dos Tratados de Utrecht de 1713 e de 1715, por exemplo, Delgado não deixa de mencionar que os plenipotenciários de D. João V foram o Conde de Tarouca e D. Luís da Cunha, informação mais bem pertinente numa história diplomática de Portugal. Mas, ele insere nessa seção uma curta referência ao importante tratado de Methuen (pp. 9-10), base econômica ulterior, com outros instrumentos de aliança política e militar, da histórica dependência de Portugal em relação à Inglaterra. Em outra passagem, ainda no terreno do episódico, ao referir-se à gestão Otávio Mangabeira, ele termina por uma citação de Gustavo Barroso sobre a inauguração solene por Washington Luís das novas dependências do Itamaraty: “Celebrou-se então à noite grande baile de gala, festa brilhantíssima que deu aos salões do velho palácio e aos jardins profusamente iluminados o esplendor decorativo do tão falado sarau com que, em 1870, a Guarda Nacional da Corte, homenageando o Marechal Conde d’Eu, ali comemorou o fim da campanha do Paraguai” (p. 264). É bem verdade que o velho Palácio do Itamaraty, guardião de setenta anos de atividades diplomáticas, deixou saudades em mais de uma geração de dedicados funcionários da Casa do Barão.
Mas, a despeito do estilo belle époque’, acima ilustrado, de Delgado de Carvalho, seu livro é uma mina de informações de boa qualidade para todo aprendiz de diplomata, bem como para o estudioso principiante da política exterior do Brasil. O pesquisador profissional poderia fazer, é verdade, sérias objeções ao método de Delgado: ele encontrará ali apenas um ordenamento dos fatos, mais do que dos processos, de nossa história diplomática e de toda forma não terá, como se disse, qualquer inserção desses fatos numa trama mais ampla das relações internacionais do Brasil, sobretudo em sua vertente econômica externa. Tais não eram, relembre-se, os objetivos de Delgado.
As eventuais limitações do livro, se assim podemos classificar uma de suas qualidades essenciais, se devem exatamente ao caráter eminentemente didático, derivado de notas de aulas proferidas na Academia diplomática. Suas qualidades confirmadas são as de uma primeira (junto com Vianna, é verdade) sistematização da história diplomática do Brasil e uma apresentação honesta e abrangente das relações políticas externas, em função das grandes questões que ocuparam a atenção dos mandatários portugueses e das lideranças da Nação independente. Em suma, trata-se de uma história “política” da política externa, com todas as qualidades e defeitos que tal gênero possa comportar.
Os problemas econômicos não são ignorados, mas mesmo sua abordagem recebe um tratamento essencialmente político. O capítulo sobre “comércio e navegação”, por exemplo, comporta basicamente uma descrição das doutrinas econômicas então em voga e uma história da sucessão de negociações políticas entre, por um lado, a Inglaterra e, por outro, Portugal e depois o Brasil em torno das condições do comércio recíproco. A “análise” econômica, nesse caso, é dada pela pertinente transcrição de um trecho da História Econômica do Brasil de Caio Prado Júnior, onde se discute, precisamente, a dependência portuguesa em relação à Inglaterra.

Um modelo ainda válido
Como se situa o História Diplomática de Delgado de Carvalho no conjunto dos (poucos) trabalhos que se dedicaram a analisar a política externa brasileira? Certamente em primeiro plano, mas com características próprias de conteúdo e de método. O trabalho pertence claramente à categoria das “obras gerais”, isto é os grandes esforços de síntese, mas seu escopo é mais modesto, ao pretender tão somente traçar um resumo expositivo das grandes linhas evolutivas de nossa política externa, e não avançar no terreno da pesquisa ou da elucidação de problemas complexos das relações exteriores do Brasil.
Junto com a obra também essencialmente fatual, e praticamente “oficial”, publicada no ano anterior por Hélio Vianna, o livro de Delgado foi pioneiro no gênero, ocupando um espaço quase que exclusivo durante toda uma geração. É claro que não se pode, por exemplo, comparar seu manual à portentosa obra de Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império: Pandiá pertence a uma outra espécie ou talvez mesmo a uma outra “família” — a minuciosa reconstituição histórica profissional — do mesmo gênero acadêmico, ainda que sua pretensão tenha sido a de superar os limites estritos da “história diplomática”.
Mas, o livro de Delgado possui objetivos mais modestos, ainda que mais abrangentes, e não se destinava inicialmente senão à divulgação de material de estudo entre os alunos do Instituto Rio Branco. Sua publicação foi decidida graças a uma conjunção de esforços de diplomatas e historiadores, depois que os originais do primeiro manuscrito foram perdidos pelo editor, em 1956. Ela tem o mesmo estilo inconfundível que Delgado costumava imprimir à suas demais obras: precisão, concisão, objetividade, num espírito propriamente cartesiano. Como ele mesmo diz em seu Preâmbulo, “Não sendo obra de erudição, tentei apenas dar com clareza e sobriedade, evitando críticas e elogios, uma idéia de nossa situação internacional, salientando a continuidade política que caracteriza a nossa diplomacia” (pp. xviii-xix). Com efeito, onde Hélio Vianna distribui fartos elogios à inteligência e competência das lideranças políticas do Império e da República, justificando totalmente e concordando implicitamente com qualquer ação de nossa diplomacia, Delgado limita-se a expor os fatos, nada mais do que os fatos, inserindo aqui e ali alguns poucos comentários valorativos que em nada interferem no desenvolvimento da narrativa. Trata-se, como já mencionado, de um livro sóbrio e, como tal, merecedor de uma nova edição integral e possivelmente atualizada.

A reorientação dos estudos de relações internacionais
A história diplomática tal como praticada por esses ilustres predecessores nos anos 40 e 50 ficou de certa forma congelada no tempo, na espera que da academia pudesse emergir uma nova geração de estudos historiográficos sustentados em novas interpretações e técnicas de pesquisa, incorporando por exemplo os dados brutos ou comparados das relações econômicas internacionais do Brasil e uma visão específica do modo de sua inserção no sistema político mundial em cada época. Novos trabalhos dotados dessas preocupações começaram a emergir nos anos 70 e 80, mesmo se a vinculação “genática” a determinados esquemas conceituais— teorias da dependência ou do imperialismo, por exemplo — terminou por “contaminar” algumas dessas contribuições.
Como ocorreu com os debates entre escolas históricas opostas em outros países, na Alemanha ou nos Estados Unidos, por exemplo, a corrente “revisionista” brasileira descartou em grande medida os aportes feitos anteriormente pela historiografia diplomática “tradicional”. Seus representantes mais ilustres passaram a ser acusados, geralmente por historiadores de esquerda, de conivência com a “versão oficial” e com uma interpretação “Estado-cêntrica” das relações externas do país. Segundo os críticos, esses trabalhos tinham concentrado-se, talvez em demasia, nos episódios propriamente políticos ou militares da ação diplomática governamental (isto é, negociações entre Estados, conflitos militares, conclusão de tratados, atuação das chancelarias etc.), em detrimento dos processos de natureza mais estrutural e de longo prazo que poderiam explicar ou dar sentido a determinadas escolhas fundamentais da Nação na frente externa. As gerações subsequentes de pesquisadores universitários, a despeito da crescente produção voltada para as relações internacionais do Brasil nos últimos anos, como também da própria proliferação de cursos e instituições dedicadas a essa área, pouco fizeram nesse campo da sistematização de amplo espectro: ou criticaram, do ponto de vista político e metodológico, a abordagem événementielle desses pioneiros ou eximiram-se, tão simplesmente, do trabalho de produzir manuais alternativos.
Sem pretender repassar o conjunto das realizações nesse terreno, caberia ainda assim examinar alguns exemplos recentes que honram o gênero e prometem colocar sobre novas bases, senão o estudo das relações internacionais do Brasil, pelo menos esse gênero raro na historiografia nacional que é a história diplomática. A esse propósito, destacam-se, nesse processo de realizações acadêmicas, o trabalho conjunto de Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, História da Política Exterior do Brasil (1992), e a obra que reune as aulas dadas pelo historiador José Honório Rodrigues no Instituto Rio Branco, entre 1946 e 1956, e que compreende, ainda, dois capítulos cobrindo o período entre-guerras preparados pelo revisor dos originais, o Prof. Ricardo Seitenfus, Uma História Diplomática do Brasil (1995), cuja publicação tinha sido anunciada várias vezes pelo seu autor principal e que era aguardado com impaciência há muitos anos.
Antes de dar início, contudo, ao exame dessas obras em colaboração, seria interessante observar o itinerário analítico conduzido na academia entre a publicação dos pioneiros e a recente produção universitária. Seria possível encontrar-se alguma linha condutora na produção acumulada nos últimos 30 anos? Um tema constante nos trabalhos acadêmicos dessa nova safra de pesquisadores é a tentativa de identificar as grandes linhas da política externa brasileira que influenciaram ou permitiram (ou não) a busca ou o atingimento da “autonomia nacional”. Antes de qualquer outra consideração sobre a produção historiográfica nesse campo, temos de convir que, a exemplo das racionalizações sobre a ideologia do desenvolvimento operadas nos anos 50 e 60 por Álvaro Vieira Pinto e Cândido Mendes, trata-se, obviamente, de objetivo acadêmico não de todo despojado de um certo parentesco intelectual com o idealismo hegeliano.
Ao introduzir, por exemplo, uma coleção de ensaios relacionados, de perto ou de longe, com essa temática, o Embaixador Rubens Ricupero, professor de relações internacionais da Universidade de Brasília e de história das relações diplomáticas do Brasil no Instituto Rio Branco, afirmava claramente que “a idéia que impulsionou o curso foi a da História Diplomática como o cenário da realização progressiva e nunca inteiramente concluída da independência”, vinculando ao pensamento de Vico essa “visão da História Diplomática como a edificação e a afirmação gradual da autonomia” nacional. [9] A permanente afirmação e consolidação da independência nacional, de um lado, e a busca do desenvolvimento econômico, de outro, constituem, segundo esse profissional e especialista das relações internacionais do Brasil, os dois grandes objetivos permanentes da política externa brasileira; o segundo tema é, precisamente, objeto de outro trabalho do autor, sobre a diplomacia do desenvolvimento. [10]
Também Gerson Moura, um dos autores mais prolíficos no gênero história diplomática brasileira, não consegue desvincular a organização da matéria-prima bruta de seus trabalhos de pesquisa — de resto excelentemente bem conduzida — de algumas grandes noções que, por terem uma clara conotação “esquerdista”, não são menos inspiradas, evidente ou implicitamente, na tradição hegeliana da história: sistema de poder, mercado capitalista, imperialismo. Este último conceito, por exemplo, já visualizado como categoria histórica concreta e no contexto das relações Brasil-EUA entre 1935 e 1942, seria resultante de uma certa “‘astúcia da razão’, que consciente e inconscientemente respondia às necessidades criadas pela lógica da reprodução ampliada do capital”. [11] Já em seus últimos trabalhos, o substrato hegeliano presente nos conceitos acima referidos é bem menos afirmado no desenvolvimento do discurso, mas permanece a categoria imanente “sistema de poder” (do centro hegemônico, é claro) como referencial básico para a avaliação da autonomia relativa do Brasil e de sua política externa, bem como das possibilidades e limitações da atuação brasileira no chamado sistema internacional de nações. [12]
A questão da autonomia, ou da independência nacional, também está no centro, como se sabe, de muitos trabalhos do historiador José Honório Rodrigues, [13] muito embora ele não tivesse tido tempo, ainda em vida, de preparar a prometida História Diplomática de largo escopo que sempre prometeu, ou sequer de publicar as aulas dadas no Instituto Rio Branco. Sem embargo, ele anunciou tal intenção em diversas ocasiões, [14] tendo o material coligido pela família sido reorganizado pelo historiador Ricardo Seitenfus e publicado no livro que adiante se comenta.
Muitos outros estudiosos enfocaram igualmente a questão da autonomia relativa da política externa do Brasil em trabalhos de alcance parcial publicados desde então, muito embora o resultado deva ser mais exatamente vinculado ao campo “história das relações internacionais” do Brasil — ou mais simplesmente à disciplina ciência política — do que propriamente ao gênero “história diplomática”. A produção acadêmica nesse setor não deixa tampouco de refletir com uma certa contemporaneidade as grandes tendências da política externa brasileira, como não deixou de observar um diplomata voltado para as lides acadêmicas. [15]
Em que pese, portanto, a crescente produção no campo das relações internacionais do Brasil, o fato é que fazia falta, desde as História(s) Diplomática(s) de Hélio Vianna e de Delgado de Carvalho, uma história diplomática digna desse nome. Os historiadores da nova geração universitária não lograram produzir, até recentemente, obras equivalentes destinadas a um público amplo. O Embaixador Ricupero, como vimos, considerou em 1989 que a História Diplomática do Brasil, de Delgado, continuava a não ter substitutos ou alternativas, o que, considerando seu caráter essencialmente didático e a compilação de textos ali feita, não deixa de ser verdade ainda hoje, em que pese o aparecimento da obra de Amado Cervo e de Clodoaldo Bueno e o livro póstumo de José Honório. Assim, até o surgimento do manual desses dois historiadores, os estudiosos profissionais (acadêmicos e diplomatas) ou mesmo os simples diletantes da política externa brasileira foram obrigados a uma longa travessia do deserto.

Cervo e Bueno: o ideal desenvolvimentista
Como se situa a História da Política Exterior do Brasil no conjunto da historiografia brasileira? Nossos dois autores se colocam na continuidade metodológica de José Honório ao recusar a simples linearidade descritiva da historiografia oficial, enfatizando ao contrário as grandes linhas de ação da política externa brasileira enquanto instrumento do desenvolvimento (ou do atraso) nacional, o que eqüivale a dizer, da autonomia da Nação.
Na elaboração de uma nova metodologia para o estudo da política exterior do Brasil, os dois autores operaram, antes de mais nada, uma reorientação da ênfase conceitual em que se basearam até aqui os estudos nessa área, deslocando o eixo analítico da tradicional “história diplomática” — e, portanto, privilegiando excessivamente as “relações entre Estados” — para o terreno mais amplo das “relações internacionais” da Nação, em seu conjunto, englobando, assim, os processos econômicos e as forças sociais em ação no caso brasileiro.
Cervo e Bueno dão maior atenção aos processos de natureza estrutural que sustentam a trama das relações internacionais do Brasil, buscando seus fundamentos nas chamadas “forças profundas” da história, para retomar o clássico conceito introduzido pelo historiador Pierre Renouvin. Eles explicitam seus objetivos da seguinte forma: “consolidar o conhecimento elaborado sobre as relações internacionais do Brasil e revestir a síntese resultante desse esforço com uma nova interpretação histórica”. [16] Vejamos rapidamente, numa apresentação sumária, como foram cumpridas essas duas metas.
A “consolidação do conhecimento” é realmente impressionante: são mais de 400 páginas de exposição rigorosa sobre as grandes tendências de nossa política externa, de 1822 ao final dos anos 80, com um tratamento sistemático dos grandes problemas estruturais e uma apresentação criteriosa dos fatos que dão sentido a cada conjuntura histórica particular. À base desse trabalho monumental, mais de 340 títulos de obras diretamente relacionados com o objeto da pesquisa, cuidadosamente referenciadas em cada capítulo. A organização do trabalho entre os dois autores evidencia uma divisão do trabalho segundo o princípio das “vantagens comparativas”: Amado Cervo, um especialista do período imperial, responsabilizou-se pela primeira parte, sobre a “conquista e o exercício da soberania”, que vai de 1822 a 1889. Clodoaldo Bueno trata do longo período republicano até o golpe de 1964, resumindo-o sob os conceitos de “alinhamento” e de “nacional-desenvolvimentismo”. Amado Cervo, finalmente, retoma a pluma para a descrição do período recente, pós-64, caracterizado em política externa como o de um “nacionalismo pragmático”.
As conclusões dos autores, por sua vez, são um testemunho da “nova interpretação histórica” que eles procuraram oferecer: a política externa, num país como o Brasil, tem um caráter supletivo, dados os condicionamentos objetivos e a vontade política (ou sua ausência) que atuaram no processo de desenvolvimento nacional nestes últimos 200 anos. Em outros termos, os avanços ou atrasos desse processo estão mais bem correlacionados com as fases de expansão ou mudança no sistema capitalista do que com um projeto nacional de desenvolvimento dotado de uma política internacional coerentemente aplicada pelas elites ao longo do tempo. Estamos longe, como se vê, da visão triunfalista dos autores tradicionais.
Igualmente interessante, na obra de Cervo e Bueno, é a recusa da chamada “teoria da dependência”, que contaminou bom número de trabalhos acadêmicos nas últimas duas décadas. Realmente, a alegada conivência das elites com um projeto de dominação externa não encontra fundamentos empíricos, a não ser ao nível do anedótico. Cabe, aliás, reconhecer, de um modo geral, a honestidade intelectual dos autores na apreciação das diferentes fases das relações exteriores do Brasil, mesmo quando se justifica a crítica da “americanização” ou do “alinhamento” da política externa oficial, ou mesmo a ausência, entre 1912 e 1930, de um projeto de política exterior claramente formulado e com estratégias de implementação. Em suma, trata-se de obra sólida, apoiada em extensa pesquisa primária (embora referida muito sumariamente na Introdução) e consolidando o essencial da produção bibliográfica acumulada na comunidade acadêmica nas últimas duas ou três décadas.

José Honório Rodrigues: a recuperação da história diplomática
Uma História Diplomática do Brasil, cuja publicação tinha sido anunciada várias vezes pelo seu autor principal e que era aguardado com impaciência há muitos anos, recupera, postumamente, como se disse, as aulas dadas por José Honório no Instituto Rio Branco entre 1946 e 1956, acrescido de dois capítulos finais pelo historiador gaúcho Ricardo Seitenfus (convidado em 1991, pela viúva Lêda Boechat Rodrigues, para organizar as notas datilografadas deixadas pelo grande nome da historiografia nacional, falecido em 1987. Ressalte-se, desde já, que não se trata da “grande” história diplomática que pretendia compor José Honório Rodrigues, mas de um sucedâneo didático que possui ainda assim inegáveis méritos.
Como indica Ricardo Seitenfus, em sua Nota Introdutória, o texto deixado por José Honório é minucioso até a gestão do Barão do Rio Branco, tornando-se a partir da Primeira Guerra Mundial “genérico e resumido” (p. 20). Ele dedicou-se então a redigir um complemento da história diplomática brasileira desde a Conferência de Versalhes até o rompimento da neutralidade brasileira, na Segunda Guerra, especialista que é, sob a orientação inicial do próprio José Honório, da política externa durante a era Vargas. Ele já tinha publicado sua tese de doutoramento na Universidade de Genebra, uma pesquisa extremamente bem documentada sobre a diplomacia da “neutralidade” varguista durante os anos mais críticos de seu regime. [17]
Dotado de uma perspectiva própria, substantivamente enriquecedor de nossa literatura especializada no campo das relações internacionais, o volume apresenta porém alguns reparos menores de forma, dentre os quais uma revisão insuficiente das referências bibliográficas preparadas à época por José Honório ou de algumas passagens obscuras de seus próprios originais. A extensão cronológica do título (1945) é, de certa forma, enganadora, uma vez que o tratamento de nossa história diplomática chega, efetivamente, apenas até o limiar da conferência interamericana do Rio de Janeiro, em princípios de 1942. A organização da obra pode também ser considerada como desbalanceada, no sentido em que, às 200 páginas, 12 capítulos e quatro séculos (de Tordesilhas a Rio Branco) sob a pluma de José Honório, seguem-se mais 200 páginas, em dois capítulos, para os vinte anos de crises do entre-guerras.
Trata-se, em todo caso, no que se refere ao panorama global traçado por José Honório, de uma bem-vinda complementação bibliográfica aos trabalhos mais conhecidos nesse campo. Uma das curiosidades deste texto de história diplomática “recuperada”, já que composto há quase 50 anos, é precisamente o fato de nele encontrarmos um José Honório diferente daquele a que estávamos acostumados, se julgarmos com base em seus textos “iconoclastas” de princípios dos anos 60, quando ele se comprazia em atacar a versão “incruenta” da “história oficial”, os compromissos conservadores das elites e a ausência do “povo” da historiografia dominante. Aqui José Honório segue um estilo bem mais tradicional, praticamente despojado do tom nacionalista, apaixonado e “contestador” do publicista da “política externa independente”.
As notas preparadas por José Honório seguem uma narrativa linear das relações exteriores do Brasil colônia e independente, tratando segundo uma clássica abordagem política (com algumas breves pinceladas econômicas) dos principais episódios de nossa diplomacia. Não há propriamente uma sistematização das relações econômicas externas, mas tão simplesmente uma cobertura seletiva de alguns dos conhecidos problemas diplomáticos nessa área: basicamente o Tratado de 1810 com a Inglaterra, a abolição do tráfico negreiro, a expansão do café e o incremento do comércio (e das relações políticas) com os Estados Unidos. A despeito disso, ele tinha consciência de que a história diplomática não podia ser isolada dos demais elementos e fatos do processo global: geográficos, econômicos, sociais, religiosos, etc.
Com efeito, como afirmaria José Honório Rodrigues em sua obra metodológica, a história diplomática “investiga e relata a defesa dos direitos nacionais e as relações econômicas, sociais e políticas que se codificaram em tratados e convenções”, ressaltando ainda que “se as relações diplomáticas não se esgotam no manejo das coisas políticas, e envolvem, sobretudo hoje, os negócios econômicos, então, capítulo dos mais importantes da história diplomática seria o que narrasse as missões comerciais e o intercurso mercantil”. [18] Repetindo nas notas compiladas para sua “história diplomática” uma pergunta de Lucien Febvre, ele questiona, no capítulo inicial sobre “o conceito de história diplomática”, como seriam possíveis relações internacionais sem geografia e sem economia?
José Honório busca realmente dar uma fundamentação social e econômica a estes “capítulos da história da política internacional do Brasil”, segundo o nome concebido por ele mesmo para uma possível edição de suas notas de curso. Mas, manifestamente influenciado pelas doutrinas e conceitos então em vigor no imediato pós-guerra (em especial o primado da afirmação do Poder Nacional, como ensinado nos cursos do National War College, retomados praticamente ipsis litteris pela Escola Superior de Guerra), José Honório formula, em dois capítulos metodológicos iniciais, sua concepção das relações internacionais: “O que se pretende não é estudar o homus diplomaticus, com sua polidez protocolar, sua fórmula de saudação sabiamente graduada, mas o Poder Nacional que se exprime nas relações internacionais. Ora, desde que o mundo moderno se acha organizado com base no sistema de Estado-Nação, o que comumente se descreve como relações internacionais nada mais é que a soma de contratos [sic] entre as políticas nacionais destes Estados soberanos independentes. E, como as políticas nacionais são sistemas de estratégia empregados pelos Estados para garantir principalmente sua segurança territorial, e para proporcionar o bem-estar econômico e a prosperidade a seus cidadãos, não se pode fazer uma distinção entre política externa e interna. O que um Estado faz em seu território ou o que faz no exterior será invariavelmente ditado pelo interesse supremo de seus objetivos internos” (p. 27).
Para José Honório, as premissas básicas de nossa política externa, desde a época colonial, sempre foram a acumulação de poder ou a manutenção do status quo, segundo as fases de introversão ou de extroversão que teriam marcado de maneira alternada (e de forma algo mimética ao modelo analítico norte-americano privilegiado por José Honório) a história internacional do Brasil. Essa concepção, surpreendente para quem conhece seus trabalhos ulteriores de “história diplomática”, guia sua reconstituição de nossas relações internacionais: “É, portanto, o jogo da política do poder que queremos recriar, mais que a simples história diplomática. É a supremacia do interesse nacional, em luta com os poderes nacionais adversos ou amigos, que se pretende reconstituir como uma experiência que nos sirva para dar à nossa política exterior verdadeiros objetivos nacionais permanentes. Desse modo, não são só as habilidades diplomáticas, nem o poder militar que se expandem internacionalmente, mas também o poder econômico, pela exportação de capitais e pelo controle de mercados. Por ele veremos que a melhoria constante da posição relativa do Poder Nacional se torna um dos objetivos da política externa do Brasil. Não é, assim, só história diplomática o que se pretende, mas a história das relações do Poder Nacional com os demais poderes nacionais” (p. 29). Ou então: “Toda política externa é uma expressão do poder nacional em confronto, antagônico ou amistoso, com os demais poderes nacionais” (p. 53).
É essa história do “Poder Nacional” que José Honório reconstitui em seus 13 capítulos substantivos, tendo antes fixado de maneira algo “ortodoxa” os três grandes princípios de nossa política exterior desde 1822:
a) preservação de nossas fronteiras contra as pretensões de nossos vizinhos e política do status quo territorial;
b) defesa da estabilidade política contra o espírito revolucionário, tanto interna (revoltas e secessões do período regencial) quanto externamente (luta contea os caudilhos do Prata);
c) defesa contra a formação de um possível grupo hostil hispano-americano e política de aproximação com os Estados Unidos (p. 60).
Em outros termos, uma concepção da atuação diplomática e da afirmação de nossos interesses externos que seria tranqüilamente subscrita por um historiador arqui-conservador (e mesmo reacionário) como Hélio Vianna.
O texto sob responsabilidade de Ricardo Seitenfus evidencia um historiador plenamente capacitado no manejo dos arquivos diplomáticos, inclusive os das principais chancelarias envolvidas na “política pendular” seguida por Vargas durante todo o período de disputas hegemônicas pelo apoio (ou neutralidade) de uma das principais potências da América do Sul. No exame da “escalada para a guerra” a análise atribui forte ênfase às relações com a Alemanha e a Itália totalitárias, em detrimento talvez dos demais vetores de nosso delicado equilíbrio diplomático nesses anos. A menção é pertinente especialmente em relação à Argentina, já que os Estados Unidos merecem subseção específica, bem documentada. Digna de elogios é a reconstituição, praticamente passo a passo, da atuação do Brasil na Liga das Nações, culminando com a lamentável derrota na “batalha” por uma cadeira permanente no Conselho. O leitor contemporâneo não deixará de formular interessantes comparações entre esse episódio e a atual candidatura brasileira a uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, em particular no que se refere às relações, então e agora, com a Alemanha, hoje aliada na disputa pela reforma da Carta, mas concorrente em 1926.
As conclusões nos remetem de volta ao professor dos anos 50. Como outros historiadores tradicionais, José Honório também via na “riqueza demográfica e territorial do Brasil, [uma] inquestionável possibilidade de tornar-se uma grande potência” (p. 463), estando o País, por sua posição nas Américas, “condenado a uma posição de equilíbrio, que não é isenta de perigos e que lhe vale, freqüentemente a censura de pender para um lado ou para outro” (p. 462). Escrevendo numa fase histórica caracterizada pela competição, quando não pelo antagonismo, com a Argentina, mesmo assim José Honório conclui pela importância do incremento de nossas relações econômicas e culturais com os países do Cone Sul; mas, para ele, manifestamente, o processo de integração não estava ainda na ordem do dia, como Hélio Jaguaribe pioneiramente proclamava nos Cadernos do Nosso Tempo.

Rubens Ricupero e a perspectiva diplomática brasileira

Esse processo de integração entre os países da região, em especial entre o Brasil e a Argentina, não pode ser dissociado das relações de cada um deles com as potências dominantes no período recente. Com efeito, seria difícil, ou mesmo impossível, estudar as relações bilaterais dos dois países platinos nos últimos 60 anos sem passar pelo que o Embaixador Rubens Ricupero chamou de “relação triangular Brasil-América Latina-Estados Unidos”. A menção a Ricupero nos conduz, por fim, ao elemento inovador a ser destacado nesta introdução à literatura diplomática: o retorno, se não a chegada maciça, de diplomatas profissionais aos estudos de história diplomática, acelerando e aprofundando uma prática que já tinha sido praticada no passado. O que vale destacar, ademais da própria contribuição historiográfica desses “diplomatas-acadêmicos” ao avanço dos estudos sobre relações internacionais do Brasil, é o fato de que esses autores são também “executores” da política externa concreta, podendo assim introduzir uma visão “interna” dos problemas com que se defronta o País nas diversas vertentes de seu relacionamento externo.
Tendo ministrado, durante longos anos, aulas de história diplomática e de teoria das relações internacionais no Instituto Rio Branco e na Universidade de Brasília, Rubens Ricupero deixou relativamente poucos trabalhos escritos na vertente historiográfica, em contraposição, por exemplo, ao imenso saber transmitido por via oral às centenas de alunos e auditores ocasionais que tiveram a chance de ouvi-lo discorrer sobre a inserção do Brasil no mundo contemporâneo. Alguns textos são contudo sintomáticos de sua preocupação com os grandes problemas do desenvolvimento brasileiro, que ele sempre buscou colocar em perspectiva histórica. Pode-se mencionar, em particular, o trabalho publicado na série “Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990)”, tratando precisamente das relações triangulares entre o Brasil, a América Latina e os Estados Unidos e no qual ele analisa as mudanças de paradigmas na política externa do Brasil dirigida a esses dois parceiros desiguais. [19]
Vários outros trabalhos do Embaixador Ricupero, a maior parte fortemente impregnada de conteúdo histórico a despeito de terem sido escritos com preocupações mais contemporâneas, foram publicados na coletânea Visões do Brasil, que percorre um imenso panorama das relações internacionais do Brasil tendo a “História como método”, como sublinhou seu apresentador, o também diplomata Gelson Fonseca. [20] Uma apresentação ainda mais exaustiva de sua “visão diplomática” do mundo está no texto que serviu de suporte intelectual ao volume comemorativo dos cento e cinqüenta anos do nascimento do Barão do Rio Branco, o patrono incontestável da diplomacia brasileira. [21] Nesse longo ensaio, Ricupero faz mais do que uma “mera” reconstituição biográfica sobre a obra de um antecessor com o qual ele possui evidentes “afinidades eletivas”. Trata-se de uma profunda reflexão sobre a influência do pensamento e ação do Barão nas décadas posteriores a sua atuação efetiva (o “destino do paradigma”), contendo uma seção comportando uma indagação pertinente e contemporânea (“o que faria o Barão hoje?”), finalizando com uma avaliação global da grande personagem histórica (“contrastes e confrontos”). Segundo Ricupero, Rio Branco foi o “último grande representante da escola de estadistas do século XIX brasileiro”. [22]
Reconhecidamente um dos melhores idealizadores e formuladores da política externa governamental — com forte ênfase na área americana — e um de seus pensadores mais abalizados, Ricupero, atualmente Secretário-Geral da UNCTAD, completou, de uma certa maneira, a obra do Barão, ao contribuir, por meio de um arcabouço jurídico de notória complexidade (Tratados da Bacia do Prata e de Cooperação Amazônica, início do processo de integração Brasil-Argentina), com os processos de aprofundamento da cooperação e de interdependência entre Estados que tinham seu relacionamento baseado, até então, no mero reconhecimento mútuo das fronteiras traçadas por Rio Branco. Não fosse o arriscado e talvez o inadequado da comparação, poderíamos chamá-lo de “George Kennan brasileiro”, no sentido de ser Ricupero um diplomata sobretudo conceitual, preocupado em não apenas enquadrar sua atuação profissional num determinado contexto filosófico e moral, mas também em dar-lhe uma perspectiva histórica de mais largo alcance, ao estilo da “longa duração” cara a Fernand Braudel (não por acaso, Ricupero é igualmente o presidente do Instituto de Economia Mundial, de São Paulo, que leva o nome do grande historiador francês).
Outro diplomata que vem contribuindo de forma consistente para o estudo da inserção internacional do Brasil contemporâneo é o Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, autor de muitas análises sobre aspectos diversos das relações exteriores do País no período recente. Depois de extensa análise sobre a diplomacia da “nova República”, [23] Seixas Corrêa organizou, introduziu e comentou cinqüenta anos de participação do Brasil nas assembléias-gerais das Nações Unidas. [24] Segundo sua própria informação, ele encontra-se escrevendo uma “nova” história diplomática do Brasil, fruto de suas pesquisas e de seu trabalho como Professor de história da política externa do Brasil no Instituto Rio Branco. Cabe também referir a outras “notas de aula”, aquelas que o diplomata Fernando Paulo de Mello Barreto produziu durante seu curso sobre o período republicano no Instituto Rio Branco e que estão sendo preparadas para publicação em forma de livro, provisoria e sugestivamente intitulado “Os Sucessores do Barão” (a exemplo de um capítulo de Delgado de Carvalho).
Alguns outros exemplos recentes também confirmam o renovado interesse de diplomatas profissionais pela história diplomática, como parece ser o caso de Gonçalo Mourão, autor de um exaustivo estudo “investigativo” sobre o impacto internacional da Revolução de 1817 em Pernambuco. [25] Muitos outros, é verdade, se dedicam a estudos de história do Brasil, como por exemplo Evaldo Cabral de Mello, mas nem sempre no domínio estrito das relações exteriores, como é a vertente privilegiada neste ensaio. Na tarefa de perscrutar ou inquirir o passado das relações econômicas do País, o profissional da diplomacia dotado de sensibilidade para a reflexão histórica talvez tenha, sobre o observador puramente acadêmico, a vantagem comparativa de formular questões que incidem diretamente sobre o trabalho diplomático tal como conduzido na prática diária ou rotineira de uma chancelaria ou que apresentam uma certa continuidade conceitual ou negocial em relação aos grandes temas inscritos na agenda econômica internacional, do passado ou do presente.
Finalmente, uma menção pessoal pode ser instrutiva para revelar os avanços feitos em relação a um projeto elaborado em princípios dos anos 90 e apresentado em texto metodológico, de certa forma introdutório a um planejado (e ainda em curso) estudo abrangente das relações internacionais do Brasil. [26] Depois de pesquisas sobre as relações econômicas internacionais do Brasil, e de vários trabalhos publicados nessa área — vários deles compilados em volume a ser divulgado proximamente [27] —, este autor deu início a uma série de três ensaios históricos que devem cobrir o essencial do relacionamento econômico externo do Brasil, desde a transferência da família real em 1808 até a atualidade. Dessa forma, um primeiro volume, tratando das etapas formadoras da diplomacia econômica no Brasil já se encontra terminado sob a forma de dissertação funcional, aguardando publicação em sua versão completa. [28] Um segundo volume, provisoriamente intitulado “A Ordem Internacional e o Progresso da Nação: as relações econômicas internacionais na era republicana”, encontra-se em curso de preparação, devendo preceder ao terceiro e último da série, dedicado às relações econômicas internacionais do Brasil na fase contemporânea (pós-1940).
Os alunos mais dedicados de Delgado de Carvalho e seus muitos leitores na diplomacia profissional lançam-se assim à empresa, talvez arriscada mas gratificante, de completar a obra do mestre, sem talvez a garantia de lograr a clareza e a simplicidade alcançadas por este livro que permanece, ainda hoje, um marco no estudo da história diplomática brasileira. Que esta reedição possa continuar a servir os alunos do Instituto Rio Branco e aos dos vários cursos de relações internacionais hoje existentes nas universidades brasileiras por muitos anos, ou quiçá por várias décadas, ainda.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, dezembro de 1997


[1] Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, História da Política Exterior do Brasil. São Paulo: Editora Ática, 1992.
[2] José Honório Rodrigues e Ricardo A. S. Seitenfus: Uma História Diplomática do Brasil (1531-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995; organização e explicação de Lêda Boechat Rodrigues.
[3] Hélio Vianna: História Diplomática do Brasil. 1ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1958; 2ª ed., acoplada à História da República; São Paulo: Melhoramentos, s.d. [1961?], pp. 89-285.
[4] J. Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império. vol. I: As Origens; vol. II: O Primeiro Reinado; vol. III: Da Regência à Queda de Rosas. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, Câmara dos Deputados, Companhia Editora Nacional (Brasiliana, volume 386), 1989; edição fac-similar; xl + 490 pp., 568 pp. e 620 pp. respectivamente, com Introdução de João Hermes Pereira de Araújo: “O IPRI e a ‘Política Exterior do Império’”, pp. v-xxx. O primeiro volume da edição original dessa trilogia foi publicado como tomo especial da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1927; o segundo, na mesma forma, sai em 1928 e o terceiro, já integrando a coleção “Brasiliana” da Companhia Editora Nacional, em 1933, poucos meses antes da morte de Calógeras.
[5]Ver Paulo Roberto de Almeida, “Estudos de Relações Internacionais do Brasil: etapas da produção historiográfica brasileira, 1927-1992”, Revista Brasileira de Política Internacional , Brasília: nova série, ano 36, nº 1, 1993, pp. 11-36, em especial pp. 20-23: “O fatual de qualidade: Delgado de Carvalho”.
[6]Renato de Mendonça, História da Política Exterior do Brasil, 1500-1825. México: Instituto Pan-Americano de Geografia e História, 1945.
[7]José Antônio Soares de Souza, Um diplomata do Império: Barão da Ponte Ribeiro. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1952.
[8]Teixeira Soares, Diplomacia do Império no Rio da Prata, até 1865. Rio de Janeiro: Brand Editora, 1955.
[9]Rubens Ricupero, “Introdução”, Ensaios de História Diplomática do Brasil, 1930-1986. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, Cadernos do IPRI nº 2, 1989, pp. 9-13, cf. p. 12.
[10]Cf Rubens Ricupero, “A Diplomacia do Desenvolvimento”, in João Hermes Pereira de Araújo, Marcos Azambuja e Rubens Ricupero, Três Ensaios sobre Diplomacia Brasileira. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 1989, pp.193-209.
[11]Gerson Moura, Autonomia na Dependência: a política externa brasileira de 1935 a 1942. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
[12]Moura, O Alinhamento sem Recompensa: a política externa do Governo Dutra. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, 1990, mimeo; Sucessos e Ilusões: relações internacionais do Brasil durante e após a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1991; ver também, na vertente propriamente historiográfica, “Historiografia e relações internacionais”, Contexto Internacional, Rio de Janeiro, ano 5, n° 10, julho-dezembro 1989, pp. 67-86, e História de uma História: rumos da historiografia norte-americana no século XX. São Paulo: Edusp, 1995.
[13]José Honório Rodrigues, Aspirações Nacionais: Interpretação Histórico-Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963; 4ª ed. revista, São Paulo: Editora Fulgor, 1970; “Uma Política Externa Própria e Independente”, Política Externa Independente, ano I, nº 1, maio 1965, pp. 15-39; Interesse Nacional e Política Externa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
[14]Rodrigues, Teoria da História do Brasil: Introdução Metodológica. 4ª ed.; São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p. 169; Pereira de Araújo, “Introdução” in Calógeras, J. Pandiá. A Política Exterior do Império, op. cit., p. xxiii.
[15]Gelson Fonseca Jr, “Estudos sobre Política Externa no Brasil: os Tempos Recentes (1950-1980)” in Gelson Fonseca Jr. e Valdemar Carneiro Leão (orgs.), Temas de Política Externa Brasileira. Brasília-São Paulo: Fundação Alexandre de Gusmão-Editora Ática, 1989, pp. 275-283.
[16]Cervo-Bueno, História da Política Exterior do Brasil, op. cit., p. 10.
[17]Cf. Ricardo A. S. Seitenfus, O Brasil de Getúlio Vargas e a Formação dos Blocos: 1930-1942. São Paulo: Companhia Editora Nacional, Coleção Brasiliana, 1985.
[18]Cf. Rodrigues, Teoria da História do Brasil, op. cit., pp. 169 e 174.
[19]Rubens Ricupero, “O Brasil, a América Latina e os EUA desde 1930: 60 anos de uma relação triangular” in José Augusto Guilhon de Albuquerque (org.), Crescimento, modernização e política externa, São Paulo: Cultura Editores Associados-Núcleo de Pesquisa em relações internacionais da USP, 1996, volume I de “Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990)”, pp. 37-60.
[20]Ver Gelson Fonseca Jr., “Rubens Ricupero e a História como Método” in Rubens Ricupero, Visões do Brasil: ensaios sobre a história e a inserção internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1995, pp. 9-24.
[21] Ver o texto de Ricupero in João Hermes Pereira de Araújo (org.) José Maria da Silva Paranhos, Barão do Rio Branco: Uma Biografia Fotográfica,1845-1995. Brasília: FUNAG, 1995.
[22]Para uma apreciação geral desse texto de Ricupero, ver meu artigo-resenha, “O legado do Barão: Rio Branco e a moderna diplomacia brasileira”, publicado na Revista Brasileira de Política Internacional , vol. 39, n° 2, julho-dezembro 1996, p. 125-135.
[23]Ver “A política externa de José Sarney” in Guilhon de Albuquerque (org.), Crescimento, modernização e política externa,, op. cit., pp. 361-385.
[24] Ver Ministério das Relações Exteriores: A Palavra do Brasil nas  Nações Unidas: 1946-1995. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1995. Sobre esse volume, escrevi uma resenha-artigo, “O Brasil no sistema político multilateral: uma perspectiva de 50 anos”, inédita na versão completa e publicada em versão resumida na Revista Brasileira de Política Internacional , vol. 39, n° 1, janeiro-julho 1996, p. 182-183.
[25]Cf. Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão, A Revolução de 1817 e a História do Brasil: um estudo de história diplomática. Belo Horizonte: Itatiaia, 1996.
[26]Paulo Roberto de Almeida, “Relações Internacionais do Brasil: introdução metodológica a um estudo global”, Contexto Internacional, Rio de Janeiro: vol. 13, nº 2, julho-dezembro 1991, pp. 161-185.
[27]Idem, “Dos descobrimentos à globalização: relações internacionais e política externa do Brasil” (em curso de publicação).
[28]Paulo Roberto de Almeida, Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, Instituto Rio Branco, 1997, tese apresentada no XXXIV Curso de Altos Estudos, 2 tomos.; sendo preparada para edição pública.


quarta-feira, 3 de agosto de 2016

O renascimento da política externa - Paulo Roberto de Almeida (revista Interesse Nacional)

Acho que não havia refletido meu mais recente artigo publicado:

1238. “O renascimento da política externa”, revista Interesse Nacional (ano 9, n. 34, julho-setembro de 2016, link: http://interessenacional.com/index.php/edicoes-revista/o-renascimento-dapolitica-externa/). Relação de Originais n. 2983.

O Renascimento da Política Externa

Um livro branco que desapareceu
No primeiro trimestre de 2014, o então segundo chanceler do terceiro governo lulopetista anunciou, com grande transparência, o início dos chamados “Diálogos de Política Externa”, uma série de exercícios de reflexão a propósito de temas selecionados da diplomacia brasileira, para os quais foram convidados os próprios diplomatas (chefes das diversas áreas do Itamaraty), ademais de funcionários públicos, acadêmicos, líderes do mundo empresarial e representantes dessa vaga entidade chamada “sociedade civil” – na qual atuam, na verdade, entidades que costumam servir de correias de transmissão para determinados movimentos políticos – e que deveriam oferecer subsídios para integrar um “Livro Branco da Política Externa”, que deveria estar disponível até meados daquele ano. Os diálogos foram gravados, os vídeos colocados nos canais apropriados, mas o livro prometido não viu a luz do dia em nenhum momento desde então.
Muito provavelmente – mas isto é apenas especulação –, a síntese dos diálogos, efetuada por diplomatas profissionais, deve ter se chocado com alguns conceitos caros aos companheiros que comandaram os destinos do Brasil desde janeiro de 2003 até o dia 12 de maio de 2016, quando eles foram desalojados do poder executivo e de outros órgãos estatais. No intervalo entre sua elaboração e nossos dias, o projeto de “livro branco” deve ter ficado dormindo em computadores do próprio Itamaraty e, mais precisamente, na gaveta de algum assessor dos preclaros promotores da “diplomacia ativa e altiva” – que, na verdade, deixou de sê-la há algum tempo – esperando, talvez, alguma correção nos seus termos, segundo os cânones da “novilíngua” companheira.
Com a assunção de um novo governo, o mais provável é que o livro se torne ainda mais diáfano, até desaparecer em alguma estante do arquivo morto. Os diplomatas profissionais, que devem ter tomado cuidado ao tentar compatibilizar sua visão isenta, basicamente técnica da agenda internacional do Brasil, com aWeltanschauung petista – marcada pelos preconceitos mais cultivados nestes anos de bolivarianismo caboclo –, podem não ter mais vontade de mostrar o produto confeccionado em meados de 2014 ao novo titular da chancelaria, que poderá pedir, ou não, um outro livro branco, ou simplesmente deixar de lado esses exercícios de divertissement intelectual.

Alguma “herança maldita” na política externa?
A despeito de sua pouca relevância no jogo político normal, existem diferenças naturais de visão no que se refere à agenda da política externa entre os partidos e os movimentos políticos que disputam espaços no cenário político-congressual de qualquer país. Em matéria de relações exteriores, o melhor a fazer é construir consensos em torno das melhores políticas para a interface externa do país do que ficar confrontando esta ou aquela questão, como se fossem propostas antagônicas, ou como se apenas uma servisse ao país e a outra fosse ser totalmente prejudicial. Diplomacia se faz pela criação de consensos, não pelo aprofundamento de divergências. O partido companheiro parece ter feito exatamente o inverso nos 13 anos em que esteve à frente dos destinos do Brasil.
Segundo seus próprios promotores e condutores, a política externa do Brasil, assim como sua diplomacia profissional, sofreu profundas inflexões ao longo desse período, mais exatamente desde antes da inauguração dos governos do PT, a partir de 2003, prolongados por três mandatos e meio. Com efeito, ainda em dezembro de 2002, os companheiros se mobilizaram para salvar Hugo Chávez, então enredado por uma greve da PDVSA, que ameaçava paralisar o país: o governo FHC consentiu em enviar um navio da Petrobras repleto de combustíveis, num típico papel de “fura-greves” que não se sabia existir naquela administração, em princípio comprometida com o princípio constitucional da não ingerência nos assuntos internos de outros países.
De modo geral, a “diplomacia ativa e altiva” dos companheiros – segundo o slogan cunhado pelo próprio (e principal) chanceler da era do Nunca Antes – contou com a aprovação inquestionada do amplo leque de militantes dos partidos de esquerda e do apoio crítico de larga fração da comunidade acadêmica, geralmente representada por universitários das Humanidades. Jornalistas experientes não deixaram, porém, de apontar o nítido caráter partidário dessa política externa, bem como a utilização do ferramental diplomático para a condução de determinadas iniciativas que se revelaram em contraste com tradições assentadas no Itamaraty, quando não em contradição com certo consenso nacional que tinha sido construído ao longo de décadas, no que se refere às grandes linhas de atuação da política exterior do Brasil.
Dois grandes temas sobrelevam sobre os demais no conjunto de posturas no plano externo a que o Brasil foi levado nos anos da diplomacia do PT: o alinhamento geral da política externa brasileira a teses nitidamente caracterizadas como pertencentes ao espectro partidário da esquerda latino-americana, com a perda consequente de sua credibilidade, e o isolamento comercial do Brasil num momento de aceleração dos processos de globalização e de consolidação de grandes cadeias produtivas em escala regional ou mundial. Já efetuei breve análise dessas duas heranças da diplomacia companheira em artigo de jornal – “Epitáfio do lulopetismo diplomático”, O Estado de S. Paulo(17/05/2016; link: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,epitafio-do-lulopetismo-diplomatico,10000051687) – o que me permite, ainda que também de maneira sintética, passar diretamente à análise de alguns outros grandes temas da agenda internacional do Brasil que figuram na pauta do Itamaraty pós-lulopetismo.
Antes, contudo, convém desmantelar o próprio símbolo, e o maniqueísmo a ele implícito, usado pelos companheiros para tentar classificar a sua diplomacia como a única possível para um Brasil “soberano” e supostamente “não submisso a interesses hegemônicos”, o que já é indicativo de uma fraude conceitual. A chamada diplomacia “ativa e altiva” nada mais foi do que um slogan, como muitos outros criados durante esses anos. O slogan nada diz sobre o conteúdo específico da política externa, mas deixa entrever que esta se opunha a supostas potências hegemônicas que estariam interessadas em manter o Brasil periférico ou subordinado. Como outros fantasmas do partido neobolchevique, essa é uma visão ingênua do mundo, como se o Brasil pudesse ser submetido por qualquer outro país. Traduz também um infantilismo confrontacionista ou até certa insegurança psicológica quanto ao que deveria ser feito. Soberania não se defende com retórica barata, com proclamações altissonantes, mas com atos concretos, sem bravatas, promovendo políticas consistentes com os interesses do país, sem qualquer alinhamento com grupos ou outros países, em total independência.
A acusação de má-fé de que se pretende agora inverter a política externa do Brasil, tentando afastá-la da América Latina para alinhá-la com os Estados Unidos e a Europa, é ridícula, se não fosse torpe. É tão absurda que nem merece refutação, pois só expressa o desejo dos companheiros de justamente antagonizar, dividir, praticar o maniqueísmo habitual que os caracteriza. Tal visão de que existem dois modelos de política externa, e que só o da era Lula representava a soberania e a defesa do interesse nacional, é falsa e apenas expressa o profundo simplismo que polui a mente dos companheiros. Que isso seja proclamado por militantes, pode-se entender; quando são acadêmicos que afirmam isso, só podemos lamentar que estes sejam tão simplórios ou desonestos intelectualmente. A noção de uma “diplomacia Sul-Sul”, por exemplo, é tremendamente redutora, pois apenas mentes fechadas, olhos tapados por viseiras ideológicas, podem conceber que o essencial das relações exteriores do Brasil passe por essa dimensão geográfica exclusivamente. O Brasil sempre se desenvolveu abrindo-se a todos os quadrantes do globo, recebendo aportes humanos, de conhecimento, investimentos de todas as partes. Por que agora tentar reduzir essa riqueza a um novo determinismo geográfico? Por que o Brasil teria de reduzir o escopo de suas relações, restringir o amplo leque de relações? Vamos agora ao que interessa.

A política externa numa agenda nacional de desenvolvimento
A política externa tem, realisticamente, um papel secundário em face dos grandes problemas nacionais. A maior parte desses problemas são “made in Brazil”, e devem receber respostas e soluções puramente nacionais. O ambiente externo tem sido, na verdade, favorável ao crescimento dos países que souberam aproveitar os impulsos e as oportunidades externas para alavancar avanços internos. A política externa poderia ter um papel relevante na agenda nacional se o Brasil fosse mais aberto ao comércio internacional e bem mais receptivo aos investimentos estrangeiros e associações com os países mais avançados tecnologicamente, fatores relevantes para projetos nacionais de desenvolvimento. Uma comparação entre os países de mais alta renda per capita e seus respectivos coeficientes de abertura externa comprovam esta assertiva. Este deveria ser um argumento suficientemente convincente para justificar um processo de abertura comercial e de maior aproximação aos países líderes do desenvolvimento tecnológico e cultural no mundo. Uma política externa compatível com os interesses nacionais precisaria se concentrar numa agenda desse tipo, o resto sendo secundário, inclusive as alianças Sul-Sul, que só nos afastam desses objetivos prioritários.
Pode o Brasil encarar, internamente, a ampliação de facilidades no comércio exterior, com o desmantelamento de entraves administrativos e sistêmicos para uma elevação dos fluxos de exportações e de importações? Tal processo teria de ser paralelo e coincidente com um processo de diminuição da carga tributária sobre as empresas, insuportável sob qualquer critério que se examine. Paralelamente, seria iniciado um esforço de revisão completa das bases de funcionamento da união aduaneira do Mercosul, a começar pela alternativa entre: (a) unificação de suas regras de aplicação; ou (b) negociação de um protocolo adicional ao Protocolo de Ouro Preto (POP), introduzindo a possibilidade de negociação externa individual de novos acordos de liberalização, com preservação da cláusula de nação-mais-favorecida para dentro. Sob a segunda hipótese, o Brasil poderia negociar acordos com a UE, a Aliança do Pacífico e até com os EUA, prevendo redução de tarifas, abertura a comércio de serviços, defesa de propriedade intelectual e regras estáveis para investimentos, abertos aos demais membros do Mercosul, se estes assim o desejassem.
Não há muito o que o Brasil possa fazer no plano das negociações comerciais multilaterais, seja no âmbito da Rodada Doha (paralisada), seja no contexto da agenda de Bali ou qualquer outra. O que cabe, sim, é examinar os demais acordos plurilaterais existentes no sistema multilateral de comércio, verificar a compatibilidade com o processo (a ser conduzido) de reforma na política comercial nacional, e considerar a hipótese de aderir a esses outros instrumentos de abertura e facilitação. No plano plurilateral, caberia examinar os acordos bilaterais de livre comércio, ou simplesmente de preferências tarifárias, que o Brasil poderia começar a negociar com os mais relevantes parceiros do comércio internacional, que não são exatamente os do antigo G20 comercial, onde estão os maiores obstrutores de uma agenda aberta, e aos quais estivemos vinculados por simples decisão política e ideológica tomada em 2003.
Na vertente da política industrial, os governos petistas promoveram cinco ou seis, todas fracassadas, e se dedicaram a improvisações e puxadinhos, que criam uma selva de regulações diferenciadas entre setores, com regimes fiscais diferentes, inclusive desrespeitando o princípio da isonomia tributária que deveria pautar as ações do governo, além das regras de não discriminação do Gatt-OMC. A política industrial está intimamente relacionada à política comercial e, na sua vertente externa, deveria se dedicar a atrair o máximo possível de investimentos estrangeiros e incentivar associações com o que há de mais tecnologicamente avançado no mundo. A política Sul-Sul nunca pôde, inquestionavelmente, cumprir esse papel. Independentemente de o Brasil ser ou não membro da OCDE, caberia se associar ao Comitê de Indústria dessa organização e passar a examinar todos os protocolos, códigos e demais normas voluntárias estabelecidas naquele âmbito, de maneira a colocar a indústria brasileira num contexto de plena conformidade com os padrões internacionais nessa área.
Uma das primeiras tarefas internas seria retomar, reexaminar, eventualmente assinar ou renegociar todos os acordos bilaterais de proteção a investimentos, os APPIs, que foram sabotados pelos petistas antes mesmo de assumirem o governo em 2003. O Brasil descumpriu mais de uma dezena de acordos assinados com os mais importantes parceiros exportadores de capitais e de investimentos diretos. Deixou de oferecer um ambiente seguro e estável para esses investimentos, assim como deixa de oferecer um ambiente estável para os próprios empresários brasileiros do setor. Caberia trabalhar com a CNI e algumas federações estaduais mais ativas nessa área, com o objetivo de colocar o Brasil no mesmo patamar regulatório que os países mais avançados, deixando de lado o stalinismo industrial praticado pelo último governo petista.
Estas áreas, comercial e industrial, são as mais relevantes na interface entre uma agenda interna de desenvolvimento e uma agenda diplomática na área econômica. Existem outras, por certo, relativas à tecnologia, à propriedade intelectual (na qual os governos lulopetistas também promoveram inacreditáveis retrocessos conceituais e práticos), à cooperação científica e educacional – durante muito tempo toldada pela distorção ideológica da diplomacia Sul-Sul – e até no terreno das políticas de segurança e de capacitação bélica, igualmente marcadas pelo anti-imperialismo infantil dos companheiros e por suas alianças espúrias nesse terreno. Todas elas possuem algum impacto econômico relevante para um projeto nacional de desenvolvimento, mas cabe insistir em que o ambiente internacional é bastante favorável ao crescimento do Brasil, à condição que este empreenda reformas internas capazes de potencializar a sua inserção na economia global.

O problema do  Mercosul
O Mercosul é o mais importante problema diplomático do Brasil, mas também econômico-comercial. Desde 2003, ele deixou de ser uma ferramenta para a inserção internacional do Brasil, tal como tinha sido concebido no início dos anos 1990, e se tornou um problema triplo: diplomático, econômico e de política comercial. Os desvios quanto aos objetivos do Tratado de Assunção (TA), detectados ainda na fase 1995-1999, foram ampliados depois da crise argentina e potencializados pelo curso errático das políticas adotadas pelas administrações Kirchner e Lula desde 2003. O tripé essencial para a continuidade do bloco – liberalização comercial para dentro, política comercial unificada para fora e coordenação de políticas macro e setoriais – foi totalmente desvirtuado a partir de então, em favor de uma politização indevida das instituições próprias ao bloco, seguindo-se uma verdadeira anarquia institucional.
No campo das negociações externas, ocorreu um grande desastre, ao se adotar uma postura defensiva baseada no mínimo denominador comum, que passou a ser o protecionismo argentino. A implosão ideológica da Alca e a crença ingênua num acordo com a União Europeia (UE) foram dois passos irrefletidos no caminho da insensatez. Nada avançou a partir de então, a não ser acordos ridículos na dimensão Sul-Sul, e um com Israel, apenas para compensação visual. Não estranha, assim, que vizinhos mais sensatos tenham procurado suas próprias soluções para comércio e investimentos, ao negociar acordos com os EUA, com a UE e com outros parceiros, e ao adotar seus próprios esquemas de liberalização real dos fluxos comerciais (Aliança do Pacífico), já pensando na grande integração produtiva que terá seu centro na bacia do Pacífico e até no Índico, reunindo todos os grandes atores do comércio internacional (dos EUA à Austrália e toda a Ásia Pacífico integrada na globalização). O Brasil e o Mercosul estão totalmente ausentes desse novo universo absolutamente central da atual e futura economia mundial.
Pior ainda foi a expansão indevida, totalmente política, do Mercosul em direção a vizinhos pouco propensos a adotar os mecanismos básicos da união aduaneira tal como definida em 1991 e supostamente implementada em 1995 pelo Protocolo de Ouro Preto. O ingresso da Venezuela, a suspensão ilegal do Paraguai, a abertura apressada e injustificada a parceiros incapazes de cumprir os requisitos básicos do TA (como Bolívia, Equador e, talvez, Suriname) não apenas não retificam o que foi feito de errado no Mercosul, como acrescentam novos problemas ao edifício instável do bloco.
Existem problemas no Mercosul, mas poucos derivam de mecanismos e instituições do próprio bloco, vários resultando de políticas, atitudes e comportamentos das administrações nacionais, com destaque para a Argentina, mas contando esta com a conivência, complacência e cumplicidade dos governos petistas. Os problemas se situam na zona de livre comércio – e aqui o diálogo único a ser travado é com a Argentina –, mas também na união aduaneira, o que envolve todos os parceiros, em especial a Argentina e o Paraguai. Nem se considera o problema da Venezuela, que deriva de seu próprio caos econômico: ela deveria ser, simplesmente, colocada em quarentena e isolada das negociações que precisam ser feitas com os sócios originais do bloco, para que se possa iniciar o processo de renegociação diplomática.
No plano do livre comércio, caberia fazer um mapeamento dos impedimentos práticos à sua total consecução e isolar esses setores numa espécie de “caixa amarela”, para então começar a discussão sobre seu enquadramento ou dispensa semipermanente. No campo da união aduaneira, caberia, igualmente, contabilizar e identificar os fluxos que são levados ao abrigo e fora da TEC, para um diagnóstico mais detalhado da situação. O mais importante, porém, seria um exercício de exame das políticas comerciais dos quatro membros – ao estilo da OMC, adaptado às configurações do bloco –, com vistas a ter um panorama real, e realista, sobre todas as políticas nacionais compatíveis e incompatíveis com os objetivos do bloco. Apenas a partir desse diagnóstico mais preciso se poderá partir para o terreno das prescrições de políticas, algumas simplesmente diplomáticas, mas a maior parte dependente de definições nas próprias políticas comerciais e industriais de todos os sócios. Em síntese, o Mercosul precisaria voltar a ser um componente da estratégia brasileira de inserção na economia mundial, tal como foi concebido originalmente.

O problema do Focem
Assim como o Mercosul é o mais importante problema diplomático do Brasil, o Fundo de Convergência Estrutural (Focem) do Mercosul é o mais importante problema político do bloco, pelo menos para o Brasil. Suas principais implicações não são nem de ordem econômico-comercial, ou de recursos orçamentários, mas basicamente de ordem política, e elas têm origem, como outros equívocos monumentais da gestão amadora dos companheiros na política externa, numa incompreensão flagrante das realidades do Mercosul ou as do próprio Brasil. Mais uma vez, a ideologia, junto com a incultura econômica, prevaleceu sobre a simples racionalidade instrumental, mas nem todos os pecados são devidos aos companheiros, ainda que tenham sido eles que tomaram a decisão de implantar esse monstro bizarro no corpo do Mercosul: contribuiu para isso a obsessão do ex-SG-MRE, Samuel Pinheiro Guimarães, em querer converter o Mercosul numa obra de benemerência em favor dos sócios menores, em lugar de simplesmente atender ao que estava escrito no Tratado de Assunção. O fato é que o Brasil é a terceira renda per capita do bloco, e acabou assumindo quase quatro quintos do esquema de financiamento amador que acabou sendo criado sem qualquer estudo técnico.
O Focem parte de dois equívocos, ambos monumentais, mas que jamais tinham sido cometidos pelo Itamaraty ou pelos dirigentes econômicos brasileiros, nos primeiros 12 anos do Mercosul: o de que os problemas da não integração acabada no bloco seriam devidos a supostas “assimetrias estruturais” entre os sócios e o de que essas assimetrias poderiam ser corrigidas por ações pontuais dos Estados membros. Havia uma demanda dos outros sócios do Mercosul, quanto à redução das “assimetrias” dentro do bloco, para que ele pudesse avançar, argumento que o governo FHC e a diplomacia brasileira nunca aceitaram como válido para a implementação de medidas “corretoras”, obviamente a cargo do sócio maior, o Brasil. Os argentinos, em especial, já vinham reclamando há muito tempo dessas assimetrias, primeiro de ordem cambial – mas quem tinha fixado o câmbio ao dólar foram eles, não o Brasil –, depois de natureza financeira – a existência de um banco generoso, como o BNDES, que eles não tinham, como se fosse culpa nossa a inexistência de mecanismos similares na economia vizinha –, e finalmente o simples fato de o Brasil sozinho ser muito grande, o que é um fato, mais exatamente 60% a 70% do peso bruto da economia, do comércio, dos recursos, da amplitude do mercado interno – que permitiria “economias de escala” às indústrias brasileiras, como se o mercado interno não estivesse aberto às empresas dos demais também, permitindo-lhes as mesmas economias de escala.
O governo dos companheiros, vendo o bloco através de lentes equivocadamente comunitárias – em especial no tocante aos programas de reconversão setorial e de redução das desigualdades regionais existentes entre os países membros da UE – considerou que caberia ao Brasil assumir o papel da Alemanha, apresentando-se, em 2004, como o provedor líquido de recursos num projeto de redução de “assimetrias estruturais” que supostamente estariam impedindo o Mercosul de se desenvolver de modo adequado. O Brasil propôs financiar o Focem, à razão de 70% dos montantes operacionais, que replica o que já está sendo feito, sem a expertise técnica, pelos organismos multilaterais e regionais de financiamento. O sistema é limitado – ainda que o Brasil tenha comprometido recursos bem mais amplos do que a sua parte de 70% nos muitos milhões oferecidos – e não reduzirá de modo significativo grandes assimetrias, que são de política econômica, não de natureza geográfica ou a dotação de fatores.
Essa incorporação acrítica de um modelo europeu, transpondo ao cenário do Mercosul, um modelo que se acredita similar (ou funcionalmente equivalente) ao do conceito europeu de “coesão social”, foi feita sem que se aferisse economicamente sua necessidade ou sem que os fundamentos técnicos dessa posição fossem devidamente assentados. A “diplomacia da generosidade” dos companheiros simplesmente dobrou-se aos “argumentos” dos demais sócios de que o bloco não poderia avançar na presença das “profundas assimetrias” que supostamente separavam os países membros. O Focem acabou duplicando o trabalho de entidades multilaterais de financiamento, com base numa seleção basicamente política dos projetos. Não existe qualquer evidência de que o Focem conseguirá atenuar as “assimetrias estruturais” – que são o resultado de condições existentes nos mercados de forma quase permanente ou de vetores ainda mais resistentes a ações governamentais de reduzido escopo transformador ou de impacto financeiro modesto – e pode, ao contrário, introduzir novas deformações nos sistemas de financiamento a projetos de desenvolvimento.
O Focem, portanto, é um erro, que foi cometido voluntariamente pelo Brasil dos companheiros. Como os demais países se aproveitam disso para colocar seus projetos pouco vendáveis ao BID, ao Bird, ou à CAF, é evidente que eles não vão querer se desfazer de tão generosa fonte de financiamento, além de pouco exigente, sem maior expertise técnica na análise de projetos ou sem uma rigorosa análise de custo-benefício.
A Unasul, teoricamente sucessora da Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana (sabotada pelos companheiros), deveria se ocupar de integração física, nas estruturas existentes ou em outras a serem propostas pelo Brasil, com o que se poderia encerrar mais um episódio de trapalhadas companheiras, com custos voluntariamente assumidos pelo Brasil. A rigor, se o Mercosul deixou de ser exclusivamente econômico e comercial, e também passou a ser político e social, cabe traduzir essa imensa revolução na prática e eliminar mais esse monstro metafísico que faz parte da herança maldita dos companheiros.

A integração regional na América do Sul
A América do Sul se encontra hoje mais fragmentada do que em qualquer época anterior, quando os poucos esquemas existentes de integração estavam restritos aos esquemas de comércio preferencial no âmbito da Aladi, ou se pretendiam mais profundos, como o Grupo Andino e o próprio Mercosul, alegadamente tendentes ao mercado comum. O Grupo Andino (1969) se enquadrava no sistema multilateral de comércio regido pelo Gatt, em seu artigo 24 (para os esquemas de livre comércio), ao passo que a própria Aladi (1980) e o Mercosul (1991) têm sua cobertura legal dada pela cláusula de habilitação, instituída no âmbito da Rodada Tóquio do Gatt (1979).
Não se pode dizer que a integração sul-americana tenha avançado ao longo dos anos; ao contrário, ela recuou, na prática, ainda que a retórica da integração tenha se disseminado em todos os países, com escassos resultados efetivos. Onde estão, por exemplo, os processos de desmantelamento de barreiras alfandegárias e de abertura econômica recíproca? A integração efetiva é inversamente proporcional à retórica da integração: se os países pagassem multas cada vez que se referissem indevidamente ao processo haveria, certamente, maior comedimento na sua reiteração vazia.
Com exceção da Aliança do Pacífico, que é integrada por um país da América do Norte, o México, e que conformou mecanismos automáticos de abertura recíproca, todos os demais países recuaram nos processos de abertura econômica e de liberalização comercial, inclusive o Brasil, que por sinal denunciou, poucos anos atrás, um acordo de livre comércio de automóveis com o México, pois os saldos bilaterais se tinham tornado negativos, num sinal preocupante de que acordos de liberalização comercial só podem ser justificados se eles se conformam ao velho padrão mercantilista.
Qualquer diagnóstico que indique que a integração na América do Sul avançou – simplesmente porque os discursos oficiais registram que se criou a Unasul, a Aliança do Pacífico, que o Mercosul incorporou, alegremente e sem pensar, todo e qualquer candidato que se apresentou, ou porque existem diversos organismos de coordenação regional (Calc, Celac e toda uma fauna de pretensos mecanismos de “integração”) – não reflete a realidade da região. E por que isso ocorreu? Porque a maior parte dos países empreende caminhos próprios em suas políticas econômicas sem qualquer atenção efetiva aos processos de integração, que de resto possuem baixa densidade política e econômica. Mesmo o grupo supostamente mais avançado em matéria de integração comercial – e praticamente apenas comercial –, a Aliança do Pacífico não pretende, de fato, realizar a integração entre eles: podem até eliminar completamente as barreiras tarifárias e não tarifárias, que o comércio recíproco permanecerá limitado e parcial. Eles não se uniram para fazer isso, e sim para dispor de uma plataforma de homogeneização de ofertas para se inserir na integração produtiva da bacia do Pacífico.
O Brasil, como maior economia da região, e a mais avançada, poderia ser o livre-cambista universal, ou seja, o país que se abre aos demais, sem exigir maiores contrapartidas. Com isso, ele estaria conformando um amplo espaço econômico integrado na região, oferecendo seu grande mercado aos vizinhos e amarrando investimentos estrangeiros, da região e fora dela, à sua própria economia.
A integração é feita, justamente, para estimular a competição e os ganhos de bem-estar. Se o Brasil deseja iniciar a construção de um espaço econômico integrado na América do Sul, ele deveria começar por um simples exemplo, abrindo-se aos demais. Apenas isso: ao abrir-se, ele deslancharia um processo de negociação aberto, com base em cláusulas NMF e suficientemente flexível para acomodar as sensibilidades setoriais dos demais países. Por ser o maior país, o Brasil não precisa ter, e não deve ter, qualquer “sensibilidade”. A rigor, com isso, o Itamaraty nem precisaria convocar qualquer conferência diplomática, dessas intermináveis, para constituir uma zona de livre comércio na região: ela se faria praticamente sozinha.

Relações com países  mais avançados, não necessariamente todos da OCDE
Existem muitos desafios nas relações com os países desenvolvidos, quaisquer que sejam eles; mas as oportunidades são ainda maiores. Os companheiros passaram anos enfatizando a diplomacia Sul-Sul: os que escolhem usar tal viseira só podem fazê-lo por preconceito ideológico ou por discriminação política, ambas prejudiciais. Todo determinismo geográfico é, por natureza, contraproducente. Não se poderia esperar, por exemplo, obter o estado da arte em ciência e tecnologia quando se restringem as escolhas a determinados parceiros do globo, ainda que eles sejam “parceiros estratégicos”. Considerar que os países desenvolvidos só tenham interesse na “exploração” dos países menos desenvolvidos é de uma estupidez digna de um fundamentalista político, desses que ainda existem espalhados por aí, infelizmente dominantes em certos círculos acadêmicos e políticos.
A primeira estupidez é justamente a de dividir o mundo entre desenvolvidos e em desenvolvimento, como se duas únicas categorias mentais, dois universos puramente conceituais, fossem capazes de resumir e abranger toda a complexidade e multiplicidade das situações humanas e sociais, num planeta variado que exibe todos os tipos de avanços civilizatórios, umcontinuum histórico que vai de tribos primitivas a sociedades do conhecimento, baseadas em inteligência artificial. O capital humano nunca teve pátria, apenas os governos é que limitam a liberdade do capital humano. As grandes descobertas, as maiores invenções acabam beneficiando o conjunto da humanidade.
Mas, alguns espíritos tacanhos consideram que, em virtude do fato estabelecido de que a maior parte das invenções, descobertas e inovações ocorrem bem mais nos países já avançados, isso consagraria algum monopólio natural, uma tendência à concentração do conhecimento, e do seu desfrute, e que os países menos avançados só poderiam ser “explorados” pelos primeiros. Assim, passam a recomendar esquemas de cooperação no âmbito Sul-Sul, como se duas ignorâncias pudessem criar uma grande sabedoria. A Constituição brasileira já caiu nessa estupidez, ao consagrar no texto de 1988 a proibição de que universidades brasileiras contratassem docentes estrangeiros, boçalidade felizmente eliminada alguns anos depois. Mas, aparentemente continuamos a praticar outras discriminações, ao preferir fazer intercâmbios com alguns países, em lugar de se abrir a todos os demais, sem qualquer tipo de preconceito.
Não se pode dispor de uma fórmula mágica para impulsionar o processo de desenvolvimento brasileiro contando apenas com a cooperação internacional, seja ela com países avançados ou com “parceiros estratégicos” do Sul maravilha. Os desafios principais estão mesmo no próprio país, pois as evidências relativas aos ganhos de escala permitidos por uma educação de qualidade são tão notórias que não seria preciso insistir neste ponto. O Brasil precisa empreender uma revolução educacional, em todos os níveis. De onde sairão os ensinamentos adequados para esse empreendimento monumental? Ora, as respostas são tão evidentes que sequer me concedo o direito de expressar qualquer preferência geográfica. Se alguém aí pensou em Xangai, não na China, mas Xangai, como exemplo e modelo de uma educação de qualidade, tal como refletido nos exames do Pisa, estou inteiramente de acordo: façam como Xangai, que já é, para todos os efeitos práticos, mais avançada do que qualquer país desenvolvido em matéria de educação de qualidade. O resto é baboseira geográfica.
Xangai, atualmente, em matéria de performance educacional, é o mais perfeito exemplo da Finlândia educacional num país outrora atrasado educacionalmente, e que ainda permanece atrasado politicamente. Em todo caso, a China está, provavelmente, registrando mais patentes, sozinha, do que os outros quatro Brics conjuntamente. Talvez tenhamos de aprender algo com ela, o que será obviamente impossível. O Brasil não tem condições de imitar padrões educacionais finlandeses ou os de Xangai, como ele tampouco vai conseguir construir a boa escola republicana da hoje decadente França, mas que já foi exemplo de educação no mundo. Acho que se ele conseguir reproduzir a mediocridade da escola americana já terá sido um progresso. Esse é o grande símbolo que eu vejo da cooperação do Brasil com países desenvolvidos. Chegar perto da mediocridade educacional americana já terá sido um imenso progresso para o Brasil.

A extensa geografia do Itamaraty
A falta de medida sempre foi uma característica da diplomacia do “Nunca Antes”. Dominado pela obsessão de superar seu antecessor, e também pela ideia de conquistar para o Brasil uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, o demiurgo simplesmente ordenou ao seu chanceler que abrisse embaixadas em todos os países da América Latina e do Caribe e em quantos países fosse possível na África e na Ásia. Em consequência, de 2003 a 2009, dezenas de novas representações foram criadas nos lugares mais exóticos, acarretando enormes despesas e gerando ainda maior estresse  para a política de pessoal do Itamaraty, ao ter de gerir uma rede desmesurada, com gastos inúteis – uma vez que o retorno é insignificante – e efeitos políticos mínimos.
O Brasil exibe hoje uma rede de representações no exterior superior à de vários países desenvolvidos, inclusive ex-potências coloniais. Sem qualquer estudo técnico que precedesse a tal tomada de decisão, simplesmente baseado na vontade pessoal do ex-chefe de Estado, o Itamaraty se dobrou a essas pretensões megalomaníacas e passou a abrir postos sem qualquer reciprocidade, apenas baseado numa vontade ingênua de mostrar presença. Impossível estimar o impacto financeiro – e o custo-oportunidade – dessas iniciativas, mas ele é provavelmente muito maior do que a simples soma nominal dos valores envolvidos, pois significa uma extensão indevida de um orçamento que conheceu um aumento no divisor sem necessariamente a ampliação do numerador. Essa rede desvia não só dinheiro escasso, mas a atenção dos funcionários diplomáticos e de vários outros servidores em funções administrativas, sem qualquer correspondência quanto aos fins. Existem embaixadas em países de população inferior à do Lago Sul de Brasília, bem como consulados criados apenas para acomodar conveniências familiares de amigos do chanceler da era do “Nunca Antes”.
Nunca se ofereceu uma rationale para essa extensão desmesurada do serviço exterior brasileiro na era Lula. Segundo uma contagem não definitiva, foram quase 50 novos postos (entre embaixadas e consulados). Aparentemente, o ex-presidente contava com algum aporte adicional de votos em favor do Brasil no processo de criação de eventuais cadeiras adicionais no Conselho de Segurança da ONU, como se uma decisão desse porte pudesse ser tomada apenas pelo número de votos na AGNU.

Olhando para a frente
A política externa precisa retornar aos padrões habituais de profissionalismo e de isenção na análise técnica dos problemas que sempre estiveram afetos ao Itamaraty. Ambas, a política e a instituição, foram bastante deformadas nos anos de lulopetismo diplomático, quando uma e outra foram submetidas e ficaram ao sabor das preferências e alucinações partidárias, quando não a serviço de outras causas que não o interesse nacional. O Itamaraty não terá qualquer problema em cumprir uma nova pauta na política externa, pois sempre foi muito disciplinado no cumprimento das diretrizes do chefe do executivo, mas ele necessita passar por reformas organizacionais, depois de mais de uma década de uma nefasta deformação em seus métodos de trabalho e de inversão vertical no processo decisório que sempre o caracterizou.

Brasília, 25 de maio de 2016.