Como no caso do post anterior, este também se origina de uma entrevista-gravada para curso do Instituto Legislativo do Senado Federal para a formação de quadros. Ou melhor: o texto foi preparado antecipadamente para que eu desse essa entrevista, sem que eu o lesse exatamente como foi escrito.
Aqui está a ficha do trabalho:
Associacionismo
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 28 de janeiro de 2004
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)
1) O que é o associacionismo
internacional?
O associacionismo é a constituição de entidades intergovernamentais ou mesmo organizações privadas, mas de cunho internacional, ou regional, que se destinam a resolver determinados problemas técnicos ou facilitar o trânsito e o nível de bem estar das pessoas. É um movimento relativamente recente na história da humanidade, já que surgiiu em meados do século 19, para encaminhar determinados problemas práticos, como o trânsito e as comunicações entre países vizinhos.
De fato, o fenômeno surgiu quando países europeus
precisavam compatibilizar suas normas técnicas, ou facilitar o ingresso em seu
território de linhas ferroviárias ou linhas de comunicação telegráfica. As
primeiras “uniões internacionais” surgiram assim para estender vias férreas ou
linhs telegráficas entre dois ou mais países. Uma das velhas uniões
internacionais é, assim, a União Internacional de Comunicações, que surgiu em
meados do século 19 como União Telegráfica. Depois tivemos a União Postal,
também uma das mais velhas organizações internacionais existentes, logo em
seguida a União para a Proteção da Propriedade Industrial e assim por diante.
Também tivemos, ainda no século 19, organizações da
própria sociedade civil, como a Cruz Vermelha, de cunho humanitário, criada
para humanizar o tratamento de feridos e dos prisioneiros de guerra, por
iniciativa do suiço Henry Dunant, não por acaso um cidadão de país neutro,
voltado para a solução pacífica dos conflitos. Ainda no âmbito da sociedade civil,
podemos citar a Câmara Internacional de Comércio, com sede em Paris,
constituída para facilitar os negócios privados e também para dirimir possíveis
conflitos entre parceiros, mediante o uso de cláusulas de arbitragem comercial,
um expediente muito útil se se pensa no tempo que leva uma solução tipicamente
judicial.
A primeira organização especificamente política se deu
no âmbito parlamentar, ainda no final do século 19, mas a que verdadeiramente
começou a mudar o panorama das relações internacionais foi a Organização
Internacional do Trabalho, surgida em 1919, no âmbito da então Sociedade das
Nações, antecessora da ONU. A OIT também procurou harmonizar as relações de
trabalho, buscando conciliar os interesses de empregadores e empregados. Ela
continua a ter características especiais, uma vez que apresenta uma estrutura
tri-partite, com a representação dos governos, ademais daquelas duas categorias
de agentes econômicos.
Na mesma conferência de Versalhes, em 1919, foi
constituído o embrião do que viria a ser, já no âmbito da ONU, a Corte
Internacional de Justiça, voltada unicamente para conflitos entre Estados que
aceitem sua jurisdição. Ainda antes do final da Segunda Guerra Mundial, foram
constituídas outras organizações internacionais que logo em seguida viriam
integrar a estrutura da ONU, ainda que sob estatutos diferentes. Podemos assim
citar o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, por ocasião da famosa
conferência de Bretton Woods, em 1944, que atualmente ficam em Washington, a
Organização Mundial de Alimentos e Agricultura, a FAO, com sede em Roma, e a
OACI, organização da aviação civil internacional, localizada no Canadá.
Com a constituição da ONU, na conferência de São
Francisco em 1945, o associacionismo internacional conheceu notável expansão e
organização, uma vez que a constituição de organismos especializados para
cooperação entre Estados soberanos passou a ser a forma normal do
relacionamento entre estados e de solução de problemas práticos que ultrapassam
as fronteiras nacionais: comércio, meio ambiente, normas industriais, acordos
recíprocos em matéria de transportes aéreos, comunicações, cooperação
financeira e monetária, enfim, as mais diversas matérias técnicas e de defesa
do consumidor, e mesmo dos direitos humanos, passaram a ser negociados e
adotados como acordos multilaterais, substituindo, portanto, os antigos acordos
bilaterais que regiam as relações entre os países.
2) O que ele representa para a
sociedade internacional?
Basicamente duas coisas: por um lado, passar da fase de
concorrência, competição ou mesmo animosidade nas relações entre Estados, para
a de cooperação e de solução conjunta de problemas comuns; por outro,
substituir as dezenas, talvez centenas de acordos puramente bilaterais para
regular essas matérias entre os muitos países da comunidade internacional, para
um quadro multilateral, composto de regras comuns e algumas disposições
especiais, aos quais todos os Estados podem aderir, com base nos tradicionais
princípios de nação-mais-favorecida, isto é, tratamento não discriminatório, e
reciprocidade, ou seja, vantagens e concessões equivalentes, aind que não
absolutamente simétricas.
Trata-se de enorme progresso no plano das relações
internacionais, e também de uma evolução natural e necessário do direito internacional,
já que o associacionismo pode não apenas criar um meio ambiente uniforme à
aplicação de regras, que escapam assim do arbítrio de decisões de países
individuais e de mudanças intespetivas, como prover cooperação aos países
economicamente frágeis, que não conseguem, eles mesmos, implantar normas de
segurança, de saúde, de bem estar da sua população sem essa assistência dos
membros mais avançados da comunidade internacional.
3) Como surgiu?
Da necessidade da adoção de padrões comuns, para dois países
se comunicarem, por exemplo, mediante linhas ferroviárias ou de telégrafo. Ou
então da necessidade de serem respeitados, mutuamente, direitos patrimoniais,
como as patentes, que dispunham de proteção no plano territorial nacional mas
não necessariamente em outros países. Ou ainda, da necessidade de se combaterem
determinadas epidemias, afetando homens, plantas ou animais, que não respeitam
fronteiras, ou para combater a criminalidade trans-fronteiriça. Enfim, os
motivos foram vários.
Associações nacionais se reuniram com suas congêneres de
outros países para constituir uma união em defesa ou pela promoção de tal ou
qual área técnica, ou então chefes de estado tomam a iniciativa de convocar
conferências diplomáticas para resolver determinados problemas percebidos como
importantes, nos campos da política ou da economia internacional. Por vezes
indivíduos abnegados, como o suíço Henry Dunant, quer minorar o sofrimento
humano, e propõe a criação de um órgão neutro, apolítico e não-estatal para
cuidar de feridos e prisioneiros de guerra. Enfim, são várias as formas e
motivações, mas todas as iniciativas têm em comum o desejo de estabelecer
cooperação transfronteiriça para resolver problemas práticos.
4) Que características marcam o
associacionismo?
Uma das consequências do crescimento do associacionismo,
que está indissolivelmente ligado ao multilateralismo, é a diminuição relativa
da soberania absoluta dos Estados, que passam a compartilhar decisões com
outros Estados ou então delegam poderes a um órgão internacional, geralmente
respondendo a uma assembléia de estados (como acontece na maior parte dessas
uniões ou pode ocorrer no caso do Conselho de Segurança, que não é, entretanto,
absolutamente igualitário).
Na maior parte das organizações assim formadas, vale o
princípio de um pais um voto, ou seja, cada membro tem iguais direitos e
obrigações. Em algumas, porém, o poder decisório pode depender da participação
no capital constitutivo, como numa sociedade comercial, o que é o caso do FMI e
do Banco Mundial, por exemplo.
Em qualquer hipótese, os membros, sócios ou afiliados
decidem conjuntamente determinadas matérias que, ou podem obrigar a todos os
membros igualmente, ou então isentar alguns deles de deteminadas disposições,
como por exemplo os países em desenvolvimento, que podem receber concessões
comerciais de países mais avançados sem ser necessariamente obrigados a
reciprocar com vantagens equivalentes. Este último princípio se chama
não-reciprocidade, que também caracteriza a sociedade internacional, feita de
países ou membros desigualmente dotados, como aliás ocorre no plano nacional.
5) Qual o papel do indivíduo
nesse processo?
Há um movimento contraditório: por um lado, o
associacionismo pretende superar as diferenças individuais para promover o bem
comum de todos os membros da comunidade internacional, por outro lado, ele o
faz, sem dúvida alguma, para melhorar o bem estar de todos os indivíduos. Isso
é particularmente evidente no campo humanitário, na defesa dos direitos
humanos, da igualdade de gêneros, da promoção da pessoa humana sem diferenças
raciais ou religiosas, em especial das minorias e comunidades mais frágeis.
Nesse terreno, destacam-se as organizações não estatais, e aqui o papel
individual é altamente relevante, pois que se trata de iniciativas tomadas por
indivíduos generosos, sinceramente comprometidos com o bem estar da espécie
humana (e em muitos casos dos animais e do meio ambiente).
Um indicador simbólico mostra a importância do
indivíduo: os prêmios Nobel da paz, distinguindo grandes personalidades que
trabalharam em favor da paz, da promoção dos direitos humanos, da defesa de
minorias em perigo, geralmente mediante associações não-governamentais criadas
por eles mesmos.
6) Qual o poder dos novos atores,
diferentemente dos estados?
As chamadas ONGs, junto com as empresas multinacionais,
são certamente entidades relevantes no cenário internacional contemporâneo,
geralmente atuando por pressão moral, por campanhas de opinião pública, ou por
meio da publicidade e promoções comerciais, como é o caso das grandes empresas,
que também atuam por meio de fundações humanitárias, como no caso de Bill
Gates, provavelmente o homem mais rico do mundo e que dedica parte de sua
fortuna ao combate de epidemias em países pobres.
Esse poder paralelo ao dos Estados tende a crescer, o
que é também um dos resultados da globalização, ou seja, do aumento mundial dos
intercâmbios, em todos os níveis. Teoricamente, em pouco tempo, grande parte da
humanidade poderá estar conectada simultanemente através da Internet, o que
hoje ainda ocorre de forma muito restrita ou limitada a países e regiões mais
avançados. Trata-se de um papel multiplicador de opiniões, informações e ações
concretas em favor de determinadas causas globais que não tem prcedente histórico
e que tende a aumentar cada vez mais.
7) Que mudanças, na prática, o
associacionismo provoca na vida das pessoas?
Ele permite superar o horizonte citadino ou mesmo
nacional, para colocar em contato pessoas desconhecidas em cantos diversos do
planeta, mas que têm objetivos comuns em alguma causa nobre ou para resolver
algum problema prático. Ele reune países, associações de classe, grupos de
interesse num mesmo foro, que não precisa hoje ser no mesmo local físico, em
busca de uma solução aceitável para todos ou para a maioria na resolução de
alguma questão que afeta o conjunto dos envolvidos naquela área ou temática, ou
potencialmente o conjunto da humanidade em certos temas globais (direitos
humanos, meio ambiente, comércio internacional, etc).
Esse processo passa a dar a cada indivíduo a consciência
de pertencer ao mesmo gênero universal, ou a uma mesma comunidade de interesses,
ultrapassando, portanto, barreiras físicas ou políticas que sempre separaram os
homens até um período ainda recente na história da humanidade. Estamos
assistindo ao surgimento de uma comunidade verdadeiramente global, e isso se
deve em grande medida ao crescimento do associacionismo.
Paulo Roberto de
Almeida
Brasília, 28 de janeiro
de 2004