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Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

domingo, 20 de novembro de 2011

Os Doze Trabalhos da Boa Governança - Paulo Roberto de Almeida

Um trabalho de 2003-2004, mas ainda válido, já que o Brasil não parece ter evoluído muito positivamente desde então. Ao contrário, o Brasil não só parece, como recuou de fato, e muito, nos anos decorridos desde então, com a deterioração da governança, o aumento da corrupção, a incompetência sendo erigida em norma de governo, e a desfaçatez e a falta de vergonha imperando sem limites em todos os escalões e em todos os âmbitos do governo, dos três governos, nos vários níveis e instâncias de governança nacional.
Como diria alguém: uma vergonha!
Lamento, sinceramente, de ter de publicar novamente este trabalho.
Paulo Roberto de Almeida


Os doze trabalhos da boa governança 
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)

Nestes tempos em que atitudes éticas e posturas responsáveis são, não apenas necessárias mas, absolutamente indispensáveis para guiar a conduta dos homens públicos (e mulheres idem) e para inspirar, pelo exemplo, os que estão empregados nesse imenso setor do terciário que tem a ver com a chamada res publica, decidi retomar reflexões antigas (mas nem por isso menos úteis) e alinhar num papel – eufemismo para a tela do computador – algumas simples regras de boa administração dessa “coisa pública”. As reflexões surgiram em primeiro lugar no contexto da transição política no Brasil – área na qual outras considerações já foram consolidadas em meu livro A Grande Mudança: consequências econômicas da transição política no Brasil (São Paulo: Códex, 2003) – mas elas podem ser vistas como “atemporais” e não determinadas geograficamente.
Como só consegui chegar até uma dúzia delas, pensei que poderia identificar o conjunto por meio de um título “apelativo”, que relembrasse o antigo herói da mitologia grega. Não é obviamente o caso, mas o evocativo parece suscetível de transmitir uma idéia aproximada das reais dificuldades que podem ser encontradas na implementação dessas tarefas da governança. Com efeito, os maiores problemas que se apresentam, nos dias de hoje, no processo de melhoria nas condições de vida e bem-estar das populações, em países ricos ou pobres, não são aqueles derivados da falta de recursos ou de meios técnicos para sua solução, mas provêm, tão simplesmente, da incompetência institucional.
Estes doze novos “trabalhos” podem ser vistos, pelo seu lado de administração da informação, como uma estratégia para a conquista consensual, ou para o convencimento, da maioria, não como uma forma de imposição da vontade do dirigente político. Pelo seu lado de “conselhos” ao dirigente, eles podem ser colocados naquela mesma cesta de recomendações “úteis” ou de observações sobre as técnicas de comando que, desde Kautylia e Maquiavel, vêm enriquecendo a literatura da governança política, sem que se saiba, exatamente, se elas provocam uma melhoria real na qualidade da gestão sobre os homens (e mulheres). Não me parece que elas tenham sido testadas ou controladas por algum órgão gestor dos orçamentos e da moralidade públicas, mas isso não representa um impedimento a que algum voluntário queira fazer alguma verificação empírica sobre sua consistência e adequação intrínseca às tarefas atuais de uma boa governança. Afinal de contas, o teste do pudim, como se diz, vem no ato de comê-lo.
As regras não estão concebidas em intenção de algum serviço estatal particular, nem foram pensadas como devendo aplicar-se exclusivamente a algum país determinado, mas o autor não tem nada contra, muito pelo contrário, a que cada um faça a leitura geográfica que bem lhe aprouver. Em todo caso, sem pretender a que estas regras sejam seguidas, ou sequer consideradas, por dirigentes concretos, num certo país de índole cordial e receptivo a modas as mais bizarras, transcrevo aqui os meus novos trabalhos para algum candidato a Hércules da burocracia deste começo de século 21. Bom proveito aos que pretenderem delas utilizar-se (não pretendo cobrar copyright pelo seu uso).
Apresento primeiro um resumo “literário” desses “novos trabalhos de Hércules”, para depois tecer considerações mais elaboradas sobre cada um deles:

1)    Mais administração para resultados, menos declarações genéricas;
2)    Antes a seleção pelo mérito do que a escolha corporativa;
3)    Prefira uma ação sobre os fins, antes que sobre os meios;
4)    Melhor proteger a manada, mesmo que tenha de sacrificar algum animal;
5)    Entre a focalização e a universalização, fique com ambas;
6)    Auto-publicidade é uma forma perversa de gastar recursos públicos,
7)    Conselheiros do príncipe costumam atuar por ensaio e erro: rejeite riscos;
8)    Não há conversa em “petit comité” que não escape para a “grande assembléia”;
9)    Não distribua favores restritos, coloque tudo em regime de competição;
10) O grande critério de seleção é o benefício para o maior número: abra, portanto;
11) Mercados globais sempre serão melhores do que a “preferência nacional”;
12) O desenvolvimento é uma atitude mental: não existe mais “terceiro mundo”.

Voilà: parece um pouco desordenado e obscuro, mas tudo tem uma razão de ser, segundo os critérios da eficácia social e das melhorias na governança que são os privilegiados neste ensaio reflexivo.
Vamos agora a considerações mais elaboradas sobre cada um dos “trabalhos”.

Primeiro trabalho: Esqueça Antonio Gramsci; adote Peter Drucker. 
Já passou o tempo de acreditar na validade conceitual ou mesmo prática dessa conversa de “hegemonia ideológica”: isso valia para uma fase em que a sociedade era feita de poucos homens instruídos, em que a política era oligárquica, isto é, dominada por uns poucos iluminados, na qual mesmo a ação dos partidos ditos progressistas, ou de base operária, tinha de se apoiar sobre uma liderança aguerrida, disciplinada, que detinha a chave do futuro e se dedicava a liderar os demais na conquista e na manutenção do poder. Hoje em dia, graças à disseminação da educação e aos meios de comunicação, todos são razoavelmente bem informados sobre a maior parte das tarefas governativas.
O que vale mesmo, hoje em dia, é a boa gestão da coisa pública: honestidade, transparência, responsabilidade e, sobretudo, eficácia (ou eficiência, se preferirem). Por isso mesmo, creio que o velho (mais de 90 anos em 2004) Peter Drucker, economista austríaco naturalizado americano e guru das técnicas de administração para resultados, apresenta imensas vantagens comparativas intelectuais sobre seu quase contemporâneo (menos de uma geração) Antonio Gramsci. Deixe a retórica de lado, e passe a valorizar a ação concreta na busca de resultados efetivos para os fins almejados. Você prefere se alimentar de discursos ou ver as medidas de interesse público serem implementadas de modo razoavelmente barato, efetivo e transparente?

Segundo trabalho: Não ocupe pela conquista, selecione pelo mérito.
Esta é uma derivação da tarefa anterior, no sentido em que, com a complexidade atual da administração pública, não se pode fazer uma boa gestão, com resultados pelo menos razoáveis, se se parte da idéia de que os únicos capazes para realizar os objetivos da mudança paradigmática são os iniciados e os membros da confraria, quando eles nem sempre possuem o instrumental teórico e técnico para o desempenho de funções especializadas que requerem conhecimento específico e um certo treino funcional. Por isso, pense em primeiro lugar nos resultados e atribua ao mérito a parte que lhe cabe nos processos de escolha do pessoal de apoio. Quanto aos menos preparados, faça-os se habilitarem para as novas funções, seja por esforço próprio, seja por estágios apropriados aos novos requerimentos do ofício.

Terceiro trabalho: Não siga publicitários ou comunicólogos: vá direto à questão. 
É uma velha mania das lideranças inseguras, a de se precaver quanto a possíveis iras do povo miúdo mediante campanhas otimistas, bem direcionadas quanto ao foco e quanto ao objeto (apenas que contornando o problema real). Trata-se do velho hábito de esconder os problemas concretos fazendo apelo aos meios, antes que se ocupando dos fins. Como regra de princípio, este tipo de procedimento não costuma sustentar-se por muito tempo, por isso a única recomendação possível, em casos de necessidade urgente, seria a de deixar as relações públicas de lado e se ocupar diretamente da substância das questões públicas, pela via a mais reta possível. Supondo-se, é claro, que você consiga fazer um diagnóstico razoável da questão e das formas mais adequadas de encaminhá-la.
  
Quarto trabalho: Rejeite demandas de grupos, ataque os problemas da maioria primeiro. 
O poder tem isso de incômodo que ele atrai um bando de arrivistas, oportunistas e aproveitadores de todos os matizes, cores e orientações políticas. A maior parte das moscas reais estão em busca de vantagens pessoais, mas numa sociedade organizada como a que vivemos, com incontáveis grupos de interesse e de associações de classe, o mais frequente de ocorrer é a mobilização dessas corporações organizadas que tentam convencê-lo de que seu interesse específico se confunde com o interessa da Nação como um todo. Não acredite nesse tipo de argumento: geralmente, os interesses da Nação não têm, salvo engano, representantes desinteressados que deles se podem fazer porta-vozes. Eles são difusos e, quando concretos, costumam interessar prioritariamente aos mais humildes, que não têm o hábito de se fazer ouvir nos corredores do poder.
Se você não consegue definir quais são os problemas da maioria, existe um modo muito prático e simples de encaminhar esse tipo de diagnóstico: consulte um desses anuários de desenvolvimento social – do PNUD ou do Banco Mundial, por exemplo – e veja as tabelas comparativas de serviços básicos (saneamento, serviços públicos etc.), os indicadores de saúde (sobretudo os fatores de morbidade) e de educação, bem como os resultados de testes de qualidade setorial. Eles darão um retrato imediato de como o seu país se situa na escala da (in)felicidade humana, o que se traduz imediatamente num programa de prioridades governamentais.
  
Quinto trabalho: Se tiver de definir setores, faça as políticas mais horizontais possíveis.
Nem sempre é fácil escapar de demandas setoriais: elas são o próprio de sociedades complexas que definem métodos próprios de encaminhamento de problemas técnicos, o que necessariamente envolve temas de natureza restrita a determinados grupos da sociedade. Dessa forma, algumas políticas serão dirigidas a alguns setores apenas da sociedade, ainda que com propósitos generalizantes.
Mas, não se deixe arrastar pelo falso debate entre, de um lado, a universalização dos serviços públicos e, de outro, a focalização das medidas de apoio governamental em favor de uma determinada categoria de cidadãos. Sendo os recursos escassos, e as pessoas desigualmente dotadas por motivos de berço ou de formação, nem sempre é possível atender a todos ao mesmo tempo, daí uma inevitável seleção dos beneficiários desses recursos a partir de alguns simples critérios de escolha por prioridades visíveis. As políticas públicas sempre serão, ao mesmo tempo, universais e focalizadas, mas o ideal é que a definição dos setores não seja excludente.
Esse debate sempre surge a propósito das políticas setoriais, das quais a industrial está sempre na linha de frente para receber algum tratamento favorecido por parte do governo. De fato, a experiência histórica indica que é na indústria que os ganhos derivados da inovação técnica e tecnológica, e portanto os aumentos de produtividade, costumam ter efeitos em cadeia e impactos redistributivos sobre o conjunto da sociedade, cabendo portanto aos governos estimular o progresso industrial. Este é um fato: mas cabe portanto aos governos estimular o progresso técnico da indústria como um todo, não necessariamente uma determinada indústria em particular, ainda que ela possa parecer estratégica ou “fundamental” para a competitividade internacional do país.
A experiência histórica é ainda mais conclusiva a respeito dos ganhos gerais para a economia, em todos os setores, derivados da capacitação em recursos humanos. Como regra de princípio, portanto, prefira as políticas industriais que atuam sobre as condições de inovação tecnológica do conjunto da sociedade, e deixe que ela mesma introduza os aperfeiçoamentos industriais que se revelarem úteis para o bem-estar social.

Sexto trabalho: Não acredite em propaganda governamental, deixe que os meios de comunicação informem sobre suas realizações.
Cada macaco no seu galho: o governo é pago para trazer segurança ao conjunto dos cidadãos, empreender obras públicas de mais longa maturação, criar as condições ideais para que todos possam exercer seus talentos com um mínimo de igualdade de chances na partida competitiva, o que implica em investimentos de educação e saúde, com alguma proteção seletiva aos menos favorecidos. Fazendo isso bem, os próprios governados se encarregarão de divulgar e “propagandear” o que o governo faz de bom.
Isso de publicidade institucional serve apenas para dar dinheiro fácil àqueles mesmos que devem viver de sua capacidade de “vender” algo de útil do ponto de vista da demanda do consumidor: entre duas opções, pode-se escolher ficar com a mais bem vendida do ponto de vista da publicidade, não necessariamente a de melhor qualidade ou menor preço, mas isso é um problema de microeconomia do bem-estar que será resolvido pela liberdade de escolha do consumidor. O governo disponibiliza “bens públicos”, que normalmente não necessitam de campanhas publicitárias, pois seus critérios de escolha ou de preço não são os mesmos da economia privada. Quanto ele tiver de fazer alguma campanha de informação, não faltarão meios adequados para isso. Deixe que os meios de comunicação se ocupem dos demais “produtos” governamentais: é mais barato e mais honesto.

Sétimo trabalho: Pratique a arte de escalpelar acadêmicos, ou melhor ignore-os. 
Conselheiros do príncipe costumam ser idealistas, sonhadores, ingênuos e, no geral, pouco eficientes, na medida em que eles pretendem se ocupar de todas as esferas do conhecimento humano e acabam tendo uma visão superficial sobre cada uma delas, numa era manifestamente complexa e diversificada. Melhor, assim, confiar em tecnocratas especialmente treinados para elaborarem diagnósticos e propostas de ação em seus campos de ação respectivos. Eles costumam ser mais práticos e são bem mais baratos, na medida em que qualquer proposta de acadêmicos bem intencionados custa rios de dinheiro: estes estão sempre querendo revolucionar o mundo ou provar alguma teoria, o que necessariamente provoca despesas desproporcionais do ponto de vista dos minguados orçamentos públicos.
  
Oitavo trabalho: Não aceite pequenos conluios, acabará aceitando os grandes também. 
Os grandes princípios éticos são geralmente agitados em período eleitoral e depois esquecidos na fase prática da governança. Aí é que começa o perigo, pois sempre haverá alguém disposto a “provar” que “este” problema é mais “urgente” do que outro ou que ele requer “medidas especiais” de implementação. Os problemas do diálogo para a busca de soluções tópicas a questões concretas também surgem nesse momento, pois que se deve passar da fase das declarações gerais destinadas ao grande público para a de soluções técnicas a problemas localizados.
As “pequenas” soluções de facilidade, como aquele mecanismo simples destinado a financiar, de modo “indolor”, determinada atividade pública, podem transformar-se, quando menos se espera, em grandes problemas, que só trazem dificuldades aos governantes. Por isso mesmo, pense duas vezes quando for confrontado, ou apresentado, a algum expediente “inovador” no campo da governança: geralmente vai se descobrir que ele já foi apresentado antes (e rejeitado por “heterodoxo”, digamos assim) e que pode provocar, numa análise mais acurada de custo-benefício, grandes despesas depois. 

Nono trabalho: Regule pela concorrência, não pelo monopólio.
O princípio da concorrência é uma dessas coisas mais bem aceitas, no plano da teoria, e mais denegadas no terreno da prática. A competição entre muitos ofertantes costuma redundar em uma certa anarquia de situações, nos mercados de bens e serviços, o que pode obviamente perturbar a paz de espírito de algum dos competidores. Ela reduz os ganhos de todos os ofertantes, obriga todos eles a buscar cada vez mais inovações incrementais que diferenciem o seu produto do do concorrente e, pasmem, traz maior volume de opções e menores preços aos consumidores. Ideal no papel, não é mesmo?
Na prática, os concorrentes estão sempre procurando eliminar rivais, buscam com eles formar cartéis ou, no limite, procuram a situação “ótima” da reserva de mercado com pouco ou nenhum risco de concorrência. Governos costumam ser muito mais sensíveis a pleitos de produtores organizados do que aos desejos de consumidores desorganizados, daí o possível surgimento de normas e regulamentos que limitam, de fato, a competição. Os exemplos são muitos e não é preciso delongar-se neles aqui, bastando com citar, por exemplo, o caso da telefonia. Nesta área quanto mais “anarquia” concorrencial, melhor para os usuários, desde que observadas certas regras de fiabilidade no serviço.
Em muitas outras áreas, inclusive e também em determinados serviços públicos, a melhor forma de corrigir distorções de mercado derivadas da baixa qualidade da oferta seria ampliar as franquias para a exploração dos mercados de bens e serviços. Por que, por exemplo, só se pode ter uma única grande estatal explorando pétroleo, refinando o produto e distribuindo seus derivados? (Sei que já não mais ocorre esse monopólio, mas ele foi durante muito tempo defendido não se sabe bem em nome de quais princípios de economia pública.) Por que um presídio tem necessariamente de ser operado diretamente pela autoridade pública, em lugar de passar por uma espécie de “leilões de presos”, regime no qual ofertantes passam a “comprar” condenados do setor judicial ao melhor preço de mercado, para uma prestação determinada de serviços – guarda, reeducação, eventual reinserção no mercado de trabalho – como aliás já ocorre hoje no setor de saúde? São provavelmente idéias ousadas, mas que podem despertar algum desejo de se ter mais concorrência em serviços que se considera como “exclusivos do Estado”.

Décimo trabalho: Analise os efeitos distributivos de cada medida proposta.
Não há nenhuma novidade no que vai dito aqui, mas geralmente se tende a esquecer que a regulação de determinadas atividades públicas tem por objetivo ampliar a disponibilidade de bens e serviços aos cidadãos, não arrecadar mais recursos para o próprio Estado. Os governos constituídos – em todos os níveis – se tornaram as mais poderosas máquinas de arrecadação de recursos que já se conheceram em toda a história, deixando aos contribuintes (empresas e cidadãos) apenas as opções de pagar ou evadir. Muitos recorrem a diferentes mecanismos de evasão ou elisão fiscais, o que justifica uma ampliação ainda maior dos investimentos públicos nos meios (controle da arrecadação, processos, punição etc.), antes que nos fins, eternizando assim o circulo vicioso que consiste em ver o governo trabalhando para o próprio governo.
Quando se fala em analisar os efeitos distributivos de uma determinada medida, não se está obviamente recomendando o distributivismo compulsivo: ele geralmente é demagógico e economicamente desarticulador das atividades produtivas, já que costuma atuar sobre os estoques de riquezas existentes, antes que sobre os fluxos que poderiam ser criados a partir do estímulo contínuo a novas atividades econômicas potenciais. Efeitos distributivos são justamente aqueles que derivam de uma maior capilaridade social dos investimentos públicos, que devem atingir os setores mais carentes relativamente, com vistas a integrá-los num mercado mais amplo de bens e serviços de amplo consumo. Por exemplo: o contrário ocorre com determinadas políticas governamentais – como a PAC da União Européia – de subsídios públicos na área agrícola, já que não se tem, de fato, insegurança alimentar e o dinheiro canalizado é subtraído de utilizações alternativas que poderiam ter maior impacto sobre o emprego e a renda de um maior número de cidadãos.
  
Décimo-primeiro trabalho: Entre um sistema aberto ao mundo e outro estritamente nacional, prefira o primeiro.
Não há mais nenhuma diferença, hoje, entre mercados nacionais e mercados internacionais, pelo menos na vasta gama de produtos e serviços uniformes (ou indiferenciados) que são consumidos pelos cidadãos, inclusive em áreas aparentemente exclusivas da “cultura” nacional como podem ser os serviços educacionais ou de lazer. Ao contrário, quanto maior a escala de mercado, maior a chance que o seu “produto nacional” possa ser também consumido em outros países, aumentando, portanto, suas vantagens de escala e a produtividade dos fatores de produção. Reservas de mercado, leis do “similar nacional” são cerceadoras da preferência dos consumidores e só servem para consagrar pequenos monopólios ou grandes cartéis que não ajudam em nada a elevação dos padrões de competitividade da economia nacional nos mercados globais, que hoje constituem a característica essencial do mundo interdependente em que vivemos.
Por isso mesmo não acredite quando lhe disserem que “vantagens comparativas” são uma invenção do século 18, que não se aplicam mais ao mundo do conhecimento em que se transformou a economia moderna. O princípio continua mais válido do que nunca, inclusive e principalmente nas novas áreas de atividade produtiva, como na já referida economia do conhecimento. Aliás, quem primeiro falou em “inteligência” como fator de produção, foi um contemporâneo brasileiro de David Ricardo, José da Silva Lisboa, num tempo em que todos eram “filósofos morais” e não economistas. Mercados amplos apresentam possibilidades muito maiores do que mercados cativos ou nacionais, daí uma preocupação constante em trabalhar em regimes abertos aos talentos individuais, antes do que fechados aos interesses de pequenos grupos.

Décimo-segundo trabalho: Acabe com dogmas e restrições mentais: o Brasil não é periferia. 
Proposição ousada essa, pois não? Claro que existem economias “centrais”, que “extraem” recursos e mais valia de regiões ditas “periféricas”, mas isto se dá em qualquer sistema ou sociedade, inclusive num âmbito estritamente familiar, por exemplo. Quem organiza uma determinada atividade, distribui custos e concentra benefícios, mas para isso é preciso competência ou autoridade. Antigamente valia a autoridade paterna ou a da conquista; hoje em dia, elas têm cada vez menos capacidade de domínio ou prevalência, passando a ser substituídas pela capacitação própria em organizar sistemas complexos de produção e distribuição de bens e serviços. Por outro lado, aquela coisa de “primeiro mundo” ou “terceiro mundo” simplesmente acabou com o desaparecimento do segundo.
Com efeito, poucos se dão conta que a geopolítica mudou e com ela a relação que os diferentes atores de um mesmo mundo mantêm entre si: já não se está mais levando em consideração a atitude política que esses atores possam ter em relação a algum grande projeto organizador da humanidade – capitalismo, socialismo, essas coisas velhas –, mas apenas e tão simplesmente a atitude que se vai adotar em relação aos desafios do mundo global. Nesse sentido, o problema do desenvolvimento é de fato uma questão de atitude mental, pois tornaram-se peremptas aquelas teorias “conspiratórias” que faziam da exploração de alguns (ou de muitos, contavam algumas histórias) a condição da riqueza e do progresso de outros (os poucos).
Hoje em dia, provavelmente 90% do estoque acumulado de todo o conhecimento humano está livremente disponível para consulta, absorção, cópia e transformação em caráter irrestrito, inclusive de forma cada vez mais acessível nos sistemas abertos e online. Ou seja, não há mais limitação técnica – salvo no sentido estritamente material – ao aproveitamento dessas oportunidades de enriquecimento pessoal e coletivo, o que deveria, normalmente, diminuir as barreiras à entrada de mais sociedades em patamares mais avançados de bem-estar e conforto material.
O fato de que essa “convergência” de padrões de vida tenha alcançado, até aqui, uma fração restrita da humanidade, não se deve a nenhum complô desses países “ricos” no sentido de impedir que sociedades mais pobres conheçam padrões mais avançados de bem-estar, mas se explica pela incapacidade gerencial, ou de governança, das sociedades do chamado “terceiro mundo”. Terminando com nosso próprio exemplo nacional: todos os problemas brasileiros se devem à nossa própria incapacidade em solucioná-los dentro dos limites do sistema nacional, eventualmente com aproveitamento das experiências e conhecimentos já disponíveis a partir da trajetória das sociedades mais avançadas. Nenhum deles tem origem no exterior e eles não terão solução sem uma concentração de esforços no próprio país. Não acredita?: tente identificar uma “tragédia” nacional que se deve exclusivamente a causas externas. Se encontrar, gostaria de ser avisado…

Paulo Roberto de Almeida (pralmeida@mac.com)
[1º versão: Washington, 1º de setembro de 2003]
[Revisão: Brasília, 23 de fevereiro de 2004] 

Proliferacao nuclear: um texto PRA de 2004


Armas de Destruição em Massa
Discurso do presidente Bush em 11/02/04 implicações para o Brasil.

Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org)
13 de fevereiro de 2004

Resumo: O presidente George Bush pronunciou, no dia 11/02/04, importante discurso de política externa e de segurança estratégica, centrado no tema das armas de destruição em massa. Chamo a atenção para alguns trechos, que poderiam ter implicações para o Brasil igualmente, inclusive no plano comercial.

No dia 11 de fevereiro de 2004, o presidente americano George Bush efetuou, na National Defense University, em Washington, importante pronunciamento tocando em questões centrais da política externa dos Estados Unidos, notadamente em matéria de segurança nacional, com especial ênfase na questão das armas de destruição em massa (ADM), que poderiam ser apropriadas por estados vilões ou grupos terroristas, que então as poderiam usar enquanto “armas de primeira instância”. Creio ser relevante destacar alguns trechos, que podem apresentar implicações para a política internacional do Brasil.
Listando uma série de iniciativas que os EUA estão adotando, com outros países aliados ou no âmbito do CSNU, ele indicou a recente constituição de um grupo aberto, Proliferation Security Initiative para coibir qualquer comércio, transação ou transferência de materiais letais nessa categoria de ADM. Os países até agora integrants são os seguintes: Austrália, França, Alemanha, Itália, Japão, Países Baixos, Polônia, Portugal, Espanha, Reino Unido, Canadá, Noruega e Cingapura. O grupo está aberto a outros países desejosos de participar nesses esforços de contenção da proliferação nuclear.
A PSI pretende trabalhar numa lacuna deixada pelo Tratado de Não-Proliferação Nuclear (ao qual o Brasil aderiu em 1996, depois de 30 anos de recusa). Como indicou Bush, países membros do TNP podem produzir, sob a cobertura dos programas nucleares civis, material nuclear que poderia ser usado para fabricar bombas.
Bush disse que “O mundo precisa criar um sistema seguro e fiável de dispor de usinas nucleares civis sem agregar ao perigo da proliferação de armas. Os principais exportadores de material nuclear devem assegurar que os estados tenham acesso a um custo razoável ao combustível para reatores civis, mas à condição que esses estados renunciem ao enriquecimento e ao reprocessamento. O enriquecimento e o reprocessamento não são necessários para as nações que estão buscando dominar a energia nuclear para fins pacíficos.”
Ele propõe então que os 40 países membros do Grupo de Supridores Nucleares (do qual o Brasil faz parte) passem a recusar a venda de equipamento e tecnologias de enriquecimento e de reprocessamento para todo estado que ainda não possuem usinas completas, e funcionando, de enriquecimento e reprocessamento. Bush recomenda que o trabalho de supervisão seja conduzido através da AIEA, em especial através do cumprimento estrito do Protocolo adicional (ao qual o Brasil não aderiu), que prevê controle mais amplo e colaboração mais estreita dos países nos sistemas de inspeção. Ele quer criar uma condicionalidade que faria com que apenas os estados aderentes a esse protocolo adicional passariam a ter acesso a materiais e tecnologia nuclear, ademais de um comitê especial na AIEA para tatrar dessas inspeções adicionais.
Embora o alvo imediato de Bush seja manifestamente o Irã, e suas tentativas de ampliação de um já ambicioso programa nuclear civil (em fase de escritínio pela AIEA), creio que a nova postura do governo americano – e possivelmente de muitos aliados, igualmente – apresenta algumas implicações importantes para o Brasil, às quais já deverá ter atentado o Itamaraty. Por razões de concisão cito apenas duas.
No plano da segurança estratégica e da tecnologia brasileira de enriquecimento nuclear, pode-se lembrar que o Brasil encontra-se sob pressão, da AIEA e dos EUA, para submeter sua planta às inspeções adicionais desse órgão e para aderir ao protocolo adicional. Ainda que considerações de soberania nacional possam objetar a que a tecnologia específica brasileira seja “investigada” por esses agentes externos, uma atitude não cooperativa do Brasil nessa área poderá trazer custos políticos, diplomáticos e talvez até militares consideráveis, em direção ao futuro. Uma postura aberta nos colocaria na Proliferation Security Initiative e nos daria um status diferente nessa área.
No plano econômico, uma atitude reticente do Brasil poderia nos levar a um isolamento comercial nos dois sentidos: na aquisição (necessária) de equipamentos para nossas plantas nucleares e na venda (prevista para o futuro) de urânio enriquecido com tecnologia brasileira. Se houver uma resolução do CSNU a esse respeito, os mercados externos nos estariam fechados. Estas são as opções que se nos apresentam a partir do discurso do presidente americano. Como o Brasil não pretende dotar-se de ADM, a cooperação com a PSI pode ser a mais indicada do ponto de vista do interesse nacional.

Paulo Roberto de Almeida (13/02/2004)

Associacionismo: novo curso de Paulo Roberto de Almeida

Como no caso do post anterior, este também se origina de uma entrevista-gravada para curso do Instituto Legislativo do Senado Federal para a formação de quadros. Ou melhor: o texto foi preparado antecipadamente para que eu desse essa entrevista, sem que eu o lesse exatamente como foi escrito.
Aqui está a ficha do trabalho: 

1198. “Associacionismo”, Brasília, 27 jan. 2004, 6 p. Respostas a questões colocadas no quadro do programa Conexão Mundo – ILB, TV do Senado Federal, Programa 2: Conceitos Fundamentais. Para resumo e exposição oral. Gravação diferiu substancialmente do texto preparado. Vídeo disponível em: http://www.senado.gov.br/sf/senado/ilb/medias/Videos_Educacionais/Conexao_Mundo/conexao03c.wmv

Associacionismo

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 28 de janeiro de 2004
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)

1) O que é o associacionismo internacional?
O associacionismo é a constituição de entidades intergovernamentais ou mesmo organizações privadas, mas de cunho internacional, ou regional, que se destinam a resolver determinados problemas técnicos ou facilitar o trânsito e o nível de bem estar das pessoas. É um movimento relativamente recente na história da humanidade, já que surgiiu em meados do século 19, para encaminhar determinados problemas práticos, como o trânsito e as comunicações entre países vizinhos.
De fato, o fenômeno surgiu quando países europeus precisavam compatibilizar suas normas técnicas, ou facilitar o ingresso em seu território de linhas ferroviárias ou linhas de comunicação telegráfica. As primeiras “uniões internacionais” surgiram assim para estender vias férreas ou linhs telegráficas entre dois ou mais países. Uma das velhas uniões internacionais é, assim, a União Internacional de Comunicações, que surgiu em meados do século 19 como União Telegráfica. Depois tivemos a União Postal, também uma das mais velhas organizações internacionais existentes, logo em seguida a União para a Proteção da Propriedade Industrial e assim por diante.
Também tivemos, ainda no século 19, organizações da própria sociedade civil, como a Cruz Vermelha, de cunho humanitário, criada para humanizar o tratamento de feridos e dos prisioneiros de guerra, por iniciativa do suiço Henry Dunant, não por acaso um cidadão de país neutro, voltado para a solução pacífica dos conflitos. Ainda no âmbito da sociedade civil, podemos citar a Câmara Internacional de Comércio, com sede em Paris, constituída para facilitar os negócios privados e também para dirimir possíveis conflitos entre parceiros, mediante o uso de cláusulas de arbitragem comercial, um expediente muito útil se se pensa no tempo que leva uma solução tipicamente judicial.
A primeira organização especificamente política se deu no âmbito parlamentar, ainda no final do século 19, mas a que verdadeiramente começou a mudar o panorama das relações internacionais foi a Organização Internacional do Trabalho, surgida em 1919, no âmbito da então Sociedade das Nações, antecessora da ONU. A OIT também procurou harmonizar as relações de trabalho, buscando conciliar os interesses de empregadores e empregados. Ela continua a ter características especiais, uma vez que apresenta uma estrutura tri-partite, com a representação dos governos, ademais daquelas duas categorias de agentes econômicos.
Na mesma conferência de Versalhes, em 1919, foi constituído o embrião do que viria a ser, já no âmbito da ONU, a Corte Internacional de Justiça, voltada unicamente para conflitos entre Estados que aceitem sua jurisdição. Ainda antes do final da Segunda Guerra Mundial, foram constituídas outras organizações internacionais que logo em seguida viriam integrar a estrutura da ONU, ainda que sob estatutos diferentes. Podemos assim citar o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, por ocasião da famosa conferência de Bretton Woods, em 1944, que atualmente ficam em Washington, a Organização Mundial de Alimentos e Agricultura, a FAO, com sede em Roma, e a OACI, organização da aviação civil internacional, localizada no Canadá.
Com a constituição da ONU, na conferência de São Francisco em 1945, o associacionismo internacional conheceu notável expansão e organização, uma vez que a constituição de organismos especializados para cooperação entre Estados soberanos passou a ser a forma normal do relacionamento entre estados e de solução de problemas práticos que ultrapassam as fronteiras nacionais: comércio, meio ambiente, normas industriais, acordos recíprocos em matéria de transportes aéreos, comunicações, cooperação financeira e monetária, enfim, as mais diversas matérias técnicas e de defesa do consumidor, e mesmo dos direitos humanos, passaram a ser negociados e adotados como acordos multilaterais, substituindo, portanto, os antigos acordos bilaterais que regiam as relações entre os países.

2) O que ele representa para a sociedade internacional?
Basicamente duas coisas: por um lado, passar da fase de concorrência, competição ou mesmo animosidade nas relações entre Estados, para a de cooperação e de solução conjunta de problemas comuns; por outro, substituir as dezenas, talvez centenas de acordos puramente bilaterais para regular essas matérias entre os muitos países da comunidade internacional, para um quadro multilateral, composto de regras comuns e algumas disposições especiais, aos quais todos os Estados podem aderir, com base nos tradicionais princípios de nação-mais-favorecida, isto é, tratamento não discriminatório, e reciprocidade, ou seja, vantagens e concessões equivalentes, aind que não absolutamente simétricas.
Trata-se de enorme progresso no plano das relações internacionais, e também de uma evolução natural e necessário do direito internacional, já que o associacionismo pode não apenas criar um meio ambiente uniforme à aplicação de regras, que escapam assim do arbítrio de decisões de países individuais e de mudanças intespetivas, como prover cooperação aos países economicamente frágeis, que não conseguem, eles mesmos, implantar normas de segurança, de saúde, de bem estar da sua população sem essa assistência dos membros mais avançados da comunidade internacional.

3) Como surgiu?
Da necessidade da adoção de padrões comuns, para dois países se comunicarem, por exemplo, mediante linhas ferroviárias ou de telégrafo. Ou então da necessidade de serem respeitados, mutuamente, direitos patrimoniais, como as patentes, que dispunham de proteção no plano territorial nacional mas não necessariamente em outros países. Ou ainda, da necessidade de se combaterem determinadas epidemias, afetando homens, plantas ou animais, que não respeitam fronteiras, ou para combater a criminalidade trans-fronteiriça. Enfim, os motivos foram vários.
Associações nacionais se reuniram com suas congêneres de outros países para constituir uma união em defesa ou pela promoção de tal ou qual área técnica, ou então chefes de estado tomam a iniciativa de convocar conferências diplomáticas para resolver determinados problemas percebidos como importantes, nos campos da política ou da economia internacional. Por vezes indivíduos abnegados, como o suíço Henry Dunant, quer minorar o sofrimento humano, e propõe a criação de um órgão neutro, apolítico e não-estatal para cuidar de feridos e prisioneiros de guerra. Enfim, são várias as formas e motivações, mas todas as iniciativas têm em comum o desejo de estabelecer cooperação transfronteiriça para resolver problemas práticos.

4) Que características marcam o associacionismo?
Uma das consequências do crescimento do associacionismo, que está indissolivelmente ligado ao multilateralismo, é a diminuição relativa da soberania absoluta dos Estados, que passam a compartilhar decisões com outros Estados ou então delegam poderes a um órgão internacional, geralmente respondendo a uma assembléia de estados (como acontece na maior parte dessas uniões ou pode ocorrer no caso do Conselho de Segurança, que não é, entretanto, absolutamente igualitário).
Na maior parte das organizações assim formadas, vale o princípio de um pais um voto, ou seja, cada membro tem iguais direitos e obrigações. Em algumas, porém, o poder decisório pode depender da participação no capital constitutivo, como numa sociedade comercial, o que é o caso do FMI e do Banco Mundial, por exemplo.
Em qualquer hipótese, os membros, sócios ou afiliados decidem conjuntamente determinadas matérias que, ou podem obrigar a todos os membros igualmente, ou então isentar alguns deles de deteminadas disposições, como por exemplo os países em desenvolvimento, que podem receber concessões comerciais de países mais avançados sem ser necessariamente obrigados a reciprocar com vantagens equivalentes. Este último princípio se chama não-reciprocidade, que também caracteriza a sociedade internacional, feita de países ou membros desigualmente dotados, como aliás ocorre no plano nacional.

5) Qual o papel do indivíduo nesse processo?
Há um movimento contraditório: por um lado, o associacionismo pretende superar as diferenças individuais para promover o bem comum de todos os membros da comunidade internacional, por outro lado, ele o faz, sem dúvida alguma, para melhorar o bem estar de todos os indivíduos. Isso é particularmente evidente no campo humanitário, na defesa dos direitos humanos, da igualdade de gêneros, da promoção da pessoa humana sem diferenças raciais ou religiosas, em especial das minorias e comunidades mais frágeis. Nesse terreno, destacam-se as organizações não estatais, e aqui o papel individual é altamente relevante, pois que se trata de iniciativas tomadas por indivíduos generosos, sinceramente comprometidos com o bem estar da espécie humana (e em muitos casos dos animais e do meio ambiente).
Um indicador simbólico mostra a importância do indivíduo: os prêmios Nobel da paz, distinguindo grandes personalidades que trabalharam em favor da paz, da promoção dos direitos humanos, da defesa de minorias em perigo, geralmente mediante associações não-governamentais criadas por eles mesmos.

6) Qual o poder dos novos atores, diferentemente dos estados?
As chamadas ONGs, junto com as empresas multinacionais, são certamente entidades relevantes no cenário internacional contemporâneo, geralmente atuando por pressão moral, por campanhas de opinião pública, ou por meio da publicidade e promoções comerciais, como é o caso das grandes empresas, que também atuam por meio de fundações humanitárias, como no caso de Bill Gates, provavelmente o homem mais rico do mundo e que dedica parte de sua fortuna ao combate de epidemias em países pobres.
Esse poder paralelo ao dos Estados tende a crescer, o que é também um dos resultados da globalização, ou seja, do aumento mundial dos intercâmbios, em todos os níveis. Teoricamente, em pouco tempo, grande parte da humanidade poderá estar conectada simultanemente através da Internet, o que hoje ainda ocorre de forma muito restrita ou limitada a países e regiões mais avançados. Trata-se de um papel multiplicador de opiniões, informações e ações concretas em favor de determinadas causas globais que não tem prcedente histórico e que tende a aumentar cada vez mais.

7) Que mudanças, na prática, o associacionismo provoca na vida das pessoas?
Ele permite superar o horizonte citadino ou mesmo nacional, para colocar em contato pessoas desconhecidas em cantos diversos do planeta, mas que têm objetivos comuns em alguma causa nobre ou para resolver algum problema prático. Ele reune países, associações de classe, grupos de interesse num mesmo foro, que não precisa hoje ser no mesmo local físico, em busca de uma solução aceitável para todos ou para a maioria na resolução de alguma questão que afeta o conjunto dos envolvidos naquela área ou temática, ou potencialmente o conjunto da humanidade em certos temas globais (direitos humanos, meio ambiente, comércio internacional, etc).
Esse processo passa a dar a cada indivíduo a consciência de pertencer ao mesmo gênero universal, ou a uma mesma comunidade de interesses, ultrapassando, portanto, barreiras físicas ou políticas que sempre separaram os homens até um período ainda recente na história da humanidade. Estamos assistindo ao surgimento de uma comunidade verdadeiramente global, e isso se deve em grande medida ao crescimento do associacionismo.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 28 de janeiro de 2004