Descubro agora que uma introdução que eu tinha feito em 1997 para uma primeira re-edição facsimilar do famoso livro de Delgado de Carvalho foi recentemente republicada numa nova edição, inteiramente refeita pelo Senado Federal.
Meus agradecimentos ao mestre editor Joaquim Campelo, do Conselho Editorial do SF:
1239. “Em busca da simplicidade e da clareza perdidas: Delgado de
Carvalho e a historiografia diplomática brasileira” (reedição do texto escrito
em Brasília, em 12 dezembro 1997, 25 pp.; publicado originalmente como reedição
fac-similar de Carlos Delgado de Carvalho (1884-1980), História Diplomática do Brasil (1ª ed.: São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1959; edição fac-similar: Brasília: Senado Federal, 1998;
Coleção Memória brasileira n. 13, lxx, 420 p.), pp. xv-l, incorporando ainda
apresentação do Emb. Rubens Ricupero (pp. iii-xiv). Nova edição pelo Senado
Federal, redigitada: História Diplomática
do Brasil (Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2016, 504 p., il.,
Edições do Senado Federal, vol. 224; texto PRA, p. 23-55). Relação de Originais
n. 600.
O livro está disponível na Editora do Senado Federal. Aqui o texto de minha introdução original, de 1997:
Introdução
Em
busca da simplicidade e da clareza perdidas:
Delgado
de Carvalho e a historiografia diplomática brasileira
Paulo Roberto de
Almeida
Doutor em
Ciências Sociais. Diplomata.
A reedição fac-similar deste livro de Carlos Delgado de Carvalho, História Diplomática do Brasil, vem
responder a uma necessidade bibliográfica tanto quanto atender a uma antiga
aspiração de profissionais da diplomacia brasileira. Com efeito, quase dez anos
atrás, o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, do Itamaraty,
projetava relançá-lo em edição igualmente fac-similar, empreendimento
certamente bem-vindo já naquela época, mas que não logrou então concretizar-se
em virtude das prosaicas dificuldades de financiamento que soem atormentar, de
forma recorrente, as instituições que vivem de recursos públicos.
A empresa foi agora viabilizada graças à feliz iniciativa dos
organizadores da coleção “Memória Brasileira” do Senado Federal, em especial
nas pessoas de seu coordenador institucional, Senador Lúcio Alcântara, e de seu
principal animador, Professor Estevão C. de Rezende Martins, que atendeu
prontamente minha sugestão de incluí-lo nesta já prestigiosa coletânea de obras
importantes sobre temas brasileiros. Ela vem preencher não apenas uma lacuna
propriamente inexplicável em termos editoriais, como também um vácuo didático
há muito tempo sentido entre os estudiosos da política externa e das relações
internacionais do Brasil em geral e entre os jovens diplomatas em particular.
Obra de reconhecidos méritos metodológicos e substantivos, como já
amplamente sublinhado no texto precedente do embaixador Rubens Ricupero, sua
edição num circuito não comercial também se beneficia intelectualmente da
publicação, tão oportuna quanto tardia, parafraseando seu próprio título, da Apresentação que esse notável diplomata
e professor da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco havia
preparado, em 1989, quando da tentativa anterior de republicação pelo IPRI.
Eis-nos, portanto, finalmente recompensados com nova divulgação de uma
obra quase tão mítica quanto rara, pois que desaparecida das livrarias logo nos
primeiros anos de sua primeira edição comercial, em 1959 e intensamente buscada
nos sebos desde então. Para os muitos candidatos à sua leitura indispensável,
ela subsistia apenas nos poucos volumes já “maltratados” emprestados pelas
bibliotecas especializadas ou então, necessité
oblige, tinham de ser cedidos “religiosamente”, com todas as advertências
do gênero, por seus felizes e raros possuidores aos muitos ávidos interessados
(como este que aqui escreve). Como afirma Ricupero na abertura de sua
apresentação, este livro, por mais de uma razão, tinha se tornado
insubstituível, ou quase.
Com efeito, durante mais de três décadas a partir dos anos 60, e mais
exatamente até a publicação do trabalho de síntese dos pesquisadores Amado
Cervo e Clodoaldo Bueno e,
mais recentemente, da obra póstuma do historiador José Honório Rodrigues, esta
obra despretenciosa de Delgado constituiu, junto com o título homônimo e
contemporâneo de Hélio Vianna, leitura
obrigatória e objeto de consulta incontornável de todo e qualquer estudioso da
política externa e das relações internacionais do Brasil, em especial de turmas
inteiras e sucessivas de vestibulandos e alunos do Curso de Preparação à
Carreira Diplomática mantido desde 1946 pelo Instituto Rio Branco. O CPCD foi
convertido, em 1995, na primeira fase de um “programa de formação e
aperfeiçoamento”, seu currículo acadêmico e profissional passou por diversas
modificações, mas o livro de Delgado de Carvalho continua a figurar, em
primeiro plano, na lista de leituras da disciplina de história diplomática.
Tendo originado-se, precisamente, de aulas ministradas por Delgado de
Carvalho no Instituto Rio Branco, em 1955, o livro teve a desventura editorial
de ter conhecido uma única e singela edição, tornando-se propriamente introuvable com o passar dos anos. Seu
vigor intelectual, entretanto, contrasta flagrantemente com seu presumido
envelhecimento físico. O único exemplar disponível na Biblioteca do Itamaraty,
por exemplo, está desfazendo-se virtualmente, carregando as marcas literais de
uma intensa e repetida utilização visual e “manual” por gerações sucessivas de
leitores atentos — páginas desprendidas ou rasgadas, lombada e costura
desfeitas, incontáveis sublinhados, felizmente a maior parte a lápis —, o que
apenas vem confirmar, precisamente, a preservação de suas qualidades
intrínsecas.
Desde a tentativa meritória, mas malograda, do IPRI de relançá-lo em
segunda edição, a exemplo do que tinha sido feito com a obra em três volumes de
Pandia Calógeras, o
livro parecia condenado a continuar sua trajetória solitária para a lista das
raridades bibliográficas, quando não para a relação ainda mais triste dos
fisicamente desaparecidos. É verdade que o lançamento da obra conjunta de Amado
Cervo e de Clodoaldo Bueno tinha tirado muito da urgência didática de se
reeditar este manual indispensável a todo estudioso de nossa história
diplomática, mas também é um fato que, por suas virtudes próprias — texto claro
e direto, organização sistemática racional e até mesmo atualidade fatual — o
livro de Delgado nunca deixou de merecer uma segunda edição comercial, de
preferência com as atualizações devidas.
O falecimento de Delgado, em 1980, na provecta idade de 96 anos, obstou,
evidentemente, que essa atualização fosse feita pelo próprio autor, mas não
deveria hipoteticamente ter impedido uma iniciativa nesse sentido por parte dos
principais interessados na preservação de seu conteúdo didático, a começar pelo
setor acadêmico da Chancelaria brasileira, isto é, o Instituto Rio Branco ou,
mais uma vez, o IPRI. A bem da verdade, devo confessar que acalentei por um
momento, em meados dos anos 80, a pretensão de “continuar” a obra de Delgado,
corrigindo-a naqueles pontos que considerava temporalmente defasados ou mudando
certas ênfases temáticas na fase contemporânea. O inevitável nomadismo da
carreira e as muitas outras obrigações profissionais e acadêmicas, obrigatória
ou voluntariamente assumidas desde então, obstaculizaram contudo tal empenho
intelectual. Posteriormente, o anúncio continuado de sua “iminente”
republicação fac-similar pelo IPRI, ou mesmo “ameaças” posteriores de nova
edição comercial, dissuadiram-me na prática de lançar-me em tal empresa de aggiornamento de uma obra ainda
largamente atual e singularmente moderna, a despeito mesmo de sua concepção
finalmente “tradicional”. Com efeito, o caráter objetivo e o espírito vivo
desta obra fizeram com que ela se mantivesse como o protótipo historiográfico
do que deveria ser uma história fatual sobre nossa política exterior,
independemente e ao lado da emergência de uma nova historiografia que busca
“interpretar” ou “contextualizar” essas mesmas relações exteriores.
Na ausência de um projeto do gênero, de caráter institucional ou por
simples iniciativa individual, o terreno continua aberto a que obra similar de
caráter histórico retome ou complete este livro didático, sempre válido, de
Delgado de Carvalho. A presente edição poderia representar, justamente, uma
espécie de estímulo editorial a que um empreendimento desse tipo seja concebido
e levado adiante por diplomatas ou por pesquisadores acadêmicos. A base
intelectual colocada aqui por Delgado constitui terreno sólido sobre o qual
poderia erguer-se tal trabalho de atualização historiográfica, acrescida da
sempre bem-vinda complementação documental, que não era de menor importância
segundo sua concepção original. Aguardando que tal iniciativa possa encontrar
candidatos, vejamos, nesta introdução metodológica, como se situa este livro de
Delgado no contexto dos demais exemplos de análise ou de relato histórico das
relações exteriores do Brasil, quem foi seu autor e quais foram suas principais
obras, como se sustenta este trabalho em face das exigências heurísticas de uma
“história diplomática” nacional e como evoluiram, desde sua publicação, os
estudos de política externa do Brasil.
O presente texto, cujas partes centrais foram concebidas de maneira
independente e escritas cronologicamente à distância da Apresentação preparada originalmente em 1989 pelo Emb. Ricupero,
não tem a pretensão de complementar a excelente análise intelectual desta obra
já efetuada pelo então representante do Brasil junto ao GATT e atual
Secretário-Geral da UNCTAD. A breve síntese sobre a vida e a obra de Delgado
aqui inserida foi elaborada inicialmente como parte de um esforço mais vasto de
levantamento bibliográfico e de resenha crítica da historiografia brasileira de
relações internacionais, tendo sido publicada parcialmente em revista acadêmica
cinco anos atrás. As
demais seções desta introdução geral a esta obra de Delgado pretendem,
justamente, ressaltar seu valor específico no contexto da literatura
especializada disponível ao público interessado em história diplomática do
Brasil e demonstrar a pertinência de uma nova edição aggiornata.
AC-DC: Calógeras
como marco historiográfico
Pandiá Calógeras, o “Clausewitz” da política externa do Brasil, foi quem
iniciou, verdadeiramente, o estudo científico das relações internacionais do
País. Para isso, ele tinha recuado praticamente até o nascimento da nação
portuguesa, seguido os passos de suas aventuras coloniais e déboires europeus e acompanhado
atentamente as primeiras etapas da diplomacia brasileira, desde o
reconhecimento da independência até a luta contra Rosas, em 1851-52. Fazer
história diplomática, depois de Calógeras já não seria mais obra de simples
diletantes ou de cronistas do regime em vigor e, de fato, tornar-se-ia difícil
seguir os passos de quem exerceu diuturnamente o ofício de escritor-historiador
praticamente desde o nascimento até o final da República Velha.
Ele foi, aliás, pioneiro em várias vertentes da historiografia
brasileira: história política, monetária (seu La Politique Monétaire du Brésil é primoroso), história
administrativa, dos tributos, dos transportes, mineralógica e energética etc.
No setor que nos interessa, Calógeras representou, para todos os efeitos, um
marco historiográfico na reconstituição das relações exteriores do Brasil, a
ponto de se poder, a exemplo do título desta seção, operar uma espécie de
“ruptura epistemológica” em torno de sua obra.
Depois de Calógeras e seus livros monumentais sobre as relações
exteriores do Brasil, de fato desde o período colonial português, os diplomatas
e historiadores que se dedicaram ao estudo da política externa do Brasil
passaram a abordar períodos históricos mais limitados, espaços geográficos mais
restritos ou temas políticos mais específicos, versando geralmente sobre
problemas de fronteiras ou sobre questões diversas da diplomacia imperial.
Nesse quadro, merecem registro algumas obras de história diplomática, em
primeiro lugar a síntese geral da política externa brasileira realizada por
Renato de Mendonça, que, publicada no exterior, na verdade cobre quase que
exclusivamente o período colonial, chegando tão somente ao reconhecimento da
Independência. José
Antônio Soares de Souza, por sua vez, produziu diversos estudos monográficos
sobre o período monárquico e a questão do Prata em particular. O
diplomata Teixeira Soares também se ocupou da mesma problemática, bem como da
formação das fronteiras. Em
todos eles há uma espécie de racionalização intrínseca a respeito dos “acertos”
da política imperial e sobre a inexistência, por exemplo, de alternativas
diplomáticas ao quadro de conflitos na região platina.
Essas obras eruditas destinavam-se contudo a um público restrito,
geralmente formado pelos demais historiadores ou pelos próprios profissionais
da carreira diplomática. O Instituto Rio Branco (IRBr), que começou a funcionar
em 1946, passou a organizar cursos de formação ou de aperfeiçoamento de
diplomatas, para os quais foram convidados alguns desses eminentes
historiadores, muitos deles dedicados igualmente à instrução de oficiais
militares nos Estados-Maiores das Forças Armadas. Os historiadores José Honório
Rodrigues e Hélio Vianna e o geógrafo Carlos Delgado de Carvalho foram alguns
desses muitos intelectuais de renome que abrilhantaram os cursos do IRBr entre
finais da década de 40 e princípios dos anos 60.
O esforço de sistematização permitiu, em cada um desses casos, a
elaboração de “notas de curso” que puderam ser ulteriormente transformadas em
trabalhos independentes, dos quais apenas os de Vianna e Delgado lograram
alcançar publicação comercial ainda nos anos 50, ambos intitulados História Diplomática do Brasil. Esses
dois volumes, precisamente, constituíram a matéria-prima educacional para que
gerações sucessivas de estudantes brasileiros se habilitassem no vestibular de
ingresso e, ulteriormente, acompanhassem o próprio curso do IRBr de preparação
à carreira diplomática, permanecendo como referências obrigatórias nesse
terreno até o surgimento da obra mais moderna dos Professores Amado Luiz Cervo
e Clodoaldo Bueno e a tão delongada publicação das notas de curso de José
Honório Rodrigues.
Hélio Vianna e a visão oficial da política externa
O primeiro volume a vir a lume foi o História
Diplomática do Brasil de Hélio Vianna, trabalho baseado em curso ministrado
em 1947 sobre a história das fronteiras do Brasil (publicado originalmente pela
Biblioteca Militar em 1949) e completado por texto sobre história diplomática
resultante de curso de aperfeiçoamento no IRBr em 1950. A primeira edição, há
muito esgotada, foi publicada pelas Edições Melhoramentos em 1958, sendo ulteriormente
acoplada, em sua 2ª edição, a outro trabalho do autor, História da República, esta por sua vez destacada da História do Brasil.
A História Diplomática de
Hélio Vianna é, antes de mais nada, uma obra híbrida, pois que retoma trechos
inteiros do História das Fronteiras,
logrando contudo uma certa unidade temática e de tratamento linear sobre os
principais eventos das relações internacionais do Brasil desde os
descobrimentos até, na segunda e última edição, o problema dos mísseis
soviéticos em Cuba, em 1961, com ênfase, evidentemente, nos diversos processos
de fixação de limites com os vizinhos países sul-americanos. A posição
conservadora do autor reflete-se claramente nesta obra, que opera, nas mais
diferentes passagens, uma justificação integral das escolhas oficiais a cada
momento de nossa história política.
Como na obra homônima de Delgado, o trabalho de Hélio Vianna também se
socorre de diversas citações de especialistas ou de documentos oficiais, mas as
transcrições, em menor número, estão incorporadas ao próprio texto. Seu livro,
igualmente didático, está organizado em torno da atuação dos governos e das
chancelarias, como todo manual de história política tradicional. No que se
refere às relações exteriores do Brasil, o livro se conclui, como seria o caso
também com a História Diplomática de
Delgado de Carvalho, com menção à Operação Pan-Americana, iniciativa
multilateral regional tomada pelo Governo do Presidente Juscelino Kubitschek,
com escassos resultados práticos, mas permitindo o surgimento ulterior da
“Aliança para o Progresso” do Presidente Kennedy.
Trata-se, a exemplo da obra correspondente de Delgado de Carvalho, de um
trabalho pertencente claramente à categoria das “obras gerais”, isto é os
manuais de síntese, de escopo essencialmente fatual e, no caso de Vianna,
praticamente “oficial”, em termos de postura interpretativa. Mas, à diferença
do livro do primeiro, o trabalho de Hélio Vianna dá muito maior ênfase aos
episódios da história colonial e monárquica independente do que ao período republicano
contemporâneo, que constitui o essencial da contribuição inovadora do primeiro,
cujo manual é um exemplo daquilo que os franceses chamariam de histoire immédiate. Pode-se dizer,
portanto, que os dois livros homônimos se complementam reciprocamente, tanto em
informação como em seleção de episódios significativos.
Hélio Vianna não pretendia se situar no plano analítico de A Política Exterior do Império de Pandiá
Calógeras, por exemplo, que operava uma reconstituição histórica profissional
de todo o itinerário histórico das relações internacionais de Portugal e do
Brasil desde as origens ibéricas até a queda do ditador Rosas da Argentina
(1852). Ele permaneceu numa outra vertente, a da recompilação das
interpretações consagradas sobre os episódios mais importantes da política
exterior oficial, e não chega a superar os limites estritos da “história
diplomática”. De todo modo, seu minucioso trabalho fatual é complementar ao
livro de Delgado de Carvalho, já que se estende nos períodos e temas em que este
último não pretendeu cobrir em detalhes, como é o caso da história colonial e
da expansão portuguesa para além dos limites traçados originalmente em
Tordesilhas. Como o de Delgado, o manual de Vianna quiçá mereceria também uma
segunda edição, de preferência atualizada.
O homem Delgado
de Carvalho: um gentleman cartesiano
Carlos Delgado de Carvalho foi um dos últimos representantes, no Brasil,
de uma geração dividida entre duas épocas: uma cultura estilo belle époque, que sobreviveu ao Brasil
monárquico do século XIX e que ainda projetou influências no comportamento
semi-aristocrático das elites da Primeira República, e uma outra, dita “cultura
de massas”, típica de uma estrutura social em intenso processo de transformação
a partir da Revolução de 1930. Sua longevidade permitiu-lhe atravessar os mais
diferentes regimes políticos do País e seus diversos sistemas educacionais, mas
Delgado também era uma personalidade distraída, a ponto de ignorar quais fossem
os mandatários do momento. Tendo nascido em Paris em 1884, filho de um
Secretário da Legação brasileira — monarquista como todos os demais integrantes
do serviço diplomático —, ele só veio a conhecer o Brasil, contra a vontade do
Pai, aos 22 anos de idade, em 1906, tendo de se naturalizar brasileiro novamente
em virtude de ter prestado serviço militar no Exército francês pouco tempo
antes.
Sua educação seguiu o modelo adotado pelas boas famílias da belle époque, com preceptores
estrangeiros, colégios internos e um perfeito multilinguismo: aprendeu inglês com
sua avó materna, em Londres, francês e várias outras línguas em colégios da
França e da Suíça. Tendo diplomado-se como “Bachelier de l’Enseignement
Sécondaire Classique”, em Paris, em 1905, ele completa, em 1910, como aluno da
École Libre des Sciences Politiques, uma tese intitulada “Un Centre Économique
au Brésil: l’État de Minas” e escreve, nesse mesmo ano, um minucioso trabalho
de geografia, Le Brésil Méridional.
Esse livro, uma cuidadosa análise da estrutura física, econômica e humana dos
estados sulinos (que à época incluiam São Paulo) foi certamente inovador na
geografia brasileira e talvez mesmo até na francesa, pois que centrado na
apresentação e discussão minuciosa de três culturas socio-econômicas distintas
e contrastantes: “le pays du café”, “le pays du maté” e “le pays de l’élevage”.
Sua orientação para a geografia se reforça nessa época, tendo escrito em 1913
um livro prefaciado por Oliveira Lima, Geografia
do Brasil. Um estágio feito no Museu de Londres durante a Primeira Guerra
Mundial lhe daria oportunidade de escrever mais um trabalho, Météorologie du Brésil, capacitando-o
ulteriormente a trabalhar para o Serviço Pluviométrico do Brasil, elaborando,
na década seguinte, mais de meia centena de mapas do Nordeste.
Sua produção acadêmica intensifica-se então, paralelamente à prática
educacional. Em 1916 é convidado para o cargo de professor extraordinário da
Escola de Altos Estudos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Pouco
depois presta concurso para a cadeira de inglês do Colégio Pedro II,
apresentando o trabalho “Esboço Histórico das Origens e Formação da Língua
Inglesa”. Em 1920 torna-se professor de sociologia no mesmo Colégio, ao qual
ficaria ligado toda a sua vida. Delgado chegou mesmo a exercer, por curto
período, o cargo de diretor do Colégio Pedro II, no imediato seguimento da
Revolução de 1930, tendo sido designado, em 1931, vice-diretor da instituição,
função que manteria até seu falecimento.
Em 1921, o Ministro do Exército Pandiá Calógeras convida-o para ser
conferencista das Escolas de Intendência. Escreve, nos anos 20, os livros Corografia do Distrito Federal, Geografia Econômica da América do Sul, Fisiografia do Brasil e uma notável
introdução aos estudos de geografia moderna, Metodologia do Ensino Geográfico (1925). Desde 1923, e até sua
aposentadoria compulsória aos 70 anos, dedica-se igualmente ao ensino de
sociologia na Escola Normal (depois Instituto de Educação). Em 1936, com a
fundação da Universidade do Distrito Federal, torna-se catedrático de História
Contemporânea e, a partir de 1939, de História Moderna e Contemporânea da
antiga Universidade do Brasil (depois UFRJ), desempenhando-se nessa cadeira até
sua aposentadoria compulsória. Esteve associado desde o início ao Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (fundado em 1935) e muitos de seus
trabalhos — Exercícios e Práticas de
Geografia (1941), Geografia dos
Continentes (1943) — trazem tanto a marca da atividade didática quanto a
colaboração constante com essa instituição.
Em 1954, já com 70 anos de idade, quando muitos encerram suas
atividades, Delgado de Carvalho começou nova fase de intensa produtividade em
sua vida acadêmica e de professor, a começar pela cadeira de História
Diplomática no Instituto Rio Branco, da qual resultaria este livro. Também a partir
de 1954, e até 1960, foi professor no curso de jornalismo da Faculdade Nacional
de Filosofia. Data dessa época uma ainda legível História Geral em quatro volumes (1956), de formato e finalidade
essencialmente didáticos, mas podendo preencher, graças a sua qualidade e
profundidade, as estantes de qualquer historiador profissional ou leitor
erudito.
Intensifica-se também nessa mesma época o trabalho que já vinha
desenvolvendo no IBGE, juntamente com Therezinha de Castro, que se torna sua
assistente e colaboradora em inúmeros trabalhos. Como resultado dessa
colaboração emerge, em 1960, sob cobertura editorial do Conselho Nacional de
Geografia, o Atlas de Relações
Internacionais, republicado posteriormente, em forma de fascículos na Revista Brasileira de Geografia (1967).
Em 1963 são publicados dois livros: Organização
social e política brasileira (pelo Centro de Pesquisas Educacionais) e África: geografia social, econômica e
política (com biografias sumárias preparadas por Therezinha de Castro. Nos
anos 70 ainda permanecia ativo, tendo sucessivamente publicado, geralmente pela
Editora Record do Rio de Janeiro Civilização
Contemporânea (em 1970, com 557 páginas!) Relações Internacionais (1971, 327 p., pela São Paulo Editora), História das Américas (1976) e História Documental, Moderna e Contemporânea
(1976), este último uma coletânea de textos de personalidades e de
historiadores relevantes.
A obra “diplomática” de Delgado: modesta, original e
completa
História
Diplomática do Brasil é, antes de mais nada, um manual didático
extremamente útil ao estudioso que deseje adquirir uma visão ampla das relações
exteriores do Brasil em quatro séculos de história, com forte ênfase no período
contemporâneo. Como text-book
acadêmico ele cumpre de maneira amplamente satisfatória esse papel de
informação fatual sobre os eventos e processos que marcaram historicamente a
inserção internacional do Brasil, inclusive com uma utilíssima transcrição de
trechos selecionados dos autores mais significativos que escreveram sobre suas
relações exteriores. Essa compilação de “fontes”, apresentada sob a forma de
“Excerpta”, compensa, em parte, mas não substitui, a falta de uma verdadeira
bibliografia e obras de referência, que talvez existisse na versão original dos
manuscritos, infelizmente perdidos pelo editor.
Em seu preâmbulo, Delgado menciona outros autores que trataram da
história diplomática do Brasil, como Hélio Vianna, Teixeira Soares, Renato de
Mendonça, Macedo Soares e Pedro Calmon, mas curiosamente não se refere a Pandiá
Calógeras, apesar de que um excerto da Política
Exterior do Império seja transcrito no livro. No próprio corpo da obra,
Delgado tampouco deixa de transcrever alguns dos autores selecionados para a
“Excerpta”, mas sempre de maneira pertinente e comedida. Em todo caso, a
seleção operada por Delgado para essa seção, extremamente útil como referência
a fontes primárias ou à bibliografia secundária, é bastante eclética, indo de
historiadores portugueses aos memorialistas brasileiros, orgulhosos do passado
imperial, e até a um historiador marxista como Caio Prado Júnior. Ressalte-se,
entretanto, que, do total de 409 páginas de seu livro, 317 correspondem
efetivamente à produção de Delgado e apenas 92 à transcrição de outros autores
ou fontes documentais. Mesmo essa compilação apenas complementa o entendimento
de cada época, mas não diminui o valor da produção intelectual do próprio
Delgado, que se sustenta inteiramente sem os excertos.
O que mais chama a atenção nessa obra é, contudo, sua atualidade, já que
todo o passado colonial português, normalmente valorizado nas obras históricas
dos autores tradicionais, recebe apenas um tratamento introdutório, com a
modesta extensão de 19 páginas. Todo o resto é Brasil independente e mais da
metade, de fato, é dedicado ao Brasil República. Como já ressaltado pelo Emb.
Ricupero na Apresentação, o próprio Delgado justifica em seu Preâmbulo essa
preferência: “A meu ver, é uma falha inexplicável dos nossos atuais programas
secundários de atribuir à história dos portugueses no Brasil, dito ‘período
colonial’, uma importância e desenvolvimento equivalente aos nossos 67 anos de
Império e 70 anos de República” (p. xviii).
Delgado, de seu lado, faz uma opção preferencial e manifesta pela
contemporaneidade, às vezes até pela atualidade mais imediata, como é o caso já
citado da Operação Pan-americana, iniciativa conduzida pela diplomacia tenaz de
Juscelino Kubitschek e que estava ainda se desenvolvendo no momento mesmo do
fechamento do livro. Este, publicado em 1959, traz ainda a seguinte informação
no capítulo relativo ao pan-americanismo: “A 17 de novembro [de 1958],
reunia-se em Washington, o Comitê dos 21 [no âmbito da OEA, para tratar da
OPA], no qual Augusto Frederico Schmidt chefiava a delegação brasileira” (p.
343). Mais atualidade, impossível: trata-se do mais puro exercício daquilo que
os franceses chamariam de histoire
immédiate.
Características analíticas e metodológicas
Com todo a sua modernidade e pertinência, o livro de Delgado ainda assim
se ressente de uma dispersão metodológica no tratamento dos diversos temas
selecionados. O texto é conciso no desenvolvimento da história colonial (que
comporta tão somente um curto capítulo inaugural, embora seguido de várias
compilações de autores), bastante equilibrado no tratamento do Império (nove
capítulos ao todo, inclusive um “econômico” sobre os tratados de comércio) e,
no que se refere à República, relativamente insatisfatório do ponto de vista de
uma abordagem integrada e compreensiva desse período, a despeito mesmo da
riqueza e da diversidade da informação compilada.
Esse período é tratado mais em função dos problemas da política externa de governos sucessivos, numa vertente
propriamente diplomática (reconhecimento da República, intervenção estrangeira
na revolta de 1893, fronteiras), do que no seguimento de uma análise integrada
da história das relações exteriores
ou das relações internacionais do
Brasil. Assim, depois de um capítulo inicial sobre o reconhecimento da
República e de um outro sobre a intervenção estrangeira na revolta de 1893,
seguem-se quatro grandes capítulos sobre os problemas de fronteiras, tema
evidentemente obrigatório — e bastante “atual”, até uma data ainda recente —
nos programas curriculares de diplomatas e militares.
As políticas externas dos governos republicanos são examinadas num único
capítulo: “Rio Branco, Chanceler da Paz e seus Sucessores”, o que se revela
inadequado em razão da complexidade dos problemas em cada época, sobretudo no
período varguista. Basta dizer que as relações internacionais do Brasil entre
1913 e 1959 estão em grande parte comprimidas nas últimas 20 páginas desse
capítulo, mas aqui seguindo uma abordagem essencialmente biográfica dos fatos
mais relevantes desse longo período, como se a política externa dos
“sucessores” de Rio Branco tivesse sido realmente determinada, ou
essencialmente definida, pelas orientações pessoais de cada um dos respectivos
chanceleres.
Em todo caso, a abordagem pelas questões relevantes ou temáticas
continua pelo resto do livro: a doutrina Monroe e as intervenções, o
pan-americanismo acadêmico (na verdade um importante capítulo, cobrindo o
desenvolvimento jurídico do pan-americanismo e, depois, uma série de grandes
temas de nossa política exterior regional), os Estados Unidos e as Repúblicas
latinas (de fato as relações Brasil-Estados Unidos) e o isolacionismo e as
guerras mundiais (tratando inclusive do problema da Liga das Nações). O enfoque
é quase sempre político, segundo a visão da história tradicional, com uma
descrição objetiva da atuação das diversas chefias da Chancelaria brasileira e
algumas (raras) pinceladas sobre os problemas econômicos envolvidos. Mas, não
há, propriamente, um tratamento abrangente e “contextualizado” (para usar um
termo da moda) da política externa governamental no quadro de um país agro-exportador,
em processo de industrialização e ocupando uma posição marginal na
macroestrutura política mundial.
Limites e virtudes da história fatual
Ressalve-se, porém, que esse tipo de história “interpretativa” não fazia
parte da concepção didática e instrumental que Delgado emprestou a suas notas
de curso finalmente convertidas em livro. Como advertiu Ricupero, não se pode
julgar uma obra desse porte armado com os instrumentos analíticos e as
orientações historiográficas de nossa própria época. Seria totalmente
anacrônico, portanto, condenar o fatualismo de Delgado com base numa pretensa
superioridade do “processo estrutural” de longo curso sobre o imediatismo da
“matéria-prima” da História, como se Braudel e os annalites não praticassem igualmente a histoire événementielle.
Ao contrário, e sem mencionar a preocupação pedagógica, a obra de
Delgado de Carvalho é realmente preciosa pelo que tem de acúmulo de fatos
históricos, mesmo se muitos outros estão completamente descurados, como por
exemplo as grandes conferências econômicas do pós-guerra, de Bretton Woods às
rodadas do GATT, passando pelo conferência de Havana e as reuniões econômicas e
comerciais pan-americanas, mencionadas apenas en passant. Os fatos ou processos de tipo propriamente econômico, como
as grandes correntes de comércio, o esforço industralizador e outros, perdem-se
no emaranhado de acontecimentos políticos que recheiam — ou ocupam plenamente —
o livro.
Esses fatos estão, grosso modo, ordenados logicamente e quase sempre são
pertinentes ao capítulo em causa, mas por vezes há um deslize para o anedótico
ou o acessório. Ao tratar dos Tratados de Utrecht de 1713 e de 1715, por
exemplo, Delgado não deixa de mencionar que os plenipotenciários de D. João V
foram o Conde de Tarouca e D. Luís da Cunha, informação mais bem pertinente
numa história diplomática de Portugal. Mas, ele insere nessa seção uma curta
referência ao importante tratado de Methuen (pp. 9-10), base econômica
ulterior, com outros instrumentos de aliança política e militar, da histórica
dependência de Portugal em relação à Inglaterra. Em outra passagem, ainda no
terreno do episódico, ao referir-se à gestão Otávio Mangabeira, ele termina por
uma citação de Gustavo Barroso sobre a inauguração solene por Washington Luís
das novas dependências do Itamaraty: “Celebrou-se então à noite grande baile de
gala, festa brilhantíssima que deu aos salões do velho palácio e aos jardins
profusamente iluminados o esplendor decorativo do tão falado sarau com que, em
1870, a Guarda Nacional da Corte, homenageando o Marechal Conde d’Eu, ali
comemorou o fim da campanha do Paraguai” (p. 264). É bem verdade que o velho
Palácio do Itamaraty, guardião de setenta anos de atividades diplomáticas,
deixou saudades em mais de uma geração de dedicados funcionários da Casa do
Barão.
Mas, a despeito do estilo belle
époque’, acima ilustrado, de Delgado de Carvalho, seu livro é uma mina de
informações de boa qualidade para todo aprendiz de diplomata, bem como para o
estudioso principiante da política exterior do Brasil. O pesquisador
profissional poderia fazer, é verdade, sérias objeções ao método de Delgado:
ele encontrará ali apenas um ordenamento dos fatos, mais do que dos processos,
de nossa história diplomática e de toda forma não terá, como se disse, qualquer
inserção desses fatos numa trama mais ampla das relações internacionais do
Brasil, sobretudo em sua vertente econômica externa. Tais não eram,
relembre-se, os objetivos de Delgado.
As eventuais limitações do livro, se assim podemos classificar uma de
suas qualidades essenciais, se devem exatamente ao caráter eminentemente
didático, derivado de notas de aulas proferidas na Academia diplomática. Suas
qualidades confirmadas são as de uma primeira (junto com Vianna, é verdade)
sistematização da história diplomática do Brasil e uma apresentação honesta e
abrangente das relações políticas externas, em função das grandes questões que
ocuparam a atenção dos mandatários portugueses e das lideranças da Nação
independente. Em suma, trata-se de uma história “política” da política externa,
com todas as qualidades e defeitos que tal gênero possa comportar.
Os problemas econômicos não são ignorados, mas mesmo sua abordagem
recebe um tratamento essencialmente político. O capítulo sobre “comércio e
navegação”, por exemplo, comporta basicamente uma descrição das doutrinas
econômicas então em voga e uma história da sucessão de negociações políticas
entre, por um lado, a Inglaterra e, por outro, Portugal e depois o Brasil em
torno das condições do comércio recíproco. A “análise” econômica, nesse caso, é
dada pela pertinente transcrição de um trecho da História Econômica do Brasil de Caio Prado Júnior, onde se discute,
precisamente, a dependência portuguesa em relação à Inglaterra.
Um modelo ainda válido
Como se situa o História
Diplomática de Delgado de Carvalho no conjunto dos (poucos) trabalhos que
se dedicaram a analisar a política externa brasileira? Certamente em primeiro
plano, mas com características próprias de conteúdo e de método. O trabalho
pertence claramente à categoria das “obras gerais”, isto é os grandes esforços
de síntese, mas seu escopo é mais modesto, ao pretender tão somente traçar um
resumo expositivo das grandes linhas evolutivas de nossa política externa, e
não avançar no terreno da pesquisa ou da elucidação de problemas complexos das
relações exteriores do Brasil.
Junto com a obra também essencialmente fatual, e praticamente “oficial”,
publicada no ano anterior por Hélio Vianna, o livro de Delgado foi pioneiro no
gênero, ocupando um espaço quase que exclusivo durante toda uma geração. É
claro que não se pode, por exemplo, comparar seu manual à portentosa obra de
Pandiá Calógeras, A Política Exterior do
Império: Pandiá pertence a uma outra espécie ou talvez mesmo a uma outra
“família” — a minuciosa reconstituição histórica profissional — do mesmo gênero
acadêmico, ainda que sua pretensão tenha sido a de superar os limites estritos
da “história diplomática”.
Mas, o livro de Delgado possui objetivos mais modestos, ainda que mais
abrangentes, e não se destinava inicialmente senão à divulgação de material de
estudo entre os alunos do Instituto Rio Branco. Sua publicação foi decidida
graças a uma conjunção de esforços de diplomatas e historiadores, depois que os
originais do primeiro manuscrito foram perdidos pelo editor, em 1956. Ela tem o
mesmo estilo inconfundível que Delgado costumava imprimir à suas demais obras:
precisão, concisão, objetividade, num espírito propriamente cartesiano. Como
ele mesmo diz em seu Preâmbulo, “Não sendo obra de erudição, tentei apenas dar
com clareza e sobriedade, evitando críticas e elogios, uma idéia de nossa
situação internacional, salientando a continuidade política que caracteriza a
nossa diplomacia” (pp. xviii-xix). Com efeito, onde Hélio Vianna distribui
fartos elogios à inteligência e competência das lideranças políticas do Império
e da República, justificando totalmente e concordando implicitamente com
qualquer ação de nossa diplomacia, Delgado limita-se a expor os fatos, nada
mais do que os fatos, inserindo aqui e ali alguns poucos comentários
valorativos que em nada interferem no desenvolvimento da narrativa. Trata-se,
como já mencionado, de um livro sóbrio e, como tal, merecedor de uma nova
edição integral e possivelmente atualizada.
A reorientação dos estudos de relações internacionais
A história diplomática tal como praticada por esses ilustres
predecessores nos anos 40 e 50 ficou de certa forma congelada no tempo, na
espera que da academia pudesse emergir uma nova geração de estudos
historiográficos sustentados em novas interpretações e técnicas de pesquisa,
incorporando por exemplo os dados brutos ou comparados das relações econômicas
internacionais do Brasil e uma visão específica do modo de sua inserção no
sistema político mundial em cada época. Novos trabalhos dotados dessas
preocupações começaram a emergir nos anos 70 e 80, mesmo se a vinculação
“genática” a determinados esquemas conceituais— teorias da dependência ou do
imperialismo, por exemplo — terminou por “contaminar” algumas dessas
contribuições.
Como ocorreu com os debates entre escolas históricas opostas em outros
países, na Alemanha ou nos Estados Unidos, por exemplo, a corrente
“revisionista” brasileira descartou em grande medida os aportes feitos
anteriormente pela historiografia diplomática “tradicional”. Seus
representantes mais ilustres passaram a ser acusados, geralmente por
historiadores de esquerda, de conivência com a “versão oficial” e com uma
interpretação “Estado-cêntrica” das relações externas do país. Segundo os
críticos, esses trabalhos tinham concentrado-se, talvez em demasia, nos
episódios propriamente políticos ou militares da ação diplomática governamental
(isto é, negociações entre Estados, conflitos militares, conclusão de tratados,
atuação das chancelarias etc.), em detrimento dos processos de natureza mais
estrutural e de longo prazo que poderiam explicar ou dar sentido a determinadas
escolhas fundamentais da Nação na frente externa. As gerações subsequentes de
pesquisadores universitários, a despeito da crescente produção voltada para as
relações internacionais do Brasil nos últimos anos, como também da própria
proliferação de cursos e instituições dedicadas a essa área, pouco fizeram
nesse campo da sistematização de amplo espectro: ou criticaram, do ponto de
vista político e metodológico, a abordagem événementielle
desses pioneiros ou eximiram-se, tão simplesmente, do trabalho de produzir
manuais alternativos.
Sem pretender repassar o conjunto das realizações nesse terreno, caberia
ainda assim examinar alguns exemplos recentes que honram o gênero e prometem
colocar sobre novas bases, senão o estudo das relações internacionais do
Brasil, pelo menos esse gênero raro na historiografia nacional que é a história
diplomática. A esse propósito, destacam-se, nesse processo de realizações acadêmicas,
o trabalho conjunto de Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, História da Política Exterior do Brasil (1992), e a obra que reune
as aulas dadas pelo historiador José Honório Rodrigues no Instituto Rio Branco,
entre 1946 e 1956, e que compreende, ainda, dois capítulos cobrindo o período
entre-guerras preparados pelo revisor dos originais, o Prof. Ricardo Seitenfus,
Uma História Diplomática do Brasil (1995),
cuja publicação tinha sido anunciada várias vezes pelo seu autor principal e
que era aguardado com impaciência há muitos anos.
Antes de dar início, contudo, ao exame dessas obras em colaboração,
seria interessante observar o itinerário analítico conduzido na academia entre
a publicação dos pioneiros e a recente produção universitária. Seria possível
encontrar-se alguma linha condutora na produção acumulada nos últimos 30 anos?
Um tema constante nos trabalhos acadêmicos dessa nova safra de pesquisadores é
a tentativa de identificar as grandes linhas da política externa brasileira que
influenciaram ou permitiram (ou não) a busca ou o atingimento da “autonomia
nacional”. Antes de qualquer outra consideração sobre a produção
historiográfica nesse campo, temos de convir que, a exemplo das racionalizações
sobre a ideologia do desenvolvimento operadas nos anos 50 e 60 por Álvaro
Vieira Pinto e Cândido Mendes, trata-se, obviamente, de objetivo acadêmico não
de todo despojado de um certo parentesco intelectual com o idealismo hegeliano.
Ao introduzir, por exemplo, uma coleção de ensaios relacionados, de
perto ou de longe, com essa temática, o Embaixador Rubens Ricupero, professor
de relações internacionais da Universidade de Brasília e de história das
relações diplomáticas do Brasil no Instituto Rio Branco, afirmava claramente
que “a idéia que impulsionou o curso foi a da História Diplomática como o
cenário da realização progressiva e nunca inteiramente concluída da
independência”, vinculando ao pensamento de Vico essa “visão da História
Diplomática como a edificação e a afirmação gradual da autonomia” nacional. A
permanente afirmação e consolidação da independência nacional, de um lado, e a
busca do desenvolvimento econômico, de outro, constituem, segundo esse
profissional e especialista das relações internacionais do Brasil, os dois
grandes objetivos permanentes da política externa brasileira; o segundo tema é,
precisamente, objeto de outro trabalho do autor, sobre a diplomacia do
desenvolvimento.
Também Gerson Moura, um dos autores mais prolíficos no gênero história
diplomática brasileira, não consegue desvincular a organização da matéria-prima
bruta de seus trabalhos de pesquisa — de resto excelentemente bem conduzida —
de algumas grandes noções que, por terem uma clara conotação “esquerdista”, não
são menos inspiradas, evidente ou implicitamente, na tradição hegeliana da
história: sistema de poder, mercado capitalista, imperialismo. Este último
conceito, por exemplo, já visualizado como categoria histórica concreta e no
contexto das relações Brasil-EUA entre 1935 e 1942, seria resultante de uma
certa “‘astúcia da razão’, que consciente e inconscientemente respondia às
necessidades criadas pela lógica da reprodução ampliada do capital”. Já em
seus últimos trabalhos, o substrato hegeliano presente nos conceitos acima
referidos é bem menos afirmado no desenvolvimento do discurso, mas permanece a
categoria imanente “sistema de poder” (do centro hegemônico, é claro) como
referencial básico para a avaliação da autonomia relativa do Brasil e de sua
política externa, bem como das possibilidades e limitações da atuação
brasileira no chamado sistema internacional de nações.
A questão da autonomia, ou da independência nacional, também está no
centro, como se sabe, de muitos trabalhos do historiador José Honório
Rodrigues, muito
embora ele não tivesse tido tempo, ainda em vida, de preparar a prometida
História Diplomática de largo escopo que sempre prometeu, ou sequer de publicar
as aulas dadas no Instituto Rio Branco. Sem embargo, ele anunciou tal intenção
em diversas ocasiões, tendo
o material coligido pela família sido reorganizado pelo historiador Ricardo
Seitenfus e publicado no livro que adiante se comenta.
Muitos outros estudiosos enfocaram igualmente a questão da autonomia
relativa da política externa do Brasil em trabalhos de alcance parcial
publicados desde então, muito embora o resultado deva ser mais exatamente
vinculado ao campo “história das relações internacionais” do Brasil — ou mais
simplesmente à disciplina ciência política — do que propriamente ao gênero
“história diplomática”. A produção acadêmica nesse setor não deixa tampouco de
refletir com uma certa contemporaneidade as grandes tendências da política
externa brasileira, como não deixou de observar um diplomata voltado para as
lides acadêmicas.
Em que pese, portanto, a crescente produção no campo das relações
internacionais do Brasil, o fato é que fazia falta, desde as História(s) Diplomática(s) de Hélio
Vianna e de Delgado de Carvalho, uma história diplomática digna desse nome. Os
historiadores da nova geração universitária não lograram produzir, até
recentemente, obras equivalentes destinadas a um público amplo. O Embaixador
Ricupero, como vimos, considerou em 1989 que a História Diplomática do Brasil, de Delgado, continuava a não ter
substitutos ou alternativas, o que, considerando seu caráter essencialmente
didático e a compilação de textos ali feita, não deixa de ser verdade ainda
hoje, em que pese o aparecimento da obra de Amado Cervo e de Clodoaldo Bueno e
o livro póstumo de José Honório. Assim, até o surgimento do manual desses dois historiadores,
os estudiosos profissionais (acadêmicos e diplomatas) ou mesmo os simples
diletantes da política externa brasileira foram obrigados a uma longa travessia
do deserto.
Cervo e Bueno: o
ideal desenvolvimentista
Como se situa a História da Política
Exterior do Brasil no conjunto da historiografia brasileira? Nossos dois
autores se colocam na continuidade metodológica de José Honório ao recusar a
simples linearidade descritiva da historiografia oficial, enfatizando ao
contrário as grandes linhas de ação da política externa brasileira enquanto
instrumento do desenvolvimento (ou do atraso) nacional, o que eqüivale a dizer,
da autonomia da Nação.
Na elaboração de uma nova metodologia para o estudo da política exterior
do Brasil, os dois autores operaram, antes de mais nada, uma reorientação da
ênfase conceitual em que se basearam até aqui os estudos nessa área, deslocando
o eixo analítico da tradicional “história diplomática” — e, portanto,
privilegiando excessivamente as “relações entre Estados” — para o terreno mais
amplo das “relações internacionais” da Nação, em seu conjunto, englobando,
assim, os processos econômicos e as forças sociais em ação no caso brasileiro.
Cervo e Bueno dão maior atenção aos processos de natureza estrutural que
sustentam a trama das relações internacionais do Brasil, buscando seus
fundamentos nas chamadas “forças profundas” da história, para retomar o
clássico conceito introduzido pelo historiador Pierre Renouvin. Eles explicitam
seus objetivos da seguinte forma: “consolidar o conhecimento elaborado sobre as
relações internacionais do Brasil e revestir a síntese resultante desse esforço
com uma nova interpretação histórica”.
Vejamos rapidamente, numa apresentação sumária, como foram cumpridas essas duas
metas.
A “consolidação do conhecimento” é realmente impressionante: são mais de
400 páginas de exposição rigorosa sobre as grandes tendências de nossa política
externa, de 1822 ao final dos anos 80, com um tratamento sistemático dos
grandes problemas estruturais e uma apresentação criteriosa dos fatos que dão
sentido a cada conjuntura histórica particular. À base desse trabalho
monumental, mais de 340 títulos de obras diretamente relacionados com o objeto
da pesquisa, cuidadosamente referenciadas em cada capítulo. A organização do
trabalho entre os dois autores evidencia uma divisão do trabalho segundo o
princípio das “vantagens comparativas”: Amado Cervo, um especialista do período
imperial, responsabilizou-se pela primeira parte, sobre a “conquista e o
exercício da soberania”, que vai de 1822 a 1889. Clodoaldo Bueno trata do longo
período republicano até o golpe de 1964, resumindo-o sob os conceitos de
“alinhamento” e de “nacional-desenvolvimentismo”. Amado Cervo, finalmente,
retoma a pluma para a descrição do período recente, pós-64, caracterizado em
política externa como o de um “nacionalismo pragmático”.
As conclusões dos autores, por sua vez, são um testemunho da “nova
interpretação histórica” que eles procuraram oferecer: a política externa, num
país como o Brasil, tem um caráter supletivo, dados os condicionamentos
objetivos e a vontade política (ou sua ausência) que atuaram no processo de
desenvolvimento nacional nestes últimos 200 anos. Em outros termos, os avanços
ou atrasos desse processo estão mais bem correlacionados com as fases de
expansão ou mudança no sistema capitalista do que com um projeto nacional de
desenvolvimento dotado de uma política internacional coerentemente aplicada
pelas elites ao longo do tempo. Estamos longe, como se vê, da visão
triunfalista dos autores tradicionais.
Igualmente interessante, na obra de Cervo e Bueno, é a recusa da chamada
“teoria da dependência”, que contaminou bom número de trabalhos acadêmicos nas
últimas duas décadas. Realmente, a alegada conivência das elites com um projeto
de dominação externa não encontra fundamentos empíricos, a não ser ao nível do
anedótico. Cabe, aliás, reconhecer, de um modo geral, a honestidade intelectual
dos autores na apreciação das diferentes fases das relações exteriores do
Brasil, mesmo quando se justifica a crítica da “americanização” ou do
“alinhamento” da política externa oficial, ou mesmo a ausência, entre 1912 e
1930, de um projeto de política exterior claramente formulado e com estratégias
de implementação. Em suma, trata-se de obra sólida, apoiada em extensa pesquisa
primária (embora referida muito sumariamente na Introdução) e consolidando o
essencial da produção bibliográfica acumulada na comunidade acadêmica nas
últimas duas ou três décadas.
José Honório Rodrigues: a recuperação da história
diplomática
Uma História
Diplomática do Brasil, cuja publicação tinha sido anunciada várias vezes
pelo seu autor principal e que era aguardado com impaciência há muitos anos,
recupera, postumamente, como se disse, as aulas dadas por José Honório no Instituto
Rio Branco entre 1946 e 1956, acrescido de dois capítulos finais pelo
historiador gaúcho Ricardo Seitenfus (convidado em 1991, pela viúva Lêda
Boechat Rodrigues, para organizar as notas datilografadas deixadas pelo grande
nome da historiografia nacional, falecido em 1987. Ressalte-se, desde já, que
não se trata da “grande” história diplomática que pretendia compor José Honório
Rodrigues, mas de um sucedâneo didático que possui ainda assim inegáveis
méritos.
Como indica Ricardo Seitenfus, em sua Nota Introdutória, o texto deixado
por José Honório é minucioso até a gestão do Barão do Rio Branco, tornando-se a
partir da Primeira Guerra Mundial “genérico e resumido” (p. 20). Ele dedicou-se
então a redigir um complemento da história diplomática brasileira desde a
Conferência de Versalhes até o rompimento da neutralidade brasileira, na
Segunda Guerra, especialista que é, sob a orientação inicial do próprio José
Honório, da política externa durante a era Vargas. Ele já tinha publicado sua
tese de doutoramento na Universidade de Genebra, uma pesquisa extremamente bem
documentada sobre a diplomacia da “neutralidade” varguista durante os anos mais
críticos de seu regime.
Dotado de uma perspectiva própria, substantivamente enriquecedor de
nossa literatura especializada no campo das relações internacionais, o volume
apresenta porém alguns reparos menores de forma, dentre os quais uma revisão
insuficiente das referências bibliográficas preparadas à época por José Honório
ou de algumas passagens obscuras de seus próprios originais. A extensão
cronológica do título (1945) é, de certa forma, enganadora, uma vez que o
tratamento de nossa história diplomática chega, efetivamente, apenas até o
limiar da conferência interamericana do Rio de Janeiro, em princípios de 1942.
A organização da obra pode também ser considerada como desbalanceada, no
sentido em que, às 200 páginas, 12 capítulos e quatro séculos (de Tordesilhas a
Rio Branco) sob a pluma de José Honório, seguem-se mais 200 páginas, em dois
capítulos, para os vinte anos de crises do entre-guerras.
Trata-se, em todo caso, no que se refere ao panorama global traçado por
José Honório, de uma bem-vinda complementação bibliográfica aos trabalhos mais
conhecidos nesse campo. Uma das curiosidades deste texto de história diplomática
“recuperada”, já que composto há quase 50 anos, é precisamente o fato de nele
encontrarmos um José Honório diferente daquele a que estávamos acostumados, se
julgarmos com base em seus textos “iconoclastas” de princípios dos anos 60,
quando ele se comprazia em atacar a versão “incruenta” da “história oficial”,
os compromissos conservadores das elites e a ausência do “povo” da
historiografia dominante. Aqui José Honório segue um estilo bem mais
tradicional, praticamente despojado do tom nacionalista, apaixonado e
“contestador” do publicista da “política externa independente”.
As notas preparadas por José Honório seguem uma narrativa linear das
relações exteriores do Brasil colônia e independente, tratando segundo uma
clássica abordagem política (com algumas breves pinceladas econômicas) dos
principais episódios de nossa diplomacia. Não há propriamente uma
sistematização das relações econômicas externas, mas tão simplesmente uma
cobertura seletiva de alguns dos conhecidos problemas diplomáticos nessa área:
basicamente o Tratado de 1810 com a Inglaterra, a abolição do tráfico negreiro,
a expansão do café e o incremento do comércio (e das relações políticas) com os
Estados Unidos. A despeito disso, ele tinha consciência de que a história
diplomática não podia ser isolada dos demais elementos e fatos do processo
global: geográficos, econômicos, sociais, religiosos, etc.
Com efeito, como afirmaria José Honório Rodrigues em sua obra
metodológica, a história diplomática “investiga e relata a defesa dos direitos
nacionais e as relações econômicas, sociais e políticas que se codificaram em
tratados e convenções”, ressaltando ainda que “se as relações diplomáticas não
se esgotam no manejo das coisas políticas, e envolvem, sobretudo hoje, os
negócios econômicos, então, capítulo dos mais importantes da história
diplomática seria o que narrasse as missões comerciais e o intercurso
mercantil”.
Repetindo nas notas compiladas para sua “história diplomática” uma pergunta de
Lucien Febvre, ele questiona, no capítulo inicial sobre “o conceito de história
diplomática”, como seriam possíveis relações internacionais sem geografia e sem
economia?
José Honório busca realmente dar uma fundamentação social e econômica a
estes “capítulos da história da política internacional do Brasil”, segundo o
nome concebido por ele mesmo para uma possível edição de suas notas de curso.
Mas, manifestamente influenciado pelas doutrinas e conceitos então em vigor no
imediato pós-guerra (em especial o primado da afirmação do Poder Nacional, como
ensinado nos cursos do National War College, retomados praticamente ipsis litteris pela Escola Superior de
Guerra), José Honório formula, em dois capítulos metodológicos iniciais, sua
concepção das relações internacionais: “O que se pretende não é estudar o homus diplomaticus, com sua polidez
protocolar, sua fórmula de saudação sabiamente graduada, mas o Poder Nacional
que se exprime nas relações internacionais. Ora, desde que o mundo moderno se
acha organizado com base no sistema de Estado-Nação, o que comumente se
descreve como relações internacionais nada mais é que a soma de contratos [sic]
entre as políticas nacionais destes Estados soberanos independentes. E, como as
políticas nacionais são sistemas de estratégia empregados pelos Estados para
garantir principalmente sua segurança territorial, e para proporcionar o
bem-estar econômico e a prosperidade a seus cidadãos, não se pode fazer uma
distinção entre política externa e interna. O que um Estado faz em seu
território ou o que faz no exterior será invariavelmente ditado pelo interesse
supremo de seus objetivos internos” (p. 27).
Para José Honório, as premissas básicas de nossa política externa, desde
a época colonial, sempre foram a acumulação de poder ou a manutenção do status quo, segundo as fases de introversão
ou de extroversão que teriam marcado de maneira alternada (e de forma algo
mimética ao modelo analítico norte-americano privilegiado por José Honório) a
história internacional do Brasil. Essa concepção, surpreendente para quem
conhece seus trabalhos ulteriores de “história diplomática”, guia sua
reconstituição de nossas relações internacionais: “É, portanto, o jogo da
política do poder que queremos recriar, mais que a simples história
diplomática. É a supremacia do interesse nacional, em luta com os poderes
nacionais adversos ou amigos, que se pretende reconstituir como uma experiência
que nos sirva para dar à nossa política exterior verdadeiros objetivos
nacionais permanentes. Desse modo, não são só as habilidades diplomáticas, nem
o poder militar que se expandem internacionalmente, mas também o poder
econômico, pela exportação de capitais e pelo controle de mercados. Por ele
veremos que a melhoria constante da posição relativa do Poder Nacional se torna
um dos objetivos da política externa do Brasil. Não é, assim, só história
diplomática o que se pretende, mas a história das relações do Poder Nacional
com os demais poderes nacionais” (p. 29). Ou então: “Toda política externa é
uma expressão do poder nacional em confronto, antagônico ou amistoso, com os
demais poderes nacionais” (p. 53).
É essa história do “Poder Nacional” que José Honório reconstitui em seus
13 capítulos substantivos, tendo antes fixado de maneira algo “ortodoxa” os
três grandes princípios de nossa política exterior desde 1822:
a) preservação de nossas fronteiras contra as pretensões de nossos
vizinhos e política do status quo
territorial;
b) defesa da estabilidade política contra o espírito revolucionário,
tanto interna (revoltas e secessões do período regencial) quanto externamente
(luta contea os caudilhos do Prata);
c) defesa contra a formação de um possível grupo hostil
hispano-americano e política de aproximação com os Estados Unidos (p. 60).
Em outros termos, uma concepção da atuação diplomática e da afirmação de
nossos interesses externos que seria tranqüilamente subscrita por um
historiador arqui-conservador (e mesmo reacionário) como Hélio Vianna.
O texto sob responsabilidade de Ricardo Seitenfus evidencia um
historiador plenamente capacitado no manejo dos arquivos diplomáticos,
inclusive os das principais chancelarias envolvidas na “política pendular”
seguida por Vargas durante todo o período de disputas hegemônicas pelo apoio
(ou neutralidade) de uma das principais potências da América do Sul. No exame
da “escalada para a guerra” a análise atribui forte ênfase às relações com a
Alemanha e a Itália totalitárias, em detrimento talvez dos demais vetores de
nosso delicado equilíbrio diplomático nesses anos. A menção é pertinente
especialmente em relação à Argentina, já que os Estados Unidos merecem subseção
específica, bem documentada. Digna de elogios é a reconstituição, praticamente
passo a passo, da atuação do Brasil na Liga das Nações, culminando com a
lamentável derrota na “batalha” por uma cadeira permanente no Conselho. O
leitor contemporâneo não deixará de formular interessantes comparações entre
esse episódio e a atual candidatura brasileira a uma cadeira no Conselho de
Segurança da ONU, em particular no que se refere às relações, então e agora,
com a Alemanha, hoje aliada na disputa pela reforma da Carta, mas concorrente
em 1926.
As conclusões nos remetem de volta ao professor dos anos 50. Como outros
historiadores tradicionais, José Honório também via na “riqueza demográfica e
territorial do Brasil, [uma] inquestionável possibilidade de tornar-se uma
grande potência” (p. 463), estando o País, por sua posição nas Américas,
“condenado a uma posição de equilíbrio, que não é isenta de perigos e que lhe
vale, freqüentemente a censura de pender para um lado ou para outro” (p. 462).
Escrevendo numa fase histórica caracterizada pela competição, quando não pelo
antagonismo, com a Argentina, mesmo assim José Honório conclui pela importância
do incremento de nossas relações econômicas e culturais com os países do Cone
Sul; mas, para ele, manifestamente, o processo de integração não estava ainda
na ordem do dia, como Hélio Jaguaribe pioneiramente proclamava nos Cadernos do Nosso Tempo.
Rubens Ricupero e a perspectiva diplomática brasileira
Esse processo de integração entre os países da região, em especial entre
o Brasil e a Argentina, não pode ser dissociado das relações de cada um deles
com as potências dominantes no período recente. Com efeito, seria difícil, ou
mesmo impossível, estudar as relações bilaterais dos dois países platinos nos
últimos 60 anos sem passar pelo que o Embaixador Rubens Ricupero chamou de
“relação triangular Brasil-América Latina-Estados Unidos”. A menção a Ricupero
nos conduz, por fim, ao elemento inovador a ser destacado nesta introdução à
literatura diplomática: o retorno, se não a chegada maciça, de diplomatas
profissionais aos estudos de história diplomática, acelerando e aprofundando
uma prática que já tinha sido praticada no passado. O que vale destacar,
ademais da própria contribuição historiográfica desses “diplomatas-acadêmicos”
ao avanço dos estudos sobre relações internacionais do Brasil, é o fato de que
esses autores são também “executores” da política externa concreta, podendo
assim introduzir uma visão “interna” dos problemas com que se defronta o País
nas diversas vertentes de seu relacionamento externo.
Tendo ministrado, durante longos anos, aulas de história diplomática e
de teoria das relações internacionais no Instituto Rio Branco e na Universidade
de Brasília, Rubens Ricupero deixou relativamente poucos trabalhos escritos na
vertente historiográfica, em contraposição, por exemplo, ao imenso saber
transmitido por via oral às centenas de alunos e auditores ocasionais que
tiveram a chance de ouvi-lo discorrer sobre a inserção do Brasil no mundo
contemporâneo. Alguns textos são contudo sintomáticos de sua preocupação com os
grandes problemas do desenvolvimento brasileiro, que ele sempre buscou colocar
em perspectiva histórica. Pode-se mencionar, em particular, o trabalho
publicado na série “Sessenta anos de política externa brasileira (1930-1990)”,
tratando precisamente das relações triangulares entre o Brasil, a América
Latina e os Estados Unidos e no qual ele analisa as mudanças de paradigmas na
política externa do Brasil dirigida a esses dois parceiros desiguais.
Vários outros trabalhos do Embaixador Ricupero, a maior parte fortemente
impregnada de conteúdo histórico a despeito de terem sido escritos com
preocupações mais contemporâneas, foram publicados na coletânea Visões do Brasil, que percorre um imenso
panorama das relações internacionais do Brasil tendo a “História como método”,
como sublinhou seu apresentador, o também diplomata Gelson Fonseca. Uma
apresentação ainda mais exaustiva de sua “visão diplomática” do mundo está no
texto que serviu de suporte intelectual ao volume comemorativo dos cento e
cinqüenta anos do nascimento do Barão do Rio Branco, o patrono incontestável da
diplomacia brasileira. Nesse
longo ensaio, Ricupero faz mais do que uma “mera” reconstituição biográfica sobre
a obra de um antecessor com o qual ele possui evidentes “afinidades eletivas”.
Trata-se de uma profunda reflexão sobre a influência do pensamento e ação do
Barão nas décadas posteriores a sua atuação efetiva (o “destino do paradigma”),
contendo uma seção comportando uma indagação pertinente e contemporânea (“o que
faria o Barão hoje?”), finalizando com uma avaliação global da grande
personagem histórica (“contrastes e confrontos”). Segundo Ricupero, Rio Branco
foi o “último grande representante da escola de estadistas do século XIX
brasileiro”.
Reconhecidamente um dos melhores idealizadores e formuladores da
política externa governamental — com forte ênfase na área americana — e um de
seus pensadores mais abalizados, Ricupero, atualmente Secretário-Geral da
UNCTAD, completou, de uma certa maneira, a obra do Barão, ao contribuir, por
meio de um arcabouço jurídico de notória complexidade (Tratados da Bacia do
Prata e de Cooperação Amazônica, início do processo de integração
Brasil-Argentina), com os processos de aprofundamento da cooperação e de
interdependência entre Estados que tinham seu relacionamento baseado, até
então, no mero reconhecimento mútuo das fronteiras traçadas por Rio Branco. Não
fosse o arriscado e talvez o inadequado da comparação, poderíamos chamá-lo de
“George Kennan brasileiro”, no sentido de ser Ricupero um diplomata sobretudo
conceitual, preocupado em não apenas enquadrar sua atuação profissional num
determinado contexto filosófico e moral, mas também em dar-lhe uma perspectiva
histórica de mais largo alcance, ao estilo da “longa duração” cara a Fernand
Braudel (não por acaso, Ricupero é igualmente o presidente do Instituto de
Economia Mundial, de São Paulo, que leva o nome do grande historiador francês).
Outro diplomata que vem contribuindo de forma consistente para o estudo
da inserção internacional do Brasil contemporâneo é o Embaixador Luiz Felipe de
Seixas Corrêa, autor de muitas análises sobre aspectos diversos das relações
exteriores do País no período recente. Depois de extensa análise sobre a
diplomacia da “nova República”,
Seixas Corrêa organizou, introduziu e comentou cinqüenta anos de participação
do Brasil nas assembléias-gerais das Nações Unidas.
Segundo sua própria informação, ele encontra-se escrevendo uma “nova” história
diplomática do Brasil, fruto de suas pesquisas e de seu trabalho como Professor
de história da política externa do Brasil no Instituto Rio Branco. Cabe também
referir a outras “notas de aula”, aquelas que o diplomata Fernando Paulo de
Mello Barreto produziu durante seu curso sobre o período republicano no
Instituto Rio Branco e que estão sendo preparadas para publicação em forma de
livro, provisoria e sugestivamente intitulado “Os Sucessores do Barão” (a
exemplo de um capítulo de Delgado de Carvalho).
Alguns outros exemplos recentes também confirmam o renovado interesse de
diplomatas profissionais pela história diplomática, como parece ser o caso de
Gonçalo Mourão, autor de um exaustivo estudo “investigativo” sobre o impacto
internacional da Revolução de 1817 em Pernambuco.
Muitos outros, é verdade, se dedicam a estudos de história do Brasil, como por
exemplo Evaldo Cabral de Mello, mas nem sempre no domínio estrito das relações
exteriores, como é a vertente privilegiada neste ensaio. Na tarefa de
perscrutar ou inquirir o passado das relações econômicas do País, o
profissional da diplomacia dotado de sensibilidade para a reflexão histórica
talvez tenha, sobre o observador puramente acadêmico, a vantagem comparativa de
formular questões que incidem diretamente sobre o trabalho diplomático tal como
conduzido na prática diária ou rotineira de uma chancelaria ou que apresentam
uma certa continuidade conceitual ou negocial em relação aos grandes temas
inscritos na agenda econômica internacional, do passado ou do presente.
Finalmente, uma menção pessoal pode ser instrutiva para revelar os
avanços feitos em relação a um projeto elaborado em princípios dos anos 90 e
apresentado em texto metodológico, de certa forma introdutório a um planejado
(e ainda em curso) estudo abrangente das relações internacionais do Brasil.
Depois de pesquisas sobre as relações econômicas internacionais do Brasil, e de
vários trabalhos publicados nessa área — vários deles compilados em volume a
ser divulgado proximamente —,
este autor deu início a uma série de três ensaios históricos que devem cobrir o
essencial do relacionamento econômico externo do Brasil, desde a transferência
da família real em 1808 até a atualidade. Dessa forma, um primeiro volume,
tratando das etapas formadoras da diplomacia econômica no Brasil já se encontra
terminado sob a forma de dissertação funcional, aguardando publicação em sua
versão completa. Um
segundo volume, provisoriamente intitulado “A Ordem Internacional e o Progresso
da Nação: as relações econômicas internacionais na era republicana”, encontra-se
em curso de preparação, devendo preceder ao terceiro e último da série,
dedicado às relações econômicas internacionais do Brasil na fase contemporânea
(pós-1940).
Os alunos mais dedicados de Delgado de Carvalho e seus muitos leitores
na diplomacia profissional lançam-se assim à empresa, talvez arriscada mas
gratificante, de completar a obra do mestre, sem talvez a garantia de lograr a
clareza e a simplicidade alcançadas por este livro que permanece, ainda hoje,
um marco no estudo da história diplomática brasileira. Que esta reedição possa
continuar a servir os alunos do Instituto Rio Branco e aos dos vários cursos de
relações internacionais hoje existentes nas universidades brasileiras por
muitos anos, ou quiçá por várias décadas, ainda.
Paulo
Roberto de Almeida
Brasília,
dezembro de 1997