Grato a meu amigo André Eiras pelo envio desta grande, excepcional
entrevista com alguém que reputo ser o maior historiador "português"
da atualidade, da presença ocidental na Índia, e no Oriente em geral (e
vice-versa), e fino analista dos interstícios de intercâmbios culturais (e
outros) entre os grandes impérios que existiram nos últimos dez séculos (e não
só os ocidentais), já que o primeiro globalizador, antes de Colombo, foi
exatamente Gengis Khan, que como no caso português partiu de um pequeno povo
sem recursos para fazer a história mundial.
Paulo Roberto de Almeida
Sanjay Subrahmanyam: “O império
português era um império em rede”
Expresso, 27.08.2016
NUNO BOTELHO
Considerado um dos grandes historiadores indianos e —
pasme-se — um especialista sobre a presença portuguesa na Índia, tem vários
livros publicados e é um poço sem fundo a falar sobre esta matéria
Texto
Fotos
Formou-se em Economia, mas é
quando faz a tese de doutoramento que a sua vida se cruza com a dos portugueses
de outrora e acaba por mergulhar na História. Como ele diz, esta ciência é uma
“casa aberta”, aonde se chega por várias portas. Hoje leciona na Universidade
da Califórnia, em Los Angeles (UCLA), onde passa oito a nove meses por ano e
ensina História em geral. Durante o resto do tempo faz cursos no Collège de
France. Terminou agora um livro sobre a construção europeia na Índia, como esta
é vista pelos europeus entre o século XV e XVIII, onde mais uma vez fala dos
portugueses, mas também dos holandeses, franceses e ingleses. Fala português na
perfeição, com um leve sotaque que ecoa do brasileiro, reminiscência do seu
primeiro professor, um brasileiro da Universidade de Deli.
A sua área principal de interesse tem muito a
ver com a presença dos europeus na Índia...
Mas não é a única. Isso aconteceu porque, depois de me formar e fazer o
mestrado em Economia, resolvi fazer uma tese de doutoramento em História
Económica, num tema que tinha a ver com o comércio no oceano Índico. Para fazer
este trabalho, tive de consultar fontes europeias e outras, acabei por entrar
neste campo e fui por aí fora.
Como é que um economista se torna um
historiador?
É difícil de dizer. Um historiador não tem uma formação bem definida. A
história é uma casa aberta, como costuma dizer-se, podemos lá chegar de vários
lados, a partir da economia, da antropologia, da literatura. Eu, por acaso, vim
da economia. Para criar um historiador, não é necessário ter uma formação
‘dura’, do tipo matemático.
O principal ofício de um historiador é
lembrar?
Não. Para mim, não é necessariamente acreditar na memória, ao contrário, é
jogar contra ela, porque muitas vezes a memória é falsa. Dizemos frequentemente
que é necessário valorizar a memória, mas esse não é o trabalho de um
historiador, quanto muito é o de uma comunidade ou de um qualquer grupo de
pessoas. Um historiador tem de jogar contra a memória, para ver como ela foi
construída, porque também este é um processo histórico.
Diz-se que a história é feita pelos
vencedores, pelos que ficam.
Sim e não. Eu diria que a ideia é feita com base no que sobrevive, e não é
claro que isso seja sempre controlado pelos vencedores.
Como surgiu o seu interesse pela presença
portuguesa na Índia?
Não foi complicado. Quando estava a fazer a minha tese na Universidade de Deli,
na Índia, comecei a trabalhar com uma série de línguas e arquivos. Passei cerca
de um ano na Europa, há mais de 30 anos, em Haia, Londres, Portugal, entre
outros países. O meu objetivo era escrever sobre a história económica do oceano
Índico, e a minha ideia era que em todos estes arquivos haveria material para
abordar esta história de outra maneira. Acabei por ter experiências diferentes
nestes países e fiquei um pouco mais interessado nas fontes portuguesas por
várias razões, e uma delas foi porque achei que naquela altura a historiografia
portuguesa precisava de um certo tipo de intervenção. Amigos portugueses encorajaram-me
a escrever um livro sobre o império português [“O Império Asiático Português,
1500-1700. Uma História Política e Económica”, 1995, Difel]. Achei que havia
desenvolvimentos na historiografia portuguesa que eram completamente
desconhecidos e quis também fazer um pouco o papel de intermediário entre a
historiografia portuguesa e a que existe em inglês. Foi assim que acabei por me
interessar mais pelos portugueses.
Achou que o mundo não conhecia essas fontes?
Um pouco por causa do Estado Novo, havia poucos estrangeiros a fazer pesquisa
em Portugal, e o resultado foi que havia toda uma produção portuguesa dos anos
50 e 70 que era quase desconhecida fora de Portugal. Os outros, americanos,
ingleses, franceses, não chegaram a ler esta produção, com algumas exceções,
como é o caso do historiador Vitorino Magalhães Godinho, que era muito
conhecido. Jaime Cortesão, António Sérgio, Duarte Leite, sim, mas estou a falar
de pessoas que começaram a produzir nesses anos e em termos de documentos eram
desconhecidos. Sob este aspeto, achei que era uma ocasião interessante para
fazer uma síntese entre as minhas próprias pesquisas e as que tinham sido
feitas por esta geração de portugueses. É um pouco a ideia do livro sobre o
império português. Por outro lado, naquela altura, finais dos anos 80 e
princípios dos 90, havia uma grande abertura, os historiadores portugueses eram
muito abertos, convidaram-me para dar cursos, o que foi completamente fora do
comum. Não era a atitude dos holandeses, por exemplo, que não gostavam de abrir
as portas aos estrangeiros. Sobretudo os asiáticos — indianos e indonésios —
não têm hipóteses de entrar na universidade holandesa para dar cursos e
explicar qual é o seu ponto de vista sobre, por exemplo, a presença holandesa
nesses territórios.
Eles controlam a História...
Sim. Em Portugal havia uma abertura que não existia na Holanda. Também passei
pelos arquivos deste país, mas para eles o facto de eu estudar holandês e andar
a mexer nos seus arquivos não tinha nenhum interesse. A sua atitude era sempre
de autossuficiência.
Os portugueses tiveram a atitude contrária?
Sim, o que foi interessante e até sedutor.
A partir da altura em que se interessa pelo
império português e até se torna um especialista na matéria, como vê a aventura
portuguesa, ou seja, como é que uma nação de pouca gente e tão pobre se lança
nos Descobrimentos?
Não há uma explicação simples. Mas na História há muitos casos de povos
‘atrasados’ que chegaram a criar grandes impérios. O mais conhecido é, por
exemplo, o dos mongóis, que nos séculos XII-XIII, na época de Gengis Khan,
criaram um que ia da China ao Mediterrâneo. Era um povo bastante pequeno, com
poucos recursos e pouca sofisticação em termos de cultura de corte. Também
acontece que, no jogo entre os corpos políticos mais fortes e os mais
atrasados, nem sempre são os mais fortes que ganham. Foi o que aconteceu com os
mongóis e, de um certo ponto de vista, com os portugueses. Há uma teoria em
sociologia, chamada “A vantagem de ser atrasado”, que explica isso.
NUNO BOTELHO
Como é?
Veja-se o caso dos Estados Unidos no final do século XVIII, uma nova nação que
foi criada e que não tinha vantagens em relação aos poderes europeus. Como é
que, nessa altura, esta nação, que não parece a mais sofisticada nem ter os
intelectuais mais brilhantes em comparação com as grandes potências da época,
consegue um século depois construir um país com aquela dimensão? Porque tem uma
espécie de vontade coletiva de ultrapassar os outros, que estão mais avançados.
Foi isso que aconteceu em Portugal?
É um dos aspetos a referir. No século XVI, os portugueses estão sempre a olhar
para Castela. Esta rivalidade, bem como com os franceses e os italianos, de estar
sempre a jogar contra estes três poderes vizinhos é fundamental. É neste
contexto que se define o seu império.
Decidindo avançar para o norte de África e, a
partir daí, para o resto do mundo?
O norte de África tem mais a ver com os castelhanos. Mas relativamente à rota
das especiarias tem a ver com os italianos, Veneza e Génova. Naquele momento, o
reino de Portugal era capaz de utilizar outros poderes, havia até muitos
italianos, sobretudo florentinos, venezianos e genoveses, que trabalhavam para
os portugueses.
Portugal era na época um polo de atração de
conhecimento científico...
Científico, comercial e religioso. O padroado português do Oriente fazia parte
da Coroa portuguesa, mas tinha, por exemplo, uma presença muito forte de
italianos na Companhia de Jesus.
Pensa que a descoberta da América por
Cristóvão Colombo, em 1492, precipitou a decisão da viagem de Vasco da Gama à
Índia?
Pode ter acontecido o contrário: ter sido atrasada por causa de Colombo. Só
depois do Tratado de Tordesilhas [1494] é que os portugueses vão recomeçar.
Pode dizer-se que Colombo cria uma grande confusão ao voltar com a história
estúpida de ter chegado à China. D. João II, que já estaria a preparar as
coisas tendo em vista a rota da Índia, teve de parar e tratar daquele assunto e
só depois reiniciar os preparativos. Há um período de dez anos que medeia entre
as viagens de Bartolomeu Dias [que dobra o cabo das Tormentas, ou da Boa
Esperança, em 1488] e Vasco da Gama. Provavelmente não foi por causa de Colombo
que os portugueses se lançaram na viagem, teriam feito isso antes, mas a
confusão criada por Colombo de ter descoberto as Índias Ocidentais deve ter
atrasado um pouco o processo. É uma especulação, mas há indicações que vão
nesse sentido.
O seu livro sobre Vasco da Gama [“A Carreira
e a Lenda de Vasco da Gama”, 1998, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses] causou grande polémica, em parte porque foi contra
o mito [Sanjay Subrahmanyam foi acusado de fazer um ‘retrato’ pouco abonatório
do herói português e de ferir os sentimentos nacionalistas, por ter desmontado
alguns estereótipos existentes e apesar de se ter baseado em fontes portuguesas
da época]...
É um pouco isso, mas também tem a ver com a minha identidade indiana. As mesmas
coisas foram mais tarde ditas por portugueses e passaram sem qualquer polémica.
E o que é que sobrou dos portugueses na
Índia, onde estiveram durante quatro séculos e meio?
A grande presença é nos séculos XVI e XVII. A partir de 1700, a presença é
muito limitada, há feitorias e fortalezas, os portugueses controlam
essencialmente Goa, Damão e Diu e pouco mais, e sobretudo Goa. Muita gente na
Índia pensa, aliás, nos portugueses relacionando-os com Goa. Mas há um impacto
mais complexo e subterrâneo, uma presença mais antiga, com influência na
religião, na vida quotidiana, na cozinha, em certos costumes, na vida cultural
da Índia...
Como por exemplo?
Em Bengala, na costa nordeste do subcontinente indiano, uma região muito
afastada de Goa, portanto, havia uma presença portuguesa importante, embora não
oficial, porque os que lá estavam eram sobretudo os chamados “lançados”, os
renegados, pessoas com problemas com a justiça ou que se tinham convertido ao
Islão, enfim, que estavam basicamente fora do sistema português. Há hoje um debate
entre os historiadores sobre uma série de coisas: por exemplo, os bengalis
gostam muito de sobremesas, mas têm sobremesas que não existem em nenhuma outra
parte da Índia, porque são feitas à base de leite. É muito difícil demonstrar
qual é a sua origem, quando foram inventadas, mas há quem diga — e com razão —
que têm influência portuguesa. Pode também falar-se de certas músicas: na Índia
e no Sri Lanka, o antigo Ceilão, há um tipo de música que se chama “baila”,
muito típico, e que provavelmente tem a ver com a presença portuguesa. Ora, os
portugueses foram expulsos de Ceilão em 1658.
Disse que o historiador tem por vezes de ir
contra a memória. Vê-se como um “desconstrutor de mitos”, que foi a acusação
que lhe fizeram relativamente a Vasco da Gama? E como é que os indianos veem
esta figura histórica?
Essa imagem passou pelos britânicos, que tinham uma certa visão de Vasco da
Gama no século XIX. Achavam que ele tinha sido seu antecessor, que abrira o
caminho depois seguido por outros, entre eles os britânicos, que chegam à Índia
depois de 1600. Sob este ponto de vista, há uma linha direta entre Vasco da
Gama, a descoberta da Rota do Cabo e o império britânico. Ao ensinarem aos
indianos a História do mundo, os britânicos dizem que a presença europeia na
Índia começa com Vasco da Gama, mas que eles — britânicos — foram os seus
verdadeiros sucessores, porque fizeram um ‘melhor império’, já que não tinham o
problema dos católicos. Vasco da Gama é o primeiro, mas não é capaz de
construir o ‘bom império’, em suma. A elite indiana de certo modo ‘engoliu’
este discurso de que os dois homens mais importantes da História do mundo eram
Vasco da Gama, de um lado, e Cristóvão Colombo, do outro.
E pelos vistos com o mesmo raciocínio...
Precisamente com a mesma sequência de raciocínio: os espanhóis foram os
primeiros a chegar à América do Norte, mas não souberam construir um verdadeiro
império, foi preciso chegarem os ingleses. O interessante é que na época do
movimento nacionalista indiano, entre os anos 20 e 40 do século passado, que
precedem a independência, há uma série de escritores que falam sobre Vasco da
Gama dizendo que ele era um homem muito duro e não refinado, mas ao mesmo tempo
muito importante, contestando por isso de certa maneira a tese dos britânicos. Há
até um historiador indiano nacionalista que inventou a fórmula “A época de
Vasco da Gama”, segundo a qual ela começou em 1498 e durou até 1950, só
acabando com a independência da Índia e a criação da China comunista
NUNO BOTELHO
O que é que ele quis dizer?
Que a relação entre mar e terra passou a ser outra. Durante 450 anos é o poder
marítimo que domina a relação com o poder terrestre, e isso acaba, tal como os
europeus vão perder para os asiáticos, que passarão a dominar o mundo. Mas
aceitam que tenha havido uma época de Vasco da Gama, em que este é que é o
símbolo dos europeus. Mais do que a pessoa e o homem, foi transformado em
símbolo.
De certa maneira, também é um mito para os
indianos.
Totalmente. É isso que digo no último capítulo do meu livro. Nos livros da
escola secundária, escritos em hindi, a representação de Vasco da Gama é a de
uma espécie de super-homem.
Mas na altura não.
No século XVI tem uma imagem mais diversa e complicada. No meu livro tentei
mostrar que era visto como um político, um homem que agia de modo vincadamente
político. Há momentos interessantes na sua carreira, entre 1518 e 1519, quando
está muito dececionado com o rei D. Manuel e ameaça passar-se ‘para o outro
lado’, para Espanha, para explicar a Carlos V o que devia fazer para criar um
império asiático. Nessa altura, o rei dá-lhe o título de conde da Vidigueira.
Foi mais ou menos o jogo de Fernão de Magalhães, mas como este era menos
importante o rei não cedeu. Já Vasco da Gama tinha um certo prestígio, e os
portugueses não podiam deixar que ele se passasse para o inimigo.
O nome de Vasco da Gama engloba não só os
portugueses como os europeus, fazendo por isso parte da história da Ásia. Nesse
sentido, houve um império português na Ásia?
Há um debate entre historiadores que pensam que um império deve ser uma forma
de controlo terrestre, e sob este ponto de vista há quem diga que o império dos
portugueses era no Brasil e não na Ásia, onde não havia territórios importantes
sob controlo. Eu entendo que há vários modelos de império no mundo antigo, e os
portugueses têm uma visão de império que tem menos a ver com o modelo romano e
mais com o fenício ou o grego. Um império disperso que não tem necessariamente
um controlo administrativo importante de territórios. É um tipo de império em
rede.
A “História conectada” é o seu mais recente
estudo. O que é?
É uma ideia surgida no final dos anos 90, que destaca o facto de, por razões
puramente acidentais, haver campos historiográficos separados. Por exemplo, há
pessoas a trabalhar sobre a história dos portugueses na Índia no século XVI, em
diversas faculdades, e trabalham essencialmente sobre a presença portuguesa. Ao
mesmo tempo, sabemos que no interior da Índia há outras histórias, que se fazem
com outras fontes, como é o caso do império mongol, onde por razões de
competência linguística ou outras quase ninguém trabalha. Achei que seria
interessante um outro tipo de historiografia, que faria a ligação entre estas
historiografias separadas, daí o termo ‘conectada’. É um método. Como fazer
para combinar estas histórias distintas e separadas? É a História conectada —
tratar no mesmo momento as histórias que são separadas por razões meramente
convencionais. Não tem nenhum sentido científico, só por acaso estão separadas,
porque ocorreram simultaneamente.
Que tipo de objeto histórico emerge dessas
conexões?
Coisas muito diferentes. Por exemplo, Garcia de Orta, que era judeu, estudou em
Salamanca, foi para a Índia talvez nos anos 1530, como médico passou muito
tempo nas cortes muçulmanas da Índia e finalmente escreveu “Os Colóquios”. É
difícil dizer coisas concretas sobre ele, não há muita documentação, mas podemos
reconstituir o contexto da vida dos sultanatos daquela época, qual era o tipo
de saber. É um exercício de um certo tipo de história e ciência, que permite
saber algo mais de Garcia de Orta do que a sua presença no império português.
Outro exemplo: acabei de escrever um livro sobre a história da pintura, da
arte, e sobre os intercâmbios entre a arte indiana e europeia. Poucos sabem que
Rembrandt copiou 25 miniaturas mongóis, e penso ser interessante tentar saber
porquê. Agora sabemos que o fez porque, como não podia observar diretamente o
mundo antigo, uma maneira de o fazer era observar o mundo oriental. Ele achava
que a linguagem do corpo que existia no Oriente, no império mongol, era
semelhante e que o ajudava, por exemplo, a fazer uma pintura de Abraão.
Falando sobre os mitos: há um mito português
sobre Vasco da Gama, assim como há um mito indiano. O primeiro vê-o como um
grande herói, o segundo...
…Também o vê como um grande herói, embora com alguns aspetos negros. Mas é um
herói, porque trouxe a Europa até à Índia e transformou a História do mundo.
Diz-se que os portugueses foram pioneiros da
globalização, que conectaram o mundo. Foi assim?
É uma maneira de justificar o passado em termos do presente, quer dizer, de
usar o vocabulário da moda do presente para justificar algo que aconteceu no
passado. Também posso dizer que Gengis Khan foi um precursor da globalização.
Mas os portugueses, de facto, conectaram a
Índia com a América.
É verdade que aquele momento é interessante em relação à época anterior. Os
séculos XIV e XV representam um certo tipo de mundo em que há formas de
intercâmbio muito limitadas. Tudo isso se transformou entre 1450 e 1580, e os
portugueses, entre outros, desempenharam um papel. Mas não acho interessante
dizer quem teve um papel maior ou menor.
Qual é a razão do declínio do império
português da Índia?
Os portugueses tinham recursos limitados, preferiram concentrá-los no
Atlântico, no Brasil, e não lhes era possível estenderem-se em todo o lado. Por
outro lado, os holandeses não se mantiveram no Atlântico, tiveram de retirar-se
do Brasil, ficaram em Curaçau e em Suriname, mas conseguiram ficar no Índico.
Podemos ver isto como um jogo geopolítico entre vários impérios, alguns ficam
mais poderosos em certas regiões, outros em outras. A velha história do
declínio relacionado com o catolicismo não tem nada a ver com isto, é um mito
criado pelos holandeses e os ingleses. Se fosse assim, porque não funcionou da
mesma maneira no Brasil?
Sabemos que a viagem de Vasco da Gama foi
preparada por D. João II, mas quem a concretizou foi D. Manuel. Havia, porém,
uma mesma orientação, o caminho das especiarias e a cristianização...
Não era a mesma coisa. A busca dos cristãos não é o mesmo que cristianização,
porque parte da ideia que eles já existiam, é o mito de Prestes João, do
apóstolo São Tomé, a busca de comunidades preexistentes. Não é a missionação,
que depois também se vem a verificar.
Num primeiro momento, tentam encontrar as
comunidades de cristãos que eventualmente existiriam e, constatando que não
existem, partem para a cristianização?
Entre os dois, recorde-se que ocorre o protestantismo. Com o Calvinismo e
Lutero, nos anos 20, 30 e 40 do século XVI, os católicos perdem terreno na
Europa, e a partir dos anos 40 chegam à conclusão que é preciso ir para fora e
criar cristãos em outros países e continentes para recuperar o terreno perdido
na Europa. Inácio de Loyola diz claramente que essa foi uma das razões para
criar a Companhia de Jesus. É a partir da Contrarreforma que há a ideia de criar
novas comunidades de cristãos fora da Europa, na Ásia, em África ou na América.
Quando Vasco da Gama chega à Índia, ele não tem essa ideia de fazer conversões
ou de criar comunidades de cristãos. Morreu em 1524, e essa ideia não era muito
importante.
Ele encontra cristãos?
Sim, no sul da Índia, são comerciantes de pimenta, por exemplo. Irá
relacionar-se com eles na segunda e terceira viagem.
Falando da atualidade, qual é o espaço do
mundo islâmico hoje no Índico?
É um espaço importante. Há lutas de poder, mas podemos referir três aspetos. Há
o poder económico dos países islâmicos, que existe sobretudo a partir dos anos
70, com a transformação do mercado do petróleo, em que a Arábia Saudita, os
países do Golfo e o Irão passam a ter uma influência enorme, até no mundo não
islâmico do oceano Índico, por exemplo em termos de mercado de trabalho; muita
gente não muçulmana, da Índia, Filipinas e outros sítios, vai trabalhar para
esses países, criando uma economia de circulação, com um impacto enorme que não
se vê muito no Ocidente. Em segundo lugar, tem importância pelos investimentos
que fazem nas instituições. E, finalmente, há o aspeto geopolítico. A política
indiana é, por vezes, de jogar contra certos países islâmicos em favor de
outros.
Até que ponto há influência muçulmana na
Índia?
Há, mas nos últimos dois anos o poder central na Índia está nas mãos de um
partido hinduísta, que tem uma política abertamente contra os muçulmanos.
Quando preparam as eleições, falam sempre da ameaça muçulmana, num discurso do
tipo de conflito de civilizações.
Como é que um historiador olha para isso?
É um discurso oportunista de jogar com o medo. É sempre útil. O caso indiano é
muito particular, por causa de Caxemira, mantemos ali uma guerra contínua de
baixo nível há quase 70 anos. É muito tempo. Uma fronteira aberta, com um
exército de ocupação. Há dois casos no mundo, nós e os israelitas e
palestinianos, em que a cronologia é quase a mesma, o problema foi criado pelos
mesmos — os britânicos — e com o mesmo método, mas depois lavaram as mãos e
foram-se embora.
Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 20
agosto 2016