breves considerações sobre rupturas e continuidades
Paulo Roberto de Almeida
Depoimento prestado em 11 de Julho de 2002 para
Grupo de alunos da Faculdade Casper Líbero ,
na qualidade de colaborador intelectual do projeto de livro-reportagem:
“O Brasil diante das escolhas e os desafios da Multipolarização:
rupturas e continuidades do governo Geisel (1974-1979)”
Temática geral da obra: a influência da política externa desenvolvida pelo presidente Ernesto Geisel, nas relações regionais e multilaterais que o Brasil mantém hoje.
Perguntas formuladas a Paulo Roberto de Almeida (PRA):
1. Podemos fazer uma relação entre a política externa desenvolvida por Geisel (diversificação de parcerias bilaterais, utilização da diplomacia presidencial para obtenção de novos investimentos e parceiros, dentre outras características) com a política de diversificação de parcerias bilaterais realizada hoje com o atual governo?
PRA:Existe uma certa convergência de orientações políticas, de ênfases bem como de métodos entre a política externa praticada durante o Governo Geisel (1975-1979) e aquela seguida durante as duas administrações FHC (1995-2002), muito embora elas pertençam a dois universos políticos distintos e respondam a preocupações diferentes quanto aos objetivos finais.
Comecemos pelas convergências. Em ambos os casos, houve forte ênfase na diplomacia presidencial, assim como no objetivo da diversificação de parcerias, na construção de certas alianças privilegiadas e na busca de um diálogo de qualidade com interlocutores importantes do cenário internacional, tanto no horizonte tradicional das potências ocidentais, quanto no cenário menos comum de parceiros do mundo dos países em desenvolvimento. Em ambos os casos, igualmente, se buscou valorizar os diversos planos de trabalho diplomático, tanto o cenário regional, estrito senso, como o âmbito dos esquemas plurilaterais e, sobretudo, o sistema multilateral. Existe convergência similar na busca de diálogo privilegiado com as grandes potências econômicas (EUA, Alemanha, Japão, uma tríade dominante no cenário financeiro), assim como na busca de parcerias tecnológicas e industriais que capacitassem o Brasil a elevar-se na escala de desenvolvimento tecnológico e e de equipamento militar.
No plano das divergências contudo, os elementos seguintes devem ser destacados. As condições econômicas, políticas, geopolíticas e de ordem doméstica nas quais foram exercidas as políticas externas respectivas de Geisel e de FHC foram sensivelmente diferentes, com ênfase nas condições domésticas, mas também no cenário internacional. Neste último plano, com efeito, vivia-se então, ainda, sob o impacto da Guerra Fria, muito embora a Administração Nixon (1968-1974) e seu Conselheiro de Segurança Nacional e depois Secretário de Estado, Henry Kissinger, tivessem se esforçado para ampliar os espaços de détente, com diversos acordos de redução de armas estratégicas negociados (SALT I, ABM), início das negociações para a conclusão da guerra do Vietnã (e do Camboja) e iniciativas nos planos multilateral e regional (confidence-building measuresna Europa), por exemplo). Mas a União Soviética ainda mostrava uma face agressiva no cenário internacional, com um forte programa de armamentismo nuclear (mísseis, equipamentos convencionais e projeção naval) e um apoio incontido a diversos regimes “progressistas” em diversas partes do mundo em desenvolvimento (África, sobretudo, mas também América Latina e Ásia), ademais da preservação da chamada “Doutrina Brejnev” que “autorizava” intervenções unilaterais em países de sua órbita em caso de “ameaças” ao poder socialista (casos da Tchecoslováquia, Polônia, RDA).
No plano interno, mais espetacularmente, o País vivia uma situação ditatorial de repressão a grupos de oposição, censura prévia à imprensa e sentimentos anticomunistas fortemente disseminados em todo o establishment militar. O alinhamento ideológico com as teses mais conservadoras em política externa comandava ausência quase completa (ou apenas formais) de relações diplomáticas com países comunistas como China e Cuba e fortes restrições aos demais da órbita soviética. O Governo Geisel, precisamente, inovou tremendamente ao “normalizar” relações diplomáticas com vários desses países (como o reconhecimento da China comunista e de Angola “marxista”, mas não de Cuba), mesmo ao preço de fortes tensões com determinadas cúpulas do sistema militar (o próprio ministro do Exército, Silvio Frota, era virulentamente contrário a tal tipo de política). O chanceler escolhido por Geisel, Antonio Francisco Azeredo da Silveira, vinha de uma tradição “desenvolvimentista” e nacionalista, no Itamaraty, além de ter assistido a diversos episódios de engajamento do Brasil em esforços de cooperação com outros países em desenvolvimento no quadro do Grupo dos 77, da UNCTAD, dos movimentos em prol da descolonização e do rompimento da dependência econômica desses países em relação às potências ocidentais (UNCTAD). Ele deu início a uma forte reorientação da política externa em direção do chamado “Terceiro Mundo” e das teses pregando o estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional nos foros multilaterais.
O próprio Geisel envolveu-se diretamente na formulação e execução dessa nova diplomacia desenvolvimentista, assim como buscou parcerias privilegiadas entre os principais parceiros avançados, com o objetivo de obter financiamento e tecnologia (inclusive nuclear) para conformar o projeto do “Brasil grande potência” (política mais praticada do que verdadeiramente afirmada). Tendo encontrado fortes resistências nos EUA (que se preocupavam com a proliferação nuclear), Geisel busca uma aliança privilegiada com a Alemanha, de que resulta o acordo de cooperação nuclear (supostamente de orientação basicamente energética e com características apenas “civis”), implementado apenas parcialmente e a custos altíssimos para a sociedade.
O cenário externo não foi contudo favorável ao desenvolvimento dessas estratégias de atuação formuladas conjuntamente por Geisel e “Silveirinha”. Depois do primeiro choque do petróleo em 1974, o mundo viveu o recrudescimento da pressão inflacionária e o aumento das taxas de juros, até que o segundo choque do petróleo, em 1979, consumasse um cenário externo de “estagflação”. No plano regional, igualmente, os conflitos com a Argentina em torno do aproveitamento dos recursos hídricos da bacia do Paraná (depois do acordo concluído com o Paraguai, em 1975, para a construção de uma grande barragem hidroelétrica nas proximidades da fronteira tripartite de Iguaçu) recrudesceram ao ponto de se temer a ruptura em um conflito aberto, num cenário geopolítico já caracterizado pela competição militar entre os dois países e pela possível pressão para a aquisição da arma nuclear pelos establishments militares respectivos.
Na era FHC, esse cenário se encontra radicalmente transformado: fim do socialismo e da bipolaridade, pacificação, cooperação e integração nas relações com a Argentina e mudanças na matriz energética do País, com a diminuição da dependência em relação ao Oriente Médio. Mas, não resta dúvida que a orientação em prol da diversificação de parcerias, sobretudo no plano econômico e tecnológico, aproxima a administração atual da era Geisel, inclusive em seus aspectos eventualmente negativos, como seria a confiança exagerada no crescimento econômico do País e a dependência ampliada em relação aos capitais de empréstimo e ao financiamento externo de modo geral.
Também se repete a forte política de atração de investimentos diretos externos, mas neste caso cabe destacar a forte ênfase dada no Governo Geisel a grandes projetos nacionais (e sobretudo estatais) de infraestrutura e indústrias básicas, ao passo que FHC deu continuidade ao processo iniciado por Collor de privatizações e de desengajamento do estado das atividades diretamente produtivas na esfera econômica. Este encontrou um País basicamente industrializado (daí ter caracterizado o Brasil não como um país “subdesenvolvido”, mas como um país “injusto”), processo que tinha sido completado, justamente, na administração Geisel. Ambos deixaram dívidas interna e externa maiores do que as encontraram ao iniciar seus governos respectivos, muito embora tenham procurado controlar o processo inflacionário interno (com mais sucesso no caso FHC, mas descontando-se a pressão inflacionária representada pelo petróleo na era Geisel).
Em todo caso, há talvez semelhanças de forma, como de objetivos, entre as duas fases do Brasil contemporâneo, mas com cenários interno e externo bastante diverso e portanto com ênfases especiais no plano diplomático divergentes no que respeita objetivos básicos da construção do Brasil enquanto nação inserida no contexto mundial: Geisel gostaria de ver um Brasil menos dependente do exterior, totalmente autônomo tecnologicamente e capacitado militarmente, enquanto FHC trabalha basicamente nos quadros da interdependência, da globalização (que ele aceita como um dado da realidade) e da regionalização (conceitos de América do Sul e construção do Mercosul) e não tem a pretensão de construir uma potência militar, e sim uma nação econômica e socialmente desenvolvida (ou pelo menos mais “justa”), com aceitação das realidades geopolíticas atuais.
2. Poderíamos dizer que o governo atual retomou esta política de diversificação de parcerias e a valorização da diplomacia presidencial exercida no governo Geisel (que representou o fim do alinhamento do governo militar aos EUA) depois de uma política de “alinhamento” aos EUA exercida também (de certa forma) pelo presidente Fernando Collor? Podemos dizer, então, que entre o governo Geisel e o governo FHC tivemos uma política externa “morna” sem grande valorização da diplomacia brasileira?
PRA:FHC praticou uma diplomacia presidencial em toda a sua extensão, inclusive porque não tinha os constrangimentos de Geisel (direitos humanos, ditadura, repressão política etc.) e, de certa forma, ele foi o seu próprio “chanceler”, ao passo que o papel de Silveirinha na gestão Geisel foi bem mais destacado do que o de Lampreia na era FHC. A diversificação de parcerias era um método, não um fim em si mesmo, ainda que a busca de novos parceiros para compensar a presença predominante dos EUA tenha figurado como objetivo importante na era Geisel (que já tinha assistido a uma relativa deterioração das relações com os EUA na gestão anterior, de Costa e Silva e Magalhães Pinto). O alinhamento com os EUA, na era militar, só existiu, de verdade, na primeira gestão dos generais, sob Castello Branco, por uma simples questão de “reconhecimento” pelo apoio dado na estabilização do novo regime e sua situação econômico-financeira.
Não se pode dizer, verdadeiramente, que tenha havido “alinhamento” com os EUA na gestão Collor, mas sim o rompimento de certos “tabus” que dificultavam as relações bilaterais, como na questão da informática, da proliferação nuclear e missilística, das patentes, da política comercial, do alegado “terceiro-mundismo” da política externa (e suas repercussões em termos de dívida externa, relações com os banqueiros privados e com o FMI, negociações comerciais multilaterais da Rodada Uruguai) etc. Várias dessas “inovações” diplomáticas não representavam “alinhamento” estrito senso, mas a busca de uma modernização na forma de inserção do Brasil na economia internacional, como a redução tarifária e a adoção de um novo código de propriedade industrial reconhecendo patentes farmacêuticas, por exemplo. A chamada “política nuclear independente” não trouxe nem independência nem benefícios econômicos ou tecnológicos ao País, daí a decisão acertada (apoiada pelos EUA) de renunciar às armas de destruição em massa (possibilidade aliás negada pela Constituição) e de aderir aos principais instrumentos internacionais vinculantes nessa matéria.
De toda forma, em nenhuma das duas épocas, a política externa foi “morna” ou secundária, para os interesses internos e externos do Brasil. Em ambas, ela foi fundamental, estratégica mesma, para a consecução de determinados objetivos que poderiam ser, genericamente, classificados sob a rubrica “desenvolvimentista”.
3. No que se refere a parcerias estratégicas que visavam fortalecer o projeto nacional do governo Geisel, poderíamos afirmar que ela foi retomada em algum momento posterior que não o do governo Fernando Henrique que é criticado por não ter um projeto nacional? Quais seriam os principais objetivos de uma política externa como a desenvolvida pelo atual governo? Que benefícios ela traz para o país?
PRA:O “projeto nacional” do Governo Geisel foi o do fortalecimento da base econômico-industrial do País, como grande ênfase na capacitação tecnológica nacional e na autonomia em matéria de insumos básicos (substituição de importações). O “projeto nacional” do governo FHC, mais praticado do que teorizado, é o da plena inserção do Brasil nas correntes dinâmicas da economia internacional, objetivo de certa forma oposto ao buscado por Geisel, mas não menos legítimo, uma vez que ambos buscavam fortalecer o País para competir no cenário externo. A visão “autárquica” de Geisel correspondia, mais bem, ao tipo de educação militar que ele recebeu (inclusive com fortes influências de um tipo de economia “nazista”, aquela que, nos anos 30 valorizava a “plena autonomia” do País em situação de ruptura do abastecimento externo), ao passo que a visão bem mais “interdependente” de FHC reflete sua educação cosmopolita e fortemente engajada na cooperação internacional, sem qualquer receio de “dependências nocivas” para o Brasil. São duas mentalidades opostas, mas ambas fortemente comprometidas com a plena valorização da capacitação tecnológica nacional (embora por métodos distintos).
Os benefícios supostos ou reais da atual política externa são os da plena valorização dessa inserção econômica internacional e, sobretudo, o caráter estratégico atribuído ao processo de integração regional e à cooperação com a Argentina, ao passo que Geisel não tinha nenhuma intenção de renunciar à “soberania” brasileira no quadro da integração regional (inclusive por desconfiar da Argentina enquanto “competidora estratégica). Essa opção tem um enorme custo para o País, uma vez que a enorme autonomia praticada (na verdade a busca da autarquia) não é economicamente racional, nem atende ao sistema produtivo como deveria. O Governo Figueiredo tentou retomar, ou continuar, o projeto de Geisel, mas a situação de deterioração financeira e de crise econômica então vivida, a forte pressão política interna em favor da redemocratização, bem como a incapacidade gerencial e a falta de gosto do presidente pela diplomacia (como pelo simples exercício da autoridade presidencial) inviabilizaram completamente tal continuidade. A era Sarney, ainda que inovadora em certos aspectos (como na integração com a Argentina) foi basicamente de transição e de má administração econômica, dificultando a continuidade desse tipo de projeto (que aliás não contava mais com condições financeiras ou externas para ser implementado). Faltou-lhe, também, um chanceler com visão estratégica, ainda que a máquina do Itamaraty tenha funcionado de maneira relativamente eficiente.
De todo modo, projetos econômicos não são implementados segundo a vontade dos dirigentes, mas também em função de um contexto interno e externo favoráveis. Ora, apenas nos anos 90, com o sucesso da estabilização no Brasil e o degelo da Guerra Fria, pode o Brasil retomar um projeto nacional dotado de certa continuidade. Ainda que a diplomacia da era FHC não tenha tido nenhum slogan (como a diplomacia “ecumênica” e o “pragmatismo responsável” da era militar), ela teve um sentido, uma clara direção e sobretudo uma implementação fortemente embasada no interesse nacional (ainda que levando em conta nossas limitações intrínsecas em termos de poder financeiro).
4. Dentro de uma análise mais histórica, a diplomacia brasileira pode se considerada uma diplomacia voltada para atender os interesses econômicos do país?
PRA:Certamente que sim, desde a era Vargas, basicamente, a política externa está organizada para atender aos objetivos nacionais de desenvolvimento econômico. Ela é uma diplomacia “instrumental”, “oportunista”, ambos os conceitos no bom sentido da palavra, voltada para o aproveitamento de todas as chances de promoção dos interesses econômicos do País, seja no plano comercial, seja no tecnológico, seja ainda no financeiro.
5. O governo Geisel, desta forma, representou um marco para a política externa do país quando atribui a política externa um caráter econômico?
PRA:Nisso ele não inovou essencialmente no que vinha sendo praticado desde os anos 50 e no que já vinha sendo feito na administração anterior, de Costa e Silva e Magalhães Pinto (este um mero executor do que o Itamaraty formulava). Mas, certamente que a forte personalidade do presidente Geisel, seu envolvimento direto com os dossiê de política externa, seu conhecimento preciso e discussão minuciosa da agenda externa, em muito contribuíram para imprimir essa marca de forte ativismo presidencial no plano da política externa.
6. E a política externa do governo atual, tem este caráter?
PRA:Provavelmente sim, ainda que com características particulares diferentes, como ressaltado nos parágrafos anteriores, especialmente, na questão dos cenários diferentes em cada época. Mas, se Geisel foi essencialmente “econômico” e “tecnológico”, FHC não se deixou prender por esse tipo de “restrição” setorial, inclusive porque ele nunca enfrentou os fortes constrangimentos políticos de seu antecessor militar, um autocrata administrando uma ditadura repressiva. FHC voltou-se para o debate dos grandes temas políticos e sociais do mundo contemporâneo, envolvendo-se diretamente no diálogo com dirigentes do G-7 na discussão dos problemas sociais acarretados pela globalização e pela volatilidade financeira, nas assimetrias da falta de desenvolvimento em várias regiões periféricas, no desenho (pelo menos tentativo) de uma “nova ordem política internacional”, com a forte expressão do desejo do Brasil de ocupar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, candidatura impensável na era militar. Sobretudo, a decisão de romper o “tabu” da autonomia tecnológica no terreno nuclear e de assinar o TNP representa uma pequena (ou talvez grande) revolução nos próprios fundamentos da diplomacia brasileira. Essa agenda ultrapassa a mera questão do desenvolvimento econômico do País, mas certamente ela continua a ter a vocação do desenvolvimento no centro das preocupações nacionais.
7. Apesar do Mercosul ter sido formado durante o governo Collor, ele não continua sendo um bloco inativo? O Brasil não continua atuando individualmente sem o respaldo do mesmo, principalmente no momento atual de crise da Argentina?
PRA:O Mercosul NÃO foi formado no governo Collor: ele deriva de decisões tomadas na administração Sarney, ainda que no âmbito estritamente bilateral, Brasil-Argentina. O que Collor e Menem fizeram foi mudar o caráter (de dirigido para livre-cambista) e acelerar o ritmo da desgravação tarifária bilateral em direção de um mercado comum (decisão que já tinha sido tomada em 1988, mediante o Tratado de Integração) e aceitando a incorporação de novos membros nesse processo (que diga-se de passagem não tinham sido excluídos anteriormente, mas que tinham preferido, no caso do Uruguai, ficar à margem das obrigações jurídicas de uma integração plena). Ele tampouco é um bloco inativo, e seus problemas atuais derivam de crises individuais dos países membros, que foram levados a adotar, voluntária (no caso do ministro Cavallo, na Argentina) ou involuntariamente, medidas anti-integracionistas, não de problemas estruturais ou institucionais da própria arquitetura integracionista.
O Brasil é o país que mais tem cumprido o espírito e a letra dos objetivos integracionistas, mas tem consciência que, por ser o país mais forte e economicamente mais poderoso em termos de PIB, população, indústria, comércio exterior, lhe cabe uma responsabilidade adicional na construção e manutenção do edifício integracionista.
8. A cada momento que passa a realização de parcerias como a Alca, o Mercosul e, consequentemente, Mercosul x UE não ficam mais distantes devido aos subsídios e o protecionismo apresentado pelos países que representam estes blocos?
PRA:Não há esquemas excludentes em termos de liberalização de comércio e todos esses blocos podem ser inter-complementares nos processos de abertura comercial e de aumento da interdependência econômica. Não resta dúvida, porém, que os processos recentes de recrudescimento do protecionismo e das práticas anti-liberalizadoras (como o subvencionismo extremado, no plano interno e externo, em relação a determinadas atividades) pode atuar negativamente na consecução dos processo de liberalização comercial, quer no plano regional ou hemisfério, quer no âmbito multilateral ou ainda na esfera inter-regional (UE-Mercosul). São percalços que devem ser superados para atender aos objetivos proclamados pelos líderes desses blocos.
9. Quais são as perspectivas que o País tem em termos de política externa com as próximas eleições?
PRA:Basicamente as mesmas da atual administração: continuar os processos negociadores em curso (Mercosul, América do Sul, Alca, OMC e UE, além de outros esquemas bilaterais ou plurilaterais), aumentar nossa participação no comércio internacional e, de forma inédita talvez, diminuir a dependência financeira externa, mas essa não é uma tarefa basicamente ou essencialmente diplomática., uma vez que ela depende, sobretudo, de condições internas (aumento da poupança doméstica, continuidade do esforço de superávit fiscal, fortalecimento do processo de estabilização, melhoria da capacitação tecnológica nacional), que são administradas pela área econômica, não pelo setor diplomático.
10.De que forma a estabilidade econômica conseguida com o atual governo influencia ou influenciou nas relações externas mantidas pelo Brasil?
PRA:Foi de uma enorme “utilidade” na apresentação externa do País, mas sobretudo nos livra de certos constrangimentos externos a que estávamos antes expostos: alta inflação, corrosão do instrumento monetário, ausência de orçamento realista etc. Pode-se entretanto observar que a maior parte da administração FHC teve de conviver com fortes crises financeiras externas (começando pelo México, em 1994-95, passando pela Ásia, em 1997-98, atingindo a Rússia, em 1998, e chegando ao próprio Brasil nesse último ano), o que obrigou o País a retomar o caminho dos acordos com o FMI, para a sustentação financeira externa de nosso posição de balanço de pagamentos.
11.Como embaixador nos EUA, teria como nos informar de que forma o Brasil é visto por este país e em que escala a formação da ALCA interessa aos americanos?
PRA:Não sou “embaixador” nos EUA, mas ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington. O Brasil não é propriamente “visto” nos EUA, a não ser pela pequena fração da comunidade oficial (diplomatas, funcionários da área de segurança), acadêmica (scholars especializados dos centros de pesquisa voltados para a região, professores “brasilianistas) e, sobretudo, da área econômica (investidores diretos, analistas financeiros, banqueiros), que tem uma visão muito realista, por vezes algo imprecisa, das realidades do País. O conjunto da população ignora solenemente não só o Brasil como o resto do mundo: os americanos são profundamente ignorantes em relação ao que se passa no resto do mundo, este é um dado da realidade e do panorama social dos EUA. Mas, obviamente, eles entretêm uma “visão” do Brasil, como a de um país tropical, de natureza luxuriante, com um povo simpático e jogador de um esporte estranho conhecido como “soccer”, com grandes belezas naturais (Amazônia, Rio de Janeiro, Bahia, Pantanal), mas também com imensas desigualdades sociais e miséria amplamente disseminada, o que não está muito distante da realidade. Salvo problemas graves, o Brasil comparece muito pouco nas informações correntes disponíveis ao americano comum (ainda que os jornais de negócios tenham bastante matéria sobre o Brasil, sobretudo como “mercado emergente”).
Em relação à Alca, os EUA estão tão divididos quanto o Brasil nessa matéria: políticos e sindicatos preocupados, ecologistas e anti-globalizadores opostos, economistas favoráveis, acadêmicos céticos quanto às suas chances reais, industriais divididos quanto a suas vantagens e desvantagens (dependendo do setor), e diplomatas moderadamente favoráveis ao avanço do processo negociador, por perceberem as vantagens de longo prazo ou de caráter estrutural que adviriam desse imenso bloco liberalizador hemisférico.
De modo não surpreendente, as oposições localizadas coincidem com as ameaças percebidas ou supostas derivadas do processo de liberalização: assim como os nossos agricultores estão confiantes na capacidade de competição do Brasil na área dos produtos primários, os americanos temem a concorrência dos produtos brasileiros. Assim como os industriais e as empresas de alta tecnologia (inclusive na área de serviços e de lazer) dos EUA desejam ardentemente a Alca, os nossos industriais de eletrônicos e de bens de capital temem seu impacto em seus setores respectivos, por razões óbvias de diferenças de competitividade, de “custo Brasil” etc. Ou seja, o panorama é relativamente similar em ambos os países, com uma grande maioria indefinida ou incerta quanto às possibilidades reais de implantação do esquema liberalizador, tão complexo é o processo negociador.
Mas, a Alca é basicamente um projeto americano e atende a seus interesses fundamentais. Isso não quer dizer, contudo, que ela seja totalmente negativa para o Brasil ou que sua implantação redundará em “perdas” absolutas para o País. Provavelmente seus resultados de médio e longo prazo serão positivos para o Brasil em termos de comércio, investimentos e finanças, ainda que o impacto de curto prazo possa ser significativo (mas seu período de implantação pode ser delongado, pois tudo depende de negociação).
12.Na sua opinião, quais são os principais problemas apresentados pela diplomacia brasileira no contexto em que vivemos?
PRA:Não temos propriamente problemas “da” diplomacia brasileira, mas talvez problemas “instrumentais”: número relativamente pequenos de diplomatas para todas as frentes de negociação, recursos orçamentários extremamente reduzidos para viagens, estudos, promoção comercial, contratação de consultorias técnicas, ampliação da rede consular externa, reduzida capacidade das demais agências governamentais brasileiras em “abastecer” os diplomatas de “inputs” adequados a certas negociações, enfim, problemas típicos de um país em desenvolvimento, com um funcionamento deficiente das instituições públicas e uma baixa interação com o mundo.
Creio pessoalmente que o Itamaraty, ou os seus diplomatas, deveriam abrir-se mais às interações com a sociedade civil, dialogar mais intensamente no plano interno e externo e participar mais abertamente dos debates públicos em temas de relações internacionais e de política externa. Os constrangimentos criados pela existência de um instrumento de controle dessas manifestações públicas, mais vulgarmente conhecido como “lei da mordaça”, certamente não ajudam nessa abertura ampliada do Itamaraty à sociedade civil.
13.Para finalizar, o que explica o Brasil que é considerado um gigante em extensão e capacidade econômica, língua única, estabilidade, falta de conflitos e uma diplomacia tão elogiada ter uma participação tão pequena no comércio mundial (de cerca de 0,8% atualmente, não é isso?)
PRA:A participação do Brasil no comércio internacional gira efetivamente em torno de 0,8 a 1% dos intercâmbios globais, o que é efetivamente pouco se pensarmos na dimensão global da economia (8º ou 10º PIB no mundo), mas relativamente compatível com o baixo grau de abertura econômica externa (coeficiente de 10% do PIB aproximadamente). Tal situação deriva de fatores histórico-estruturais que são muito lentos a serem transformados: fechamento da política econômica durante a fase de industrialização e o enorme grau de nacionalização do aparelho produtivo construído durante a fase de desenvolvimento econômico “autárquico” (era Vargas e regime militar), ademais de uma desconfiança “natural” do País em relação aos processos de liberalização comercial e de uma especialização exportadora em setores caracterizados por baixo dinamismo e elasticidade-renda (commodities agrícolas, por exemplo, onde estão nossas grandes vantagens comparativas). Mas, somos, em contrapartida, um grande “tomador” de recursos externos, seja sob a forma de investimentos direitos (voluntários), seja sob a forma (obrigada) de capitais de empréstimo e financiamentos diversos (em virtude de nosso crônico desequilíbrio das transações correntes e da necessidade de importar capitais para compensar essa defasagem).
Existem portanto diversos fatores que explicam essa baixa participação no comércio internacional, mas os mais importantes talvez sejam, não os “estruturais”, mas aqueles de ordem psicológica: somos introvertidos, pouco propensos a nos abrir ao mundo e temerosos de uma maior exposição (e fragilidade) externa, provavelmente por falta de confiança em nós mesmos e por medo de não poder (ou não sabermos) competir vantajosamente com a concorrência externa. Pouco a pouco o Brasil vai superando essa timidez, como se vê na nova confiança adquirida em termos de competitividade agrícola, nos esportes e na música, e gradualmente nos produtos de tecnologia mais avançada, como aviões ou mesmo manufaturados industriais.
O Brasil tem todas as condições de vencer esses constrangimentos e de se inserir mais ativamente nos circuitos da globalização e da economia internacional. Ele certamente o fará, com a ajuda de uma diplomacia competente e autoconfiante.
Washington, 924: 11 de julho de 2002
Paulo Roberto de Almeidaé doutor em Ciências Sociais, mestre em Planejamento Econômico e diplomata de carreira desde 1977. Publicou os seguintes livros: Mercosul: fundamentos e perspectivas(LTr, 1998), Relações internacionais e Política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização (UFRGS, 1998), O Brasil e o multilateralismo econômico(Livraria do Advogado, 1999); Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud (Paris: L’Harmattan, 2000); Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império(Senac, 2001); Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas(Paz e Terra, 2002); Une Histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil Contemporain(Paris: L’Harmattan, 2002). Website: www.pralmeida.org.