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sábado, 3 de setembro de 2016

Eugenio Gudin: um dos genios economicos brasileiros (quase esquecido) - Ricardo Velez-Rodriguez


 O RENASCIMENTO DE GUDIN
Eugênio Gudin (1886-1986) o maior pensador liberal da economia brasileira
Ricardo Vélez-Rodríguez
Rocinante, 9/08/2016


A tresloucada marcha do Estado brasileiro como gestor da economia ao longo das últimas décadas, notadamente durante os governos petistas, colocou sobre o tapete a atualidade do pensamento de Eugênio Gudin (1886-1986), que muita gente achava coisa do passado. As ideias liberais passaram a ser alcunhadas de “Neoliberalismo” tout-court, abusando de um termo que virou xingamento da esquerda patrimonialista.

Gudin renasce, no 130º aniversário do seu nascimento, nesta quadra confusa da história brasileira. E renasce justamente ao ensejo das desgraças protagonizadas pelos que tentaram censurá-lo. Este artigo visa a destacar algumas das teses do grande professor, mostrando como elas iluminam a atual quadra da nossa vida política. 

Serão desenvolvidos os seguintes itens: 1 - O Capitalismo Naturalista. 2 – A racionalidade social e o livre mercado. 3 – A irracionalidade social decorrente da interferência do fator político na economia. A guerra. 4 – A irracionalidade social e o planejamento estatal no Brasil. 5 – Capitalismo e democracia no Brasil: perspectivas.

1 - O Capitalismo Naturalista

O surgimento do Capitalismo, para Gudin, não tem nada de abstrato nem de acidental. É tão verificável quanto o aparecimento da máquina a vapor da era Industrial. O nascimento desta era da economia, bem como seus passos, são realidades perfeitamente cognoscíveis. Constituem fatos concretos da História humana. 

O “Capitalismo Naturalista” estudado por Gudin se caracteriza porque é a etapa da História da economia em que o Capital, aliado ao Trabalho e à Criatividade dos agentes econômicos, dá ensejo à era da industrialização que produz a satisfação das necessidades humanas básicas numa escala planetária, fazendo com que todas as Nações se inter-relacionem com equilíbrio e constituam, assim, a máxima manifestação da racionalidade humana. 

O começo da sua etapa decisiva, segundo o economista, “(...) pode ser referido ao ano de 1772 em que, pela primeira vez, se operou a redução do minério de ferro pelo coque metalúrgico. As suas grandes etapas foram a da navegação a vapor no princípio do século, a da locomotiva de 1827, a do Conversor Bassemer em 1856, a da eletricidade industrial e da hulha branca no último quartel do século, a do motor de explosão, do automóvel e da indústria do petróleo em seu último decênio e, por fim, a do cinematógrafo e da aviação no limiar do século XX” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 7].  

Poderíamos adicionar um fato relevante, na área da educação e da pesquisa, que acompanha a Revolução Industrial: a criação, na França, em 1794, após a Revolução Francesa, da Escola Politécnica, que passou a tratar, ao lado da tradicional Universidade nascida na Idade Média, do ensino das ciências e da tecnologia. [1] Ora, esse ensino, até finais do século XVIII, tinha ficado relegado às Academias, que surgiram fora das instituições universitárias na Europa, como ocorreu na Itália de Galileu Galilei (1564-1642) e de Leonardo da Vinci (1542-1519), na Inglaterra de Robert Boyle (1627-1691) e de Isaac Newton (1643-1727) e na França dos marqueses Pierre Simon de Laplace (1749-1827) e Nicolas de Condorcet (1743-1794).

Immanuel Kant (1724-1804) saudou o novo momento econômico da industrialização, nos estudos dedicados à Antropologia (entendida como saber pragmático acerca do homem), caracterizando-o como uma Criação Cosmopolita[2] A respeito dessa característica globalizante e integradora da nova economia, frisava Gudin: “As estradas de ferro, os motores de explosão, a navegação a vapor arrancaram os povos do isolamento em que viviam, ligando-os pelos laços de uma sociedade econômica em que a produção do planeta se espalha e distribui pelo mundo inteiro. O transporte industrial, permitindo a organização de socorros em grande escala, acabou com os quadros tétricos, que tanto registra a história, de populações dizimadas pela fome, pela seca e pelas epidemias” [GUDIN, Capitalismo e sua evolução, 1936, pg. 27].

Essa etapa de evolução da economia mundial sob a égide da industrialização já vinha sendo preparada desde o período renascentista, que sacudiu a pesada estrutura do saber medieval centrado na Teologia Escolástica, a fim de abri-lo às ciências e às técnicas. A respeito escreve Gudin: “A evolução social e econômica retoma o seu curso com o Renascimento, em ritmo de progresso acentuado desde o século XVI até o último quartel do século XVIII, que registra o maior acontecimento da história econômica da humanidade: o advento da civilização industrial”[GUDIN, Para um mundo melhor,  1943, pg. 99-100].

O equilíbrio “estático” medieval é sacudido, após o Renascimento, pelo florescimento da economia, das técnicas e da cultura nas cidades italianas. “A história – frisa Gudin - nos revela períodos, por vezes longos, como o da fase negra da Idade Média, em que o mundo se apresentava em estado de estagnação econômica e social correspondente a um equilíbrio estático. São períodos de exceção” [GUDIN, Para um mundo melhor, 1943, pg. 99].

Ao ensejo das mudanças ocorridas na economia com o surgimento do Capitalismo e da Revolução Industrial, frisa Gudin: “(...) puderam ser montados no mundo inteiro os laboratórios de pesquisas científicas, com que a humanidade, há quase um século, perscruta os segredos da Natureza. Graças ao microscópio, produto da indústria, pôde Pasteur realizar a imensa obra de benefício humano que o imortalizou. Graças ao aparelhamento industrial atingimos um ‘standard’ de vida, que faz com que simples operários de hoje tenham mais conforto do que príncipes de outros tempos ou do que Marx e Engels há menos de um século. Não são sequer comparáveis os instrumentos com que a humanidade de hoje se defende do frio, da fome, das intempéries, das infecções e de todas as adversidades que a Natureza pôs no caminho penoso do ‘homo sapiens’. Ninguém de boa fé negará esses truísmos” [GUDIN, Capitalismo e sua evolução, 1936, pg. 27-28]. 

O economista elenca os grandes avanços que, na área técnica e no progresso econômico, a Humanidade experimentou com o surto do capitalismo na era industrial, ao longo do século XIX. Não deixa de registrar o fato apontado por Ortega y Gasset (1883-1955) em A rebelião das massas (1928), [3] do significativo aumento da população na Europa, em decorrência da melhora das condições de higiene, saúde e produção de alimentos. Eis as palavras de Gudin: “À redução do minério de ferro pelo coque metalúrgico e à máquina a vapor, seguem-se, em rápida sucessão, na primeira metade do século XIX, a navegação a vapor, a locomotiva e as estradas de ferro. A segunda metade desse século é como uma feira de mágicas em que, juntamente com as descobertas de Pasteur, aparecem o motor elétrico, o telefone, as turbinas hidráulicas e a vapor, a lâmpada incandescente, o transporte de energia a distância. O último decênio do século ainda assiste ao advento do motor a explosão, do veículo automóvel e à infância da aviação. Foi um período de verdadeira exaltação do progresso, cujo ritmo vertiginoso absorvia todas as energias humanas. Era como que uma fronteira, no sentido de progresso de civilização que a essa palavra dão os americanos. O século XIX assistiu a um crescimento da população da Europa, superior ao do conjunto dos quatro séculos que o precederam. Mas toda essa população era rapidamente absorvida na febril atividade da fronteira na própria Europa ou na América. Não havia tempo para cuidar dos problemas de justiça social nem de uma mais equitativa distribuição da riqueza entre os homens. Tratava-se de conquistar a riqueza e haveria sempre tempo de cuidar, mais tarde, de uma melhor repartição. Foi essa a conjuntura econômica e social que Marx conheceu e profligou na incandescência de seu espírito revoltado” [GUDIN, Para um mundo melhor, 1943, pg. 100-101]. 

O rápido crescimento da produção industrial levou à expansão da fronteira econômica da Europa. Novos mercados iam-se, assim, abrindo. A propósito, frisa o nosso autor: “Tão acelerado foi o ritmo de progresso da produção industrial nos países do Ocidente europeu, que eles se acharam, ao cabo de alguns decênios, na contingência de procurar, fora de suas fronteiras, novos escoadouros para essa produção” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 7].

A ampliação da fronteira econômica levou a que os países industrializados buscassem novos mercados para os seus produtos, nas nações ainda circunscritas à economia agrícola. Os novos impérios coloniais tinham como finalidade garantir matérias primas, mas também alargar o mercado consumidor para os produtos das grandes indústrias. Sobre este ponto, o economista frisa: “À medida que se ampliava o âmbito da civilização industrial e que as demais nações da Europa e já também dos Estados Unidos da América do Norte iniciavam, a seu turno, a construção de seus parques industriais, a Inglaterra, a França e a Holanda tinham que procurar novos escoadouros para sua exportação nas nações que ainda viviam em regime de economia agrícola, como nos impérios coloniais que construíram com o duplo objetivo de angariar matérias-primas e de assegurar consumidores para suas grandes indústrias” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 8]. 

Gudin faz referência ao papel de dinamizadoras da produção que passaram a exercer, na Europa, as Instituições de Crédito, bem como as Sociedades Anônimas. De outro lado, fixa a atenção no equilíbrio a que chegaram as economias europeias com aquelas dos países que recebiam os seus produtos industrializados, em troca pelas commodities que os menos desenvolvidos exportavam. A respeito escreve: “O vulto crescente da produção, o aumento considerável da riqueza e da capacidade de consumo excederam, em breve tempo, as possibilidades dos sistemas monetários e financeiros então existentes, dando lugar à criação dos dois grandes fatores de propulsão da civilização industrial, que foram o Crédito e as Sociedades Anônimas, um e outras tornados já então possíveis de se organizar, sobre a base do acúmulo das economias privadas nas instituições bancárias. Em dado momento, a Economia mundial parecia ter chegado a um estado de equilíbrio estável, tendo, de um lado, as nações que dispunham do capital acumulado, da técnica industrial, do combustível carvão e da navegação a vapor e que constituíam o grupo das nações industriais e, de outro lado, aquelas nações que não dispunham desses elementos, mas que podiam oferecer seus produtos agrícolas e suas matérias primas em troca dos artigos manufaturados” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 8]. 

O aumento da venda de produtos industrializados por parte dos países desenvolvidos se traduzia numa forma de equilíbrio, resultante do incremento de commodities compradas dos menos desenvolvidos. Em relação a esse aspecto, frisa Gudin: “Quanto mais o grupo de nações industriais vendia seus produtos ao outro grupo, mais lhe compravam produtos agrícolas e matérias primas, e vice-versa” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 8]. 

A economia dos países submetidos a esse regime de trocas gozava de um equilíbrio induzido pelo “gênio da civilização industrial”. Esse harmônico processo é assim descrito pelo economista: “Se de um lado o progresso industrial de alguns países novos fazia diminuir a importação de determinados artigos, esta redução era logo compensada pelo aumento geral da capacidade de consumo, como pela importação dos produtos de novas indústrias criadas pelo gênio da civilização industrial. Se baixava a exportação de tecidos, aumentava a de automóveis ou de novos produtos químicos” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 8]. 

Um desequilíbrio é apontado por Gudin nessa evolução histórica do Capitalismo Naturalista: os trabalhadores terminaram sofrendo as consequências das variações do mercado, ainda não suficientemente debeladas pela nova legislação trabalhista. No entanto, com o correr do tempo, um novo equilíbrio se anunciava, na trilha do aumento real da capacidade de compra por parte dos trabalhadores, já no final do século XIX. 

Eis a forma em que Gudin resume todo esse processo: “Do ponto de vista social (...) é verdade que a liberdade de movimentos de que carecia o capitalismo naturalista para sua plena expansão custou não poucos sacrifícios às classes trabalhadoras, ainda desamparadas de legislação social adequada e de união sindical (...). Não é menos verdade que, ao findar o século XIX, os salários reais dos trabalhadores, isto é, o seu poder de compra, tinham aumentado consideravelmente” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 9].  
  
2 – A racionalidade social e o livre mercado. 

Eugênio Gudin é tributário dos teóricos escoceses que encararam a racionalidade social como proveniente da empresa econômica. Para ele, onde se instalou o Capitalismo Naturalista terminou vingando a racionalidade no plano mais largo das relações sociais. Como a prática do livre mercado é que dá ensejo a essa modalidade de Capitalismo, ali onde tal liberdade é suprimida, simplesmente desaparece a racionalidade social. Pesou, certamente, nestas convicções de Gudin a sua condição de executivo de alto nível de várias empresas multinacionais. Formado em engenharia em 1905 pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, nas décadas seguintes trabalhou em várias empresas estrangeiras presentes no Brasil como a Ligth, a Pernambuco Tramway and Power Co., a Great Western of Brazil Railway Co. e a Western Telegraph Co., da qual foi diretor até 1954.

A tendência ensejada pelos teóricos escoceses, de que é tributário Gudin, como foi frisado, passou a ser caracterizada como da “Economia Política” e se desenvolveu na trilha da moral social do século XVIII que, com Hume (1711-1776), Adam Smith (1723-1790) e outros autores, oferecia uma alternativa racional às teorias contratualistas. Seria possível, como pensava Hume, reduzir a política a uma ciência referida à economia e aos negócios públicos. [4] Essa temática foi retomada por ideólogos como Jean-Baptiste Say (1767-1832), que no seu Tratado de economia políticapublicado em 1803, identificava a nova ciência por ele proposta com um saber racional alicerçado na experiência, irredutível à matemática, mas passível de ser resumido em poucos princípios evidentes para todos. 

A respeito escreve Say: "Assim como as ciências exatas, a Economia Política se compõe de um número reduzido de princípios fundamentais e de um grande número de corolários ou deduções desses princípios. O importante para os progressos da ciência é que os princípios decorram naturalmente da observação; em seguida, cada autor multiplica ou reduz, de acordo com sua vontade, o número e consequências, conforme o objetivo que se propõe. Aquele que desejasse mostrar todas as consequências, fornecer todas as explicações, construiria uma obra colossal e necessariamente incompleta. Inclusive, quanto mais essa ciência for aperfeiçoada e difundida, menos consequências teremos de extrair, pois elas saltarão aos olhos; todo mundo estará em condições de encontrá-las por si mesmo e de aplicá-las.  Um Tratado de Economia Política reduzir-se-á, então, a um pequeno número de princípios que sequer precisaremos basear em provas, pois eles serão apenas o enunciado daquilo que todo mundo já saberá, disposto numa ordem apropriada a fim de se poder apreender o seu conjunto e as suas relações". [5]

O conde Antoine Destutt de Tracy (1754-1836), no seu Tratado de Economia Política (que constituía a quarta parte da obra intitulada Elementos de Ideologia), definia mais claramente o fundamento da ciência em apreço, ao afirmar que "o comércio é toda a sociedade". [6] O conde Pierre-Louis Roederer (1754-1835), por sua vez, considerava que "as artes mecânicas, o fato de serem partilhadas por diferentes mãos, o comércio e o intercâmbio de produtos por elas produzidos, são os únicos que estabelecem entre os homens comunicações intimas, constantes e duráveis". [7] A política tenderia, destarte, a se confundir com a economia e a ciência das riquezas seria a chave para encontrar a harmonia social. Para Gudin, como fica claro do que levamos exposto, o equilíbrio social se estabelece pelo próprio jogo das forças econômicas submetidas à lei do livre mercado. 

Gudin, no entanto, não acredita que a Economia possa encampar a Política. Para ele, essas duas variáveis são complementares, não podendo ser reduzidas a uma. Seria uma simplificação inaceitável. Considera que ambas as variáveis são essenciais, assim como a relativa à Cultura. Embora admirasse a obra de Augusto Comte (1798-1857) à maneira dos nossos positivistas ilustrados, pelo fato de o pensador francês ter sistematizado a ideia de uma ciência social que possibilitasse o estudo rigoroso dos fenômenos socioeconômicos, longe estava Gudin, no entanto, de encampar a visão antidemocrática do comtismo com a sua “ditadura científica”. A crítica que faz ao “despotismo ilustrado” getuliano, de raízes castilhistas, é clara. A sua vinculação à UDN acompanhou, certamente, esse viés de antiestatismo.

Nessa concepção da sociedade como uma realidade a ser abordada a partir de múltiplas variáveis, Gudin se inspira no sociólogo alemão Werner Sombart (1863-1941). Considera que foi ele quem primeiro chamou a atenção para o caráter magnífico e complexo da empresa capitalista e se refere a ele da seguinte forma, no ensaio, já citado, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro: “Foi dessa economia que o seu maior comentador (...) dizia: ‘Estrutura tanto mais digna de admiração quanto ela é o produto, não de uma vontade consciente e de uma deliberação refletida, mas do funcionamento autônomo e por assim dizer automático de uma multidão incomensurável de economias individuais, procurando cada uma o seu próprio interesse’”. 

Gudin adota o ponto de vista de Sombart de que são múltiplas as variáveis que, além da economia, dão conta da complexidade da vida social. É bem verdade que Sombart, ao lado de sua admiração pela empresa capitalista, nutria desconfianças em relação à predominância do espírito de lucro sobre a componente racional que garantiria a perpetuação do processo (numa espécie de busca da “paz perpétua” almejada por Kant). Os momentos de “guerra” (e, notadamente, as Guerras do século XX) poriam à prova a subsistência do sistema. No entanto, Gudin é otimista quanto à possibilidade de serem sorteadas as dificuldades. A “Guerra” é fruto da predominância dos fatores políticos sobre os econômicos. O anseio de dominação pode sufocar a produtividade. 

A respeito da forma como Gudin interpreta a obra do sociólogo alemão, Maria Angélica Borges frisa: “No comentário à obra de Sombart aparece o desdobramento dos pressupostos da noção de equilíbrio econômico presente na concepção econômica que Gudin abraça (...)”. [8] O Capitalismo autorregulador era, para Gudin, “a maior obra civilizadora que o espírito humano já concebeu e criou” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938]. 

O Capitalismo, acredita o mestre carioca, saberá superar as crises, retomando o processo de criação de riquezas mediante a incorporação de novos avanços tecnológicos como a automação, por exemplo, e preservando a livre iniciativa, para fazer frente aos reptos de uma produção massiva,  atendendo – de outro lado - às novas exigências sociais. Diríamos que Gudin retoma o otimismo que inspirava à primeira geração dos pensadores da economia política, nos tempos de Adam Smith, mas ampliando o leque epistemológico para o estudo de várias variáveis. 

3 – A irracionalidade social decorrente da interferência do fator político na economia. A guerra.

Para Gudin, a Primeira Guerra Mundial veio quebrar o desenvolvimento equilibrado do Capitalismo Naturalista, devido à interferência irracional do fator político que destruiu o equilíbrio do sistema. Maria Angélica Borges frisa a respeito: “Este paraíso durou, para nosso economista, até 1914, quando se deflagrou a Primeira Grande Guerra. Para ele, esse fato sinaliza o fim de uma época. O mundo capitalista, no plano do fator econômico, caminhava de forma positiva. Mas, em virtude de acontecimentos decorrentes do fator político, envolvendo paixões e ambições humanas, o equilíbrio econômico foi interrompido. Deixado à mercê de sua própria lógica, o tecido social não conhecia a crise. Porém, tal não ocorreu, porque o fator político quebrou a dinâmica do fator econômico. Para o autor, o equilíbrio natural é da lógica interna do fator econômico, assim como a possibilidade de quebra do equilíbrio é exterior a ele”. [9] A Primeira Guerra Mundial explica, assim, o caos econômico que se seguiu ao processo de desenvolvimento harmonioso do Capitalismo na “Belle Époque” (1875 / 1914).

Assim se refere Gudin a esses fatos: “(...) O enriquecimento geral prosseguia seu ritmo natural e benéfico, a difusão de capitais se processava com regularidade, o comércio internacional aumentava todos os anos. E se guerra houve inteiramente gerada pela explosão de paixões e ambições políticas e militares e em que os fatores econômicos menor papel representaram, essa foi a guerra de 1914, que desencadeou sobre o mundo uma das maiores crises econômicas da história” [GUDIN, Capitalismo e sua evolução, 1936, pg. 9]. 

Como consequência do desarranjo produzido na economia mundial pela Primeira Guerra, a Inglaterra perdeu o controle sobre as finanças internacionais e os Estados Unidos, onde tinha se desenvolvido o processo capitalista sem obstáculos, terminaram assumindo o controle das finanças mundiais. 

Gudin sintetiza da seguinte forma os aspectos fundamentais dessa profunda mudança do Capitalismo Naturalista, destacando o papel que os Estados Unidos passaram a desempenhar na economia: “Quando os Estados Unidos da América do Norte, que já representavam antes da guerra função de relevo na Economia Mundial [intervieram], a transformação foi ainda mais profunda. Com um parque industrial que já era capaz de suprir os aliados de munições, canhões, material de guerra e de transporte, o seu enriquecimento de 1914 a 1917 foi vertiginoso, de sorte que, ao término das hostilidades, esse grande país havia-se transformado de país devedor da Europa, que era até 1914, no maior país credor do mundo, sem que, entretanto, tivesse a experiência e a sabedoria exigidas por essa nova função. Aí está como se processou a desorganização da Economia Mundial. O equilíbrio que se havia gradativamente formado até 1914, sob o regime do Capitalismo apoiado na Economia Liberal, e que consistia na conjugação harmônica das funções econômicas dos vários países que o constituíam, foi gravemente perturbado pela inversão de valores de suas unidades componentes. As peças do sistema, que d´antes se entrosavam harmonicamente, já não mais se engrenavam, umas às outras” [    GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 12-13]. 

Esse desarranjo revelou que, no ciclo anterior à guerra, havia uma lacuna que não tinha sido preenchida: a ausência de policiamento sobre o sistema de trocas, que terminou produzindo a falência do mesmo. Gudin reconhece que, no seio do sistema Capitalista, encontram-se elementos que podem, em determinado momento, colocar em risco a saúde econômica. No caso concreto do desarranjo produzido pela Guerra no contexto do sistema econômico mundial, esses elementos negativos situavam-se do lado do surgimento de monopólios e de outras práticas irracionais. 

A propósito, frisa Gudin: “A mais elementar lacuna do sistema capitalista, tal como funcionava no primeiro decênio [do século XX] era a ausência de policiamento. A livre disposição, pelos bancos, de depósitos das economias privadas, sem a fiscalização do Estado, a ilimitada liberdade de apelar para a Economia privada e para a subscrição de empréstimos de Estados, de empresas de negócios de toda espécie, sem que primeiramente o Estado certificasse que tais operações tinham de fato o destino e as possibilidades de êxito anunciadas, estavam a exigir, com urgência, o policiamento do sistema (...). Este simples policiamento, se adotado a tempo, teria poupado, ao Capitalismo, algumas das mais violentas críticas que lhe foram assacadas” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 15]. 

O nosso autor lembra que essa crise do Capitalismo já tinha sido prevista por um teórico da talha de David Ricardo (1772-1823). Eis a apreciação do nosso autor a respeito: “Já Ricardo, talvez o maior economista do seu século, dizia, referindo-se ao Sistema Capitalista, que o seu automatismo exige um grande número de empresas de dimensões tais que nenhuma delas possa agir diretamente sobre os preços. É que na luta da concorrência, quando levada a seus limites extremos, chega o momento em que os contendores compreendem que o seu prosseguimento importaria na ruína final de todos, como na perda e destruição final do capital social invertido na indústria ou serviço em causa (...). Nesta hipótese, dá-se, inevitavelmente, o entendimento entre os produtores ou o amálgama e unificação de empresas, com a supressão da concorrência, que era o próprio princípio vital do Capitalismo naturalista. Outra modalidade do resultado final da luta é a do esmagamento sucessivo do mais fraco pelo mais forte, ficando este só em campo, sem mais concorrentes e, portanto, no regime de monopólio, que é justamente o oposto da essência do Capitalismo” [GUDIN, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, 1938, pg. 16]. 

Gudin estudou com atenção a crise do laissez-ferismo de início do século XX. Conhecia em detalhe a obra dos economistas de Cambridge que, nas primeiras décadas do século, tinham-se debruçado sobre esse tema. Conhecia bem o pensamento de John Maynard Keynes (1883-1946) e concordava com a sua crítica ao capitalismo de final de século, que tinha deixado aberta a porta para os desequilíbrios. Como o economista britânico, reconhecia a necessidade de uma correção de rumo, mediante intervenções indiretas do Estado para restabelecer o equilíbrio, sem que se chegasse ao extremo do Estado-empresário tão do gosto do despotismo ilustrado. Mas considerava necessárias intervenções pontuais que evitassem o risco de paralisia do Capitalismo Naturalista.

Em relação à proximidade de Gudin com o pensamento keynesiano, escreve José Luis Oreiro: “Gudin (...) considerava corretas as ideias de John Keynes para analisar períodos de depressão econômica. Foi, inclusive, um dos primeiros a divulga-las em português, em seu livro Princípios de economia monetária, lançado originalmente em 1943. A obra foi a primeira sobre monetarismo publicada no País e se tornou chave para as gerações de economistas. Sua trajetória foi também marcada pela autoria de artigos para jornais e publicações técnicas e participação em importantes conferências no Brasil e no exterior”. [10]

Afinava-se Gudin com as propostas de intervenção moderada do Estado na economia proposta por Keynes, para sanar os desequilíbrios causados pelo laissez-ferismo. Tomou conhecimento da política intervencionista do New Deal, posta em marcha pelo presidente Franklin Delano Roosevelt (entre 1933 e 1937), mas criticou, no entanto, o que lhe parecia uma intervenção forte demais que seria repetida, no Brasil, pelo presidente Getúlio Vargas (1883-1954). A criação de inúmeras agências federais por Roosevelt parecia, ao nosso autor, uma indevida concessão dos americanos ao estatismo.
Gudin criticava, de outro lado, a versão estatizante que, das reformas keynesianas, foi elaborada pelo economista argentino Raul Prebisch (1901-1986) e que terminou inspirando o pensamento da CEPAL, tendo-se disseminado pela América Latina afora, dando ensejo a reformas estatizantes que terminaram sendo postas a serviço dos diversos populismos que floresceram no nosso continente ao longo do século XX e – como observamos na atual quadra - que se manifestam, também, nos diversos modelos neopopulistas que azucrinam a vida dos cidadãos desta parte do mundo.

A Segunda Guerra Mundial ensejou nova crise no seio do Capitalismo, em decorrência do fato de que não foram solucionados a contento os problemas que deram lugar à Primeira Grande Guerra. Os mecanismos para uma economia internacional policiada ainda não tinham sido plenamente desenvolvidos, em que pese a efetivação da política do New Deal nos Estados Unidos para superar a crise de 29. O resultado de tudo isso, na década de 30, foi o acirramento dos problemas e o surgimento de uma proposta de economia planificada na Alemanha hitlerista, como decorrência da bancarrota econômica que fez surgir a hiperinflação, em boa medida como efeito das absurdas exigências do plano de paz ensejado pelo Tratado de Versalhes (1919), que deixou abertas as feridas que conduziram à Segunda Guerra Mundial. Um clima de estatismo semelhante acompanhou a ascensão de Joseph Stalin (1878-1953) ao comando da União Soviética. Keynes, em As consequências econômicas da Paz[11] deixou claras essas contradições (que ficaram explícitas na negociação do Tratado de Versalhes) e que foram também registradas por Max Weber (1864-1920).

Gudin participou da Conferência de Bretton Woods (agosto de 1944), [12] que reorganizou a economia mundial. O nosso autor, conhecedor das propostas feitas por Keynes nessa Conferência, saiu fortalecido como um economista afinado com os novos tempos. Antes de regressar ao Brasil visitou, em companhia de Otávio Gouveia de Bulhões (1906-1990), a prestigiosa Faculdade de Economia da Universidade de Harvard. Ali teve oportunidade de discutir com os scholars americanos “(...) o projeto da Faculdade de Economia do Rio de Janeiro (que se transformaria na Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro). O resultado da visita é relatado em carta ao ministro, enviada de Chicago: ‘Escrevi na pedra o programa e o projeto de currículo que lhe recomendamos, para submetê-lo à crítica de todos e para receber sugestões dos mestres. Tenho a satisfação de comunicar-lhe que depois de fazerem várias perguntas e de pedirem esclarecimentos, todos os professores de Harvard acharam o programa excelente dizendo que nada havia a modificar’”. [13]

4 – A irracionalidade social e o planejamento estatal no Brasil.

Para Gudin, Getúlio Vargas pôs em funcionamento um sistema econômico de intervenção direta e prolongada do Estado na economia. A adoção das políticas intervencionistas, no Brasil, foi além do recomendado por Keynes para sanear economias em depressão. Vargas avançou no terreno da estatização, ao ensejo da adoção da ideia de planejamento. Na longa polêmica sustentada com Roberto Simonsen (1889-1948) a respeito, Gudin deixou claro que o planejamento deita raízes no intervencionismo monopolista do ciclo mercantilista. O Plano contrapõe-se à livre iniciativa.

A respeito o nosso autor frisa: “No regime mercantilista do século XVIII, os fatores de produção eram dirigidos para as atividades econômicas ditadas pela política nacionalista do Estado; a formação do artesanato orientada de acordo com o plano de produção formulado pelo Estado; o comércio exterior controlado para assegurar o acúmulo do maior stock possível de metais preciosos, velando-se por que o balanço de comércio fosse sempre ‘favorável’; o comércio com as colônias arregimentado pelo princípio exclusivo da troca de produtos manufaturados por matérias-primas, etc.  Esse tipo de economia exigia evidentemente uma planificação detalhada da vida econômica do país e uma ininterrupta vigilância do Estado sobre as atividades individuais” [GUDIN, Eugênio e SIMONSEN, Roberto. A controvérsia do planejamento na economia brasileira, 1977, pg. 61]. 

Segundo Gudin, com a adoção do planejamento o governo passou a privilegiar aquilo que os burocratas achavam importante, passando por cima das leis do mercado. Aconteceu isso no Estado Novo, no ciclo desenvolvimentista marcado pela volta de Getúlio ao poder (1951-1954), na aceleração das obras dirigidas pelo Estado ou por ele estimuladas ao ensejo do “plano de metas” de Juscelino Kubitscheck (1902-1976) e nos rumos estatistas que inspiraram as iniciativas das “grandes obras” dos governos militares, após 1964. Em todos esses estágios a meta foi a introdução de uma visão industrialista, com descuido para a modernização das atividades agrícolas, que teriam permitido um desenvolvimento equilibrado e não inflacionário. O regime militar, pelo menos, acordou para a importância da modernização da produção agrícola, tentando resolver, em primeiro lugar, a espinhosa questão fundiária, com a formulação do Estatuto da Terra em 1964.

O que houve no Brasil foi um indevido crescimento do Estado à sombra da ideia de planejamento, socavando a liberdade de iniciativa e enterrando a produtividade na defesa de interesses cartoriais. Gudin criticava essa feição estatizante. A respeito frisava: “No Brasil o Estado, sem qualquer programação socialista de nacionalização, assenhoreou-se de muitos setores econômicos que nas outras democracias incumbem à iniciativa e direção privadas. Fica-se alarmado ao verificar como se tem estendido o domínio do Estado sobre tantos setores da economia brasileira (...). O Estado tem, no Brasil, o controle da enorme maioria da rede ferroviária e de quase toda a navegação mercante. Estradas de ferro, navegação, portos, siderurgia, minério de ferro, petróleo, fábrica de motores, são atividades hoje quase integralmente açambarcadas pelo Estado. Essa ampliação da atividade do Estado não foi, como em outros países, o resultado de um propósito, ou de um plano político. Foi, geralmente, o produto da incapacidade política e administrativa do Estado, que acabou por tornar inviável a direção privada das respectivas empresas e a força-las a entregar-se ao Estado. A par dessas atividades erradamente transferidas do campo da economia privada para o Estado, é de alarmar a manutenção, em tempo de paz, dos controles estabelecidos pelo Estado durante a guerra mundial (...).” [GUDIN, Planejamento econômico, 1951, pg.30]. 

Gudin era intransigente na crítica ao planejamento. Castigava fortemente esse conceito. Um exemplo, em que o economista grifou todas as palavras do texto: “A mística da planificação é, portanto, uma derivada genética da experiência fracassada e abandonada do ‘New Deal’ americano, das ditaduras italiana e alemã que levaram o mundo à catástrofe, e dos planos quinquenais da Rússia, que nenhuma aplicação podem ter a outros países” [GUDIN, Eugênio e SIMONSEN, Roberto. A controvérsia do planejamento na economia brasileira, 1977, pg. 73]. 

Destaquei em páginas anteriores que Gudin foi escolhido, em 1944, como delegado brasileiro à Conferência Monetária Internacional de Bretton Woods, que criou o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD). Essa conferência caracterizou-se pela sua inspiração nos postulados liberais caros a Gudin, principalmente no que respeita ao comércio internacional, em contraste com as políticas protecionistas que vigiam anteriormente. Entre 1951 e 1955 Gudin foi o representante do Brasil perante o FMI e o BIRD.

No começo dos anos 50, o nosso autor formou parte da Comissão de Anteprojeto da Legislação do Petróleo, tendo-se manifestado contra as restrições colocadas à entrada de capital estrangeiro nessa área. Gudin foi contrário à criação da Petrobrás e à instauração do monopólio estatal do petróleo. Apoiou com determinação a política da UDN contra o estatismo varguista, de que decorreriam o enfraquecimento do presidente e os trágicos acontecimentos que conduziram ao suicídio de Vargas em 54. Na sua rápida passagem de oito meses à frente do Ministério da Fazenda no governo Café Filho, entre 1954 e 1955, Gudin desenvolveu uma política de estabilização econômica baseada no controle do gasto público e na contenção da expansão monetária e do crédito. Foi marcante a decretação da Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), favorável à entrada de capitais estrangeiros no Brasil para financiar investimentos. 

5 – Capitalismo e democracia no Brasil: perspectivas.

A posição de Gudin em face do movimento de 64 era clara: a deposição de Goulart pelos militares tinha plena justificação, pois a República Sindical pretendida irresponsavelmente desaguaria na bolchevização do País. Tratava-se, também, de reagir contra a corrupção generalizada e a quebra de hierarquia nas Forças Armadas, estimulada pelos apelos populistas do presidente. 

Toda essa movimentação contra as instituições republicanas estava escondida sob o manto de uma série de “reformas” que visavam à instauração do “poder popular”. A respeito dos motivos que inspiraram o pronunciamento militar, frisava Gudin: “(...) O que a revolução visava não era a reforma da Constituição, nem a reforma agrária, nem a reforma bancária, nem a reforma eleitoral e ‘tutti quanti’. O objetivo da revolução era enxotar do governo os maus brasileiros que estavam destruindo a civilização cristã, a civilização ‘tout-court’, a cultura, o caráter e a prosperidade econômica do País; era declarar guerra de morte à corrupção, à demagogia, à bolchevização e ao primarismo. E tratar de restaurar o que se havia demolido” [GUDIN, Ilusão gráfica, 1964, pg. 96-97].

Gudin saudou com alegria as primeiras medidas econômicas do novo governo, que visavam a controlar a inflação e a por a casa em ordem no terreno da contenção do gasto público. No entanto, para o nosso pensador, a ação saneadora dos governos militares, ao abrir a porta para o desenvolvimento capitalista libertando-o dos entraves socialistas, não conseguiu chegar à finalidade almejada, pela presença perniciosa, na gestão econômica, da prática do planejamento concretizada no correspondente ministério. Para Gudin, o planejamento pode ser entendido em sentido lato ou em sentido estrito. Em sentido lato, entende-se como programação de despesas e é válido. Em sentido estrito, entende-se como meta definida politicamente e não é aceitável do ângulo liberal [cf. GUDIN, Ministério do Planejamento ou Ministério da Economia? 1966, pg. 124].

Referindo-se à prática histórica do “planejamento” como rotineira programação de despesas ao longo da história republicana, o nosso autor frisava: “O planejamento ou programação dos investimentos governamentais é diferente; sempre foi feito na República Velha como na segunda. As ‘plataformas’ do governo eram estabelecidas pela cúpula política, especialmente pelo candidato (de eleição assegurada) à Presidência da República, e os respectivos projetos passavam a ser estudados e organizados. Esse ‘programa’ de governo obedecia às necessidades consideradas mais prementes da Nação. O caso do governo Rodrigues Alves e Afonso Pena é típico a esse respeito. Mas esse ‘programa’ ou ‘plano’ ou ‘planejamento’, como se queira chamar, limitava-se ao setor governamental, sem prejuízo das medidas de estímulo que o governo adotasse para a expansão das atividades privadas. O que se receia do planejamento econômico global, como agora se pretende consolidar, é que ele se torne um instrumento que ainda mais venha a agravar o açambarcamento da economia do País pelo governo, diretamente ou através de autarquias, empresas públicas ou empresas mistas” [GUDIN, Ministério do Planejamento ou Ministério da Economia?, 1966, pg. 124].

A importância crescente que o Ministério de Planejamento ganhou nos governos militares, essa foi a causa fundamental que levou a que se perdesse a dinâmica econômica encetada pelo movimento de 64. Comentando as reformas feitas em 1966 no terreno da política econômica, que colocavam o Ministério do Planejamento como canal de intervenção política direta do Poder Executivo na Economia, frisava o nosso autor: “(...) Não é aceitável que o ministro da Fazenda se limite a dizer que ‘no seu setor’ a política certa está sendo executada, lavando as mãos como Pilatos quanto aos demais (...). No projeto essa falta é sugerida, em parte, pelo Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica (...). [O artigo 6º do decreto] confere ao ministro do Planejamento a incumbência de ‘auxiliar diretamente o presidente da República’ na coordenação, revisão e consideração dos programas setoriais. Mas isso é uma forma indireta, imprecisa e um tanto sub-reptícia, inadmissível em matéria de capital importância como é o da execução da política econômica do governo. (...) O ministério do Planejamento deixa de ser um ‘ministério extraordinário’, como até agora, para ser um ministério permanente encarregado de formular e coordenar os planos e programas de ação governamental” [GUDIN, Ministério do Planejamento ou Ministério da Economia?, 1966, pg. 122-123]. Para Gudin ficava claro que as leis do mercado estavam sendo substituídas pelas prioridades fixadas, do ângulo político, pelo General-Presidente da República. 

Quais as perspectivas que, no sentir do velho economista liberal, restariam ao Brasil, no decorrer do século que, com ele, se extinguia? Para o nosso autor restaria, apenas, o programa de “voo de besouro” ou “de galinha”, com decolagens mirabolantes e quedas crônicas, em decorrência dessa presença tuteladora do poder político sobre as leis do mercado, que de forma errada fixava metas parciais de desenvolvimento econômico no terreno da indústria, sacrificando setores essenciais como o agrário. 

Fiel ao seu liberalismo econômico ortodoxo escrevia Gudin: “Tanto quanto eu tenha podido investigar, o homem comum só conseguiu uma melhoria persistente em seu padrão de vida nos países que adotaram as técnicas do mercado livre, como meio de organização de sua atividade econômica (...). Não conheço um só exemplo de uma sociedade predominantemente coletivista ou de planejamento central em que o cidadão comum tenha conseguido uma melhoria substancial e persistente nas suas condições de vida (...). A sedução do ‘Plano’ está em que ele trata de investir e de gastar, o que é sumamente agradável, muito mais do que administrar e consertar o que está errado. As energias, a capacidade e o prestígio do governo não são ilimitados” [GUDIN, Ministério do Planejamento ou Ministério da Economia?, 1966, pg. 125].

Conclusão.

Diante do quadro atual de crise profunda em que se encontra a nossa economia, em decorrência da “contabilidade criativa” petista que ensejou inúmeros rombos nas contas públicas, além das práticas de corrupção que afetam a nossa credibilidade perante o mundo e a saúde das empresas, as palavras de Gudin em prol da transparência na gestão da economia e da transferência, para o setor privado, da tarefa de geração da riqueza sem espera-lo tudo do Estado, soam tremendamente atuais. O Estatismo não é culpa dos marcianos, mas de todos nós, inclusive das expectativas dos próprios empresários de encontrar, nas benesses do poder, refúgio tranquilo para os riscos que enfrentam. Falando da discussão que se travou em torno à presença tutelar do Estado na economia, lembrava Gudin em 1979, no depoimento dado ao pesquisador da Fundação Getúlio Vargas: “Se você me perguntar de onde brotou esse debate, qual foi o espírito que o inspirou, eu lhe responderei sinteticamente: o protecionismo excessivo que a indústria paulista exigia” [GUDIN, Depoimento. CPDOC/História Oral. Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1979, pg. 145].

Como lembrava com propriedade Roberto Campos: “Na grande controvérsia brasileira, (Roberto) Simonsen triunfou no curto prazo. O Brasil embarcou num processo de industrialização fechada, extremamente protecionista e ineficiente. O resultado foram, como previra Gudin, inflação e crises cambiais crônicas. No longo prazo, foi Gudin que tinha razão. O atual movimento mundial de abertura econômica, integração de mercados e liberalização comercial na América Latina teve nele um grande precursor”. [14]  

Talvez a melhor lição deixada por Eugênio Gudin foi a que burilou no espírito dos seus alunos, ao longo das décadas dedicadas pelo mestre ao ensino dos fundamentos da Economia, como espaço para o exercício da liberdade. Poderia concluir com as palavras de Julian Chacel (1928), um dos alunos do grande economista liberal: “Gudin como professor fez escola. Escola que acredita na liberdade do homem, como condição essencial para o processo de escolha e da decisão econômica. Que é reticente diante da proposta híbrida de uma economia de mercado compatível com um planejamento fortemente centralizado na ação do Estado. Nem todos, obviamente, seguem a sua doutrina e dão ao fenômeno monetário o poder explicativo que Gudin lhe confere. Mas todos, sem exceção, que conviveram e convivem com Gudin, dentro e fora de uma sala de aula, retiraram e retiram do seu convívio uma grande lição. Lição de vida”. [15]

Gudin, enquanto pensador econômico e mestre, [16] se definia a si mesmo como aquele que deita alicerces, repetindo as palavras de conhecido escritor gaúcho: como aquele que “bate estacas”. Eis as palavras do nosso autor a respeito: “Roberto Campos, economista provecto, analista percuciente, escritor primoroso, tem uma especial vocação para o pensamento categorizado. Dizia-me João Neves da Fontoura (1887-1963), de uma feita, que o meu raciocínio se parecia com uma construção sobre estacas; uma estaca batida e bem firmada, depois uma segunda, enfim um conjunto de sólidas estacas sobre as quais – dizia o grande escritor – eu assentava o edifício do meu raciocínio e das minhas conclusões. Roberto Campos não é como eu um batedor de estacas. É um criador de categorias (...). Campos considera impossível conceber-se o Universo senão sob as categorias da inteligência”. [17]   

BIBLIOGRAFIA

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[1] A Escola Politécnica foi criada em 1794, dentro do espírito do Iluminismo, como órgão educacional do Estado para formar os engenheiros e técnicos de que este carecia. O nome inicial da instituição era: École Centrale des Travaux Publics e ficava sob o controle do Ministério da Guerra. Napoleão Bonaparte (1769-1821), já coroado Imperador, a transformou, em 1805, em instituição de formação técnica e militar, dando-lhe o nome com que passou à posteridade. Em 1970, o Estado francês reformou a Escola (conservando-a no âmbito do Ministério da Defesa), a fim de abrigar também estudantes civis, da França e do estrangeiro. Militares brasileiros frequentam regularmente a Escola, desenvolvendo, nela, estudos de pós-graduação em engenharia e áreas afins, de interesse das Forças Armadas. A reforma educacional efetivada por Napoleão compartilhava do espírito iluminista que inspirava ao cristão novo Antônio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), médico e pedagogo português que vivia em Paris. Ribeiro Sanches foi o inspirador da criação do Colégio dos Nobres, ao ensejo das orientações dadas por ele ao Marquês de Pombal (1699-1782) e à Imperatriz da Rússia Anna Ivanovna (1693-1740). Por influência de Ribeiro Sanches foram criados, respectivamente na Rússia e em Portugal, o Colégio dos Nobres de São Petersburgo e o Colégio dos Nobres de Lisboa. Sobre a estrutura deste, dom Rodrigo de Sousa Coutinho (1745-1812) conde de Linhares, criou, no Rio de Janeiro, a Real Academia Militar, em 1810.
[2] Cf. KANT, Immanuel. Antropología en sentido pragmático(2ª edição em espanhol, tradução de José Gaos, Madrid: Alianza Editorial, 1991, pg. 290-291). Para o pensador alemão, o novo momento econômico deveria abrir espaço para uma convivência pacífica da humanidade, ao ensejo da construção da Paz Perpétua, uma criação cultural que Kant denominava de “Cosmopolita”, assim como a Industrialização. Kant dedicou a este último aspecto o seu opúsculo, de 1795, intitulado: A Paz Perpétua. (Cf. KANT, Immanuel, La Paz Perpetua, apresentação de Antonio Truyol y Serra; tradução ao espanhol de Joaquín Abellán, 2ª edição, Madrid: Tecnos, 1989).
[3] Cf. ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. 2ª edição. (Tradução de Marylene Pinto Michael). São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[4] HUME, David. Essays - Moral, Political and Literary.(Introdução de E. F. Miller).  Indianapolis: Liberty Found, 1987, pg. 14-31. ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot.  Paris: Gallimard, 1985, pg. 24-25.
[5] SAY, Jean-Baptiste. Tratado de economia política. (Prefácio de G. Tapinos; tradução de C. Barbosa Filho; tradução do prefácio de R. Valente Correia Guedes). São Paulo: Abril Cultural, 1983, pg. 45.
[6] Apud ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Ob. Cit., pg. 24.
[7] Apud ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Ob. Cit., ibid.
[8] BORGES, Maria Angélica, Eugênio Gudin, Capitalismo e Neoliberalismo, (Prefácio de Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo). São Paulo: EDUC, 1996, pg. 52.
[9] BORGES, Maria Angélica, Eugênio Gudin, Capitalismo e Neoliberalismo, ob. cit., pg. 52.
[10] OREIRO, José Luis. “Tributo a Eugênio Gudin”. Revista Desafios do Desenvolvimento. Brasília, Março de 2009.
[11] KEYNES, John Maynard. The Economic Consequences of the Peace. New York: Harcourt, Brace & Howe, 1920.
[12] A delegação brasileira à Conferência de Bretton Woods foi integrada por: Arthur de Souza Costa (1893-1957), ministro da Fazenda; Euvaldo Lodi (1896-1956), líder empresarial, primeiro presidente da Confederação Nacional da Indústria e fundador do SESI e do SENAI; Eugênio Gudin; Octávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos (1917-2001).
[13] Apud SCHWARTZMAN, Simon (organizador). Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: EDUSP, 1984, pg. 224.
[14] CAMPOS, Roberto. Lanterna na popa – Memórias, Rio de Janeiro, 1995: pg. 240.
[15] CHACEL, J. Apud KAFKA, A. (Organizador). Gudin visto por seus contemporâneos. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1979, pg. 35.
[16] Eugênio Gudin teve um papel de destaque como educador, na formação de várias gerações no estudo e na pesquisa da Ciência Econômica no Brasil. Em 1938 participou, no Rio de Janeiro, da fundação da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas, posteriormente incorporada à Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nessa oportunidade, formulou o primeiro programa de ensino superior de Ciências Econômicas no país. Por esse motivo, foi designado, em 1944, pelo ministro de Educação Gustavo Capanema, para redigir o projeto de lei que institucionalizou o Curso de Economia no Brasil. Pelos seus esforços em prol da divulgação dos cursos de Economia, é considerado o patrono dos economistas brasileiros. Em 1948, Gudin e Octávio Gouvêa de Bulhões lideraram o grupo de economistas que criou a Revista Brasileira de Economia. Em 1951, esse mesmo grupo criou o Instituto Brasileiro de Economia e em 1952 assumiu o controle da revista Conjuntura Econômica. Gudin lecionou Economia na Universidade do Brasil até 1957, quando se aposentou. Posteriormente foi Vice-Presidente da Fundação Getúlio Vargas, entre 1960 e 1976.
[17] GUDIN, Eugênio. Apud Maria Angélica BORGES, Gudin, Capitalismo e Neoliberalismo, ob. cit., pg. 263.


sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Partido Novo apoia questionamento da fraude constitucional no processo de impeachment

Transcrevo apenas, mas apoio totalmente a postura do NOVO:

A decisão de dividir a votação do processo de impedimento da então presidente Dilma Rousseff, tomada pelo Senado Federal, gerou uma anomalia jurídica que fere a Constituição Federal.
 
O resultado da segunda votação permite que a ex-presidente ocupe cargos públicos, indo contra o que estabelece o artigo 52 da carta magna. Esse resultado deixa um gosto amargo de descumprimento das regras do jogo, insegurança jurídica e abre espaço para mais irregularidades vestidas de legalidade.
 
O Brasil está enfrentando um momento histórico de investigação, fortalecimento das regras e do fazer certo. Um processo democrático, transparente e estritamente institucional ficou manchado no momento de sua conclusão e deve ser reparado.
 
O NOVO defende a solidez de nossas instituições, para que estejam acima dos privilégios e de interesses particulares. Lutamos para que as convicções estejam sempre acima das conveniências. Não aceitamos que um processo tão longo e desgastante para a sociedade se conclua de forma imperfeita.
 
Decidimos, assim, por força da vontade das lideranças partidárias legitimadas por centenas de mensagens de filiados e apoiadores, tomar parte nas representações apresentadas ao Supremo Tribunal Federal. Por não ter representação legislativa, o NOVO não pode entrar com representação individual. Por isso apoiará a tese de outros partidos através dos diferentes instrumentos disponíveis na justiça.
 
O artigo 52 da Constituição é claro e exigimos que seja rigorosamente cumprido. Queremos contribuir para virar a página de uma história marcada por improvisos e delitos. Queremos finalmente iniciar o tempo da justiça, da democracia e da verdadeira liberdade que os brasileiros merecem desfrutar.

Equipe NOVO

The Economist: o Brasil e a sua nuvem de insetos nocivos...

A Economist costuma exibir, em suas páginas, uma fina ironia.
Desta vez, ela foi cruel, mas certeira: muitos ficam satisfeitos por termos eliminado do poder um inseto menor, quando milhares de outros continuam impunes, infernizando a nossa vida, inclusive o mestre do inseto agora eliminado...

Paulo Roberto de Almeida 

O Golpe, ah, o golpe (nao aquele que voce pensa) - Fernando Gabeira

Opinião
Enfim, o Golpe
FERNANDO GABEIRA
Folha de São Paulo, Sexta-Feira, 02 de Setembro de 2016

Depois de tantos meses de disputas, negociatas e articulações, o dia D do impeachment de Dilma Roussef chegou e enfim tivemos um golpe no Brasil. Mas para a surpresa minha, sua e do mundo, não houve o golpe tão propalado pelos defensores do governo Dilma, mas sim um outro golpe.

Na verdade um golpe de mestre, orquestrado e costurado à sorrelfa, ou como se diz hoje em dia, na miúda, por gente graúda. Muito graúda. Se vocês não têm essa ideia com clareza ainda, vamos aos fatos.

Mesmo sabedor da circunstância de que o impeachment estava sacramentado, Lula continuava trabalhando forte nos bastidores. Hoje soubemos o motivo. Não era para evitar o impeachment coisa nenhuma, mas sim para evitar a inabilitação de Dilma.

Segunda pergunta mais importante: quem ganha com o golpe de hoje? Ao menos dois grandes grupos de pessoas: 1) Dilma, PT e todo mundo que trabalhava no discurso do golpe, que agora para sempre poderá dizer que “ah, tanto foi um golpe que ela sequer foi condenada – fica óbvio que ela não cometeu nenhum crime e o único intuito era tirá-la”; e 2) Cunha e todos os demais parlamentares (PMDB em peso) que estão correndo o risco de perderem o mandato, especialmente em épocas de Lava-Jato – não perdendo os direitos políticos, eles poderão concorrer a novas eleições em breve e, por consequência, manter prerrogativas de foro.

Primeira pergunta mais importante: quem participou desse Golpe, além de Lula? Temos todos os nomes, então vamos lá: José Eduardo Cardozo, óbvio; Renan Calheiros, óbvio; Ricardo Lewandowski, óbvio (que já estava com a decisão pronta e redigida, segundo ele porque a possibilidade daquela questão já vinha sendo abordada pela imprensa – aqui, oh!) e obviamente, todos os outros senadores que votaram pelo impeachment, mas não pela inabilitação ou que se abstiveram em relação à segunda, quais sejam: Acir Gurgacz (PDT-RO), Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), Cidinho Santos (PR-MT), Cristovam Buarque (PPS-DF), Edison Lobão (PMDB-MA), Eduardo Braga (PMDB-AM), Hélio José (PMDB-DF), Jader Barbalho (PMDB-PA), João Alberto Souza (PMDB-MA), Raimundo Lira (PMDB-PB), Renan Calheiros (PMDB-AL), Roberto Rocha (PSB-MA), Rose de Freitas (PMDB-ES), Telmário Mota (PDT-RR), Vicentinho Alves (PR-TO), Wellington Fagundes (PR-MT), Eunício Oliveira (PMDB-CE), Maria do Carmo Alves (DEM-SE) e Valdir Raupp (PMDB-RO).

É amigos, temos que dar a mão à palmatória. A ideia foi genial. Tudo foi feito na surdina e ninguém da imprensa – pelo menos que eu tenha lido – antecipou essa possibilidade. E vejam a sofisticação da manobra: agora estão falando de impugnar a decisão no STF, por conta da separação das votações. Mas não vejo como impugnar uma parte sem a outra.

Quem votou hoje pelo impeachment, votou apenas pelo impeachment, não pelo destaque. Não seria possível presumir a inclusão do destaque na primeira parte da votação de hoje. Assim, se alguém quiser impugnar (como Caiado disse que irá fazer), a decisão do impeachment de Dilma fica anulada e outra sessão deveria ser convocada. É mole?

Por fim, é óbvio ululante e não há como negar que a decisão de separar as votações de hoje foi inconstitucional. A leitura do art. 52, parágrafo único do texto constitucional não admite nenhuma outra interpretação, a não ser de que o impeachment leva à cassação dos direitos políticos.

Mas para que Constituição com o Senado que temos? Com os Partidos que temos? Com o STF que temos?

Hoje finalmente houve um golpe no Brasil. E que belo golpe.

Fernando Gabeira é jornalista e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro pelo PT

A ideologia do afrobrasileirismo, base do Apartheid companheiro - Paulo Roberto de Almeida

Meu artigo de 2004 -- com as deformações estilísticas da época -- que precisaria ser reavaliado à luz de mais de dez anos de construção do Apartheid companheiro.
Paulo Roberto de Almeida 

Rumo a um novo apartheid?
Sobre a ideologia afro-brasileira

Paulo Roberto de Almeida, Sociólogo (ítalo e luso-descendente). 
Revista Espaço Acadêmico, n. 40, setembro de 2004, link: 

http://www.espacoacademico.com.br/040/40pra.htm

“Faço questão de me comprometer, igualmente, com o combate às discriminações. Adotaremos políticas afirmativas para garantir direitos iguais a todos, sem distinção de gênero, etnia, raça, condição física, crença religiosa ou opção sexual. Queremos eliminar as desigualdades, valorizando as diferenças.”

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva


Foto: ASC (UEM)1. Colocando a questão
Um espectro parece rondar, atualmente, a sociedade brasileira: o do apartheid. Refiro-me à possibilidade de surgimento, disseminação e consolidação de uma nova forma, não menos insidiosa do que a tradicional (já suficientemente conhecida e combatida), de apartheid. Trata-se de um apartheid social – não necessariamente racial –, baseado numa nova separação cultural e ideológica, e portanto mental, dos brasileiros. Eles passariam a ser divididos em duas categorias fundamentais: a dos afrodescendentes, de um lado, a de todos os demais brasileiros, de outro.
Antes que alguém me acuse de “inimigo dos afrodescendentes” quero deixar bem claro que reconheço, sim, a existência de uma enorme defasagem social, educacional, cultural e profissional atuando em desfavor dos chamados “afro-brasileiros”, que é o resultado histórico das condições sociais de pobreza e desigualdade que sempre atingiram com maior acuidade a população de origem negra. Também sou, sim, explicitamente, a favor de políticas de ação afirmativa e de favorecimento educacional para os brasileiros pobres em geral e, em especial, no que for possível, com ênfase acrescida na situação da população negra. Mas quero deixar manifesto, desde já, que não acredito que qualquer tipo de “reserva de mercado” nos exames vestibulares de ingresso no terceiro ciclo represente uma mudança dramática da situação dos mais desfavorecidos, brasileiros pobres em geral e populações negras em particular.
A questão das cotas no vestibular é um aspecto menor, não o mais importante, de um problema maior, que é a desigualdade de chances que vitima os negros e mulatos brasileiros nas várias vertentes de uma inserção social que teima em ser persistentemente lenta, na educação, no emprego, nas possibilidades de ascensão social, enfim. Tenho dúvidas, porém, de que políticas de promoção desse tipo devam ser conduzidas como resultado de algum tipo de consciência (ou “remorso”) quanto à necessidade de reparação histórica à comunidade negra pelos males sofridos desde o tráfico e a escravidão (e nas fases seguintes de discriminação de fato ou de indiferença “ativa”). Também rejeito as alegações dos que são contrários às cotas universitárias pela suposta necessidade de preservar ensino de qualidade e sistema de mérito nas universidades públicas (elas já estão, de fato, trabalhando em uma situação “sub-ótima” no que respeita seus presumidos “padrões de qualidade” ou de “excelência”, em razão das muitas disfunções acumuladas ao longo de anos e anos de democratismo populista, de irresponsabilidade no controle do desempenho de seus professores, de corporativismo exacerbado e outros males).
O que pretendo tratar neste ensaio é uma outra questão: a da emergência e atual afirmação, ainda que incipiente, de uma ideologia do “afrobrasileirismo” (à falta de uma melhor definição).
2. Um problema não apenas conceitual
Em primeiro lugar, recuso a qualificação de “afro-brasileiros”, ainda que aceite a realidade de que temos, obviamente, “afrodescendentes”. Mas os nossos brasileiros “afrodescendentes” são tão africanos, hoje, quanto eu sou português ou italiano pela minha ascendência, ou seja, hoje em dia quase nada, ou de fato absolutamente nada. Somos todos brasileiros, e apenas brasileiros, ponto.
Isso se deu ao cabo de um imenso e bem sucedido experimento de miscigenação étnica e cultural, um processo único no mundo, já suficientemente explorado por autores vários – entre eles Gilberto Freyre – para ser novamente explorado aqui. Somos o verdadeiromelting-pot do mundo, muito mais do nos Estados Unidos, que conservaram vários traços de apartheid racial ou étnico. Não existem afro-brasileiros no Brasil, assim como não existem AfroAmericans nos EUA: existem negros americanos ou brasileiros negros, mulatos e das mais variadas colorações, que foram trazidos ao Brasil – ou aos EUA – como escravos e que se converteram em brasileiros – ou americanos – como quaisquer outros, independentemente de serem, e permanecerem, desfavorecidos nos planos social, profissional e até do reconhecimento cultural. Nos EUA, a condição estritamente material é até mais favorável aos negros, bem mais do que no Brasil, diga-se de passagem, mas o isolamento cultural – e racial – é bem maior, em virtude da segregação legal que acabou criando duas culturas e até mesmo dois “universos mentais”, totalmente distintos e em grande medida opostos. Todo e qualquer processo de miscigenação racial – ou étnica, para evitar uma terminologia indevida – é único e original, e o nosso foi verdadeiramente de miscigenação, à diferença dos EUA, onde jamais ocorreu (salvo de maneira extremamente marginal) qualquer “osmose” racial entre negros e as demais comunidades formadoras da população americana.
Quando digo que recuso o “afrobrasileirismo” é porque acredito que esse conceito não é o resultado de uma condição étnica, cultural ou mesmo histórica, mas sim uma ideologia, politicamente importada e artificialmente explorada, que pode contribuir, também no Brasil, para a criação do mesmo sistema de aparteísmo racial ou cultural que se constata existir nos Estados Unidos. Não creio que seja bom para o Brasil, aliás para os próprios “afrodescendentes” – quer reconheço existir, como disse –, aderirmos a uma ideologia que vai contra todos os princípios do nosso bem sucedido melting-pot, introduzindo em seu lugar a divisão, a diferenciação e o apartheid. A promoção dos valores “negros” não deveria em princípio ser feita em detrimento de valores universais e igualitários que estão na base de nosso sistema constitucional e cultural.
Muito bem, diriam os “afrodescendentes”, como resolver o problema da desigualdade de fato que impede, basicamente, a maior parte dos “negros” e assemelhados de entrarem na universidade e de galgarem postos profissionais mais condizentes com o perfil de ascensão social que se deseja para todos, inclusive os milhões de brasileiros pobres, brancos ou mestiços de outras etnias, que também sofrem os mesmos problemas? Como reconheço que a “solução universal” da melhoria da qualidade das escolas públicas pode ser uma quimera irrealizável no curto prazo, sou absolutamente a favor de bolsas de estudo (e outras formas de ajuda) generosamente distribuídas a “afrodescendentes” candidatos a ingressar em nossas escolas, de maneira a habilitá-los a prestar um vestibular nas mesmas condições (ou quase) que os demais.
Ainda que esta medida possa ser injusta do ponto de vista do branco pobre, igualmente morador de favelas ou zonas rurais periféricas, creio que ela pode e deve representar um começo de ação afirmativa no sentido de resgatar todo o sofrimento imposto pela sociedade nacional – majoritariamente branca, pelos seus estratos dirigentes e pelas suas decisões políticas, reconheça-se – à sua comunidade negra brasileira e outros estratos desfavorecidos. Aliás, acho que as universidades públicas poderiam e deveriam começar a oferecer cursinhos pré-vestibulares nos quais elas passariam a admitir, de modo maciço, todos os brasileiros pobres, em especial os negros e mulatos. Os estados deveriam desenvolver programas extensivos de bolsas de estudos (gratuitas, isto é, sem reembolso) dirigidas prioritariamente aos estratos de baixa renda, em especial os negros.
Trata-se de um sistema de “cotas”, sem qualquer “reserva de mercado” e baseado inteiramente no princípio da meritocracia, que permanece um sistema válido de seleção de candidatos a quaisquer cargos ou escolas públicas. Os negros – e outros pobres – do Brasil precisam de programas intensos de formação educacional e de preparação profissional: bolsas e cursos de preparação podem fazer a diferença positiva, sem introduzir a “diferença negativa” do regime de cotas baseadas em critérios raciais ou demográficos de escassa legitimidade democrática.
3. Agora ao coração do problema: a ideologia do “afrobrasileirismo”
Acredito que o “afro-brasileirismo” é um conceito em busca de definição, até mesmo entre seus promotores mais ativos. Não sou um conhecedor extenso da literatura a esse respeito, mas não me lembro de ter lido uma definição que fosse sociologicamente sustentável sobre essa “condição”. Por isso pretendo abordar o problema de um ponto de vista histórico, antropológico e, em seguida, político-ideológico.
As definições raciais brasileiras são tão diversificadas quanto a plasticidade da língua nacional, ou como a própria realidade étnica subjacente às populações que aqui se misturaram ao longo dos séculos. Sobretudo a partir da “importação” de negros africanos, entre os séculos 16 e 19, mas também com base nos elementos autóctones e nas muitas etnias imigradas desde a independência, constituiu-se um povo legitimamente brasileiro, dotado de características singulares no conjunto dos “povos novos” — a definição é devida ao antropólogo Darcy Ribeiro — e que é certamente original do ponto de vista das relações interétnicas e culturais que essas comunidades mantêm entre si. Pode-se indicar a preservação de certos traços “culturais”, gastronômicos ou religiosos no interior desses diversos elementos constitutivos do povo brasileiro, mas dificilmente se poderá apontar, entre eles, diferenças significativas ou considerar que seus modernos representantes possam reivindicar um “pertencimento” geográfico outro que não ao próprio Brasil.
Entretanto, a partir da importação acrítica de um conceito estranho à cultura e às tradições sociais brasileiras, a questão da “alteridade” étnico-geográfica começa agora a ser colocada em questão no caso dos negros e mulatos brasileiros. Com efeito, a partir de uma matriz importada dos Estados Unidos está sendo introduzida no Brasil a concepção segundo a qual, dentre os diversos segmentos da população brasileira, se encontrariam, não mais negros, pardos e mulatos (e suas infinitas variações subjetivas), mas um grupo novo na paisagem social do país: os afro-brasileiros. Tal como apresentada por seus proponentes, tratar-se-ia não apenas de uma nova categoria (ou classificação) étnico-cultural, mas de todo um programa político de promoção social e da identidade cultural desse segmento talvez majoritário no País.
Em que medida essa proposta é demograficamente pertinente, sociologicamente consistente, historicamente sustentável, etnicamente adequada e “politicamente correta”? Desde já esclareço minha posição por um ceticismo de princípio em relação a esse tipo de conceito e à “realidade” que o sustenta. Não creio que a noção de “afro-brasileiro” seja positiva do ponto de vista da integração social das diversas vertentes do povo brasileiro, podendo mesmo ser negativo para o programa que supostamente deveria ser o de todos os cidadãos nacionais: superar a velha segregação racial que ainda persiste apesar dos avanços logrados, em lugar de construir um novo apartheid racial.
Este é exatamente o ponto que constitui o objeto destas minhas reflexões pouco sistemáticas: em última instância, a proposta dos afro-brasileiros, se implementada como programa político, redundaria na substituição da velha discriminação racial contra negros e mulatos, combatida por gerações inteiras da causa negra brasileira, por um novo tipo de apartheid, a exemplo daquele que se constituiu nos Estados Unidos depois da abolição da escravidão. Ele significa, sinteticamente falando, a separação e a promoção de atitudes, comportamentos e práticas sociais exclusivamente reservados às populações de origem negra, com todas as suas implicações negativas para a integração ampliada das diversas componentes do povo brasileiro.
Antes, contudo, que se queira ver nos propósitos do autor algum elemento de racismo antinegro ou de descaracterização da luta antidiscriminação conduzida por muitos movimentos militantes da causa negra, gostaria de deixar bem claro minha posição de partida. Creio, como muitos outros sociólogos ou simples cidadãos, que o mito da “democracia racial” brasileira é exatamente isso, um mito, mascarando as muitas práticas não institucionais de discriminação de fato que, ainda hoje, dificultam a afirmação econômica, a ascensão social e a auto-estima psicológica dos negros e mestiços do Brasil. São bastante conhecidos os problemas que afetam negros e mulatos no Brasil: menor escolarização, renda inferior e chances reduzidas de mobilidade ascensional, seja no emprego, seja em outros canais de inclusividade social. A pobreza que atinge os negros e outras camadas mestiças não é simplesmente pobreza, mas vem acoplada a outros problemas que alguns sociólogos chamam de “ciclo cumulativo de desvantagens”.
Feito o diagnóstico sumário e bem estabelecida a justificativa para uma política (ou políticas setoriais) de promoção ativa desses segmentos — às quais sou amplamente favorável, geralmente num sentido não diretamente discriminatório, mas incidindo de forma preferencial, e concentrada, nas populações pobres — a questão que pretendo colocar neste pequeno ensaio é esta aqui: em que a ideologia afro-brasileira pode contribuir para a superação dessas desvantagens cumulativas que penalizam obviamente com maior acuidade aqueles que são objeto de sua atenção?
4. As conseqüências ideológicas do “afro-brasileirismo”: o novo apartheid
Quando utilizo o conceito de ideologia para referir-me ao programa político “afro-brasileiro” pretendo denotar exatamente essa característica básica do termo: trata-se de uma importação acrítica, mais ou menos clandestina — pois que não reconhecida de forma cabal, e sem o pagamento do devido copyright —, de um conceito racial-geográfico pronto e acabado e que se refere a uma experiência histórica e social alheia às realidades brasileiras, qual seja a dos Estados Unidos. Como pretendo discutir, subsistem problemas enormes, e não apenas de ordem epistemológica, à incorporação ingênua desse conceito ao universo racial, social e político brasileiro.
O que seria um afro-brasileiro? Trata-se tão simplesmente de um brasileiro dotado de ascendência africana? Certamente, mas em que sentido esse brasileiro negro, da era contemporânea, continua sendo africano? Provavelmente tanto quanto eu, neto de imigrantes portugueses e italianos, continuo sendo europeu, ou seja: nada, ou quase nada. Sou tão “europeu” quanto meu concidadão negro é “africano”, ou seja muito pouco, apenas por vagas identidades ancestrais que nos definem muito pouco em nossa atual identidade. Quero crer que somos ambos apenas e tão somente brasileiros.
Em outros termos, não apenas é difícil, mas afigura-se impossível definir grupos humanos mediante uma origem indistintamente “continental”, uma vez que pessoas e núcleos familiares se afiliam a determinados grupos humanos com identidades mais restritas do que o âmbito geográfico continental. Mormente no caso dos atuais brasileiros negros, trazidos ao Brasil como escravos em lotes individuais (em alguns casos do mesmo grupo de origem), suas tribos e etnias de origem perderam-se irremediavelmente, logo em seguida, na terrível mistura humana realizada pelos escravagistas e depois pela sociedade de “acolhimento”. Assim como parece difícil, no Brasil contemporâneo, falar de “eurobrasileiros” ou “ásiobrasileiros”, seria virtualmente impossível, nas condições ainda mais desestruturadoras da “imigração” africana, justificar a existência dessa categoria recriada de “afro-brasileiros”.
A rigor, pretendendo atribuir uma origem geográfica a todos os outros imigrantes voluntários, poderíamos falar de “ítalo-brasileiros”, ou “nipo-brasileiros”, por exemplo, pois eles possuem características sociais e culturais similares, identificando-se pela língua ou pelos costumes comuns, inclusive religiosos e alimentares. Ora, tal não ocorre com os supostos “afro-brasileiros” — ou ocorreria em escala muito menor, apenas no caso de certos grupos lingüísticos e religiosos concentrados na Bahia, identificados com a religião islâmica —, uma vez que eles são o resultado da mais trágica e desumana “emigração” conhecida em toda a história da humanidade, processo ocorrido ao longo de séculos e séculos de transferência forçada de lotes inteiros de indivíduos, arrancados de grupos de origem que poderiam ser bantos, ovambos, ibos, haussas ou quaisquer outros capturados pelos mercadores. Contrariamente aos imigrantes voluntários, eles não tiveram condições de preservar — salvo casos extremamente restritos — línguas ou costumes de origem, que de resto se espalhavam por várias regiões africanas. Um história sem dúvida alguma trágica, mas esta é a herança de vários séculos de escravismo e de colonização do Novo Mundo.
Não se trata, assim, de uma realidade brasileira, pois esta é uma história universal. Ou seja, não existem afro-brasileiros, assim como não existem afroamericanos ou afroqualquer outra nacionalidade que se queira. Existem negros, ou mestiços, americanos, brasileiros, colombianos, venezuelanos, cubanos, e vários outros mais, em resumo, cidadãos negros ou mulatos que se tornaram cidadãos de seus atuais estados nacionais. Se isto é um fato, como se justifica o aparecimento e consolidação dessa ideologia racialista?
Segundo minha interpretação, essa construção ideológica apenas surge como resultado da situação peculiar dos negros americanos, submetidos durante décadas e décadas a uma situação de apartheid de fato e de direito que os converteu em cidadãos de uma categoria à parte nos Estados Unidos. Eles já não eram africanos, a qualquer título — tanto porque o tráfico foi precocemente substituído pela “criação” de escravos —, mas não possuíam os direitos e franquias dos demais americanos, de origem branca e européia. A situação se agravou, paradoxalmente, depois da guerra civil, uma vez que a segregação foi sendo lentamente construída ao longo do último terço do século 19 e início do século 20 (aqui com o consentimento e o estímulo do governo federal e da Suprema Corte). A evolução terminológica acompanhou a tomada de consciência do problema negro nos Estados Unidos: eles primeiro foram “negros”, no sentido mais pejorativo do termo, isto é niggers, depois se converteram, numa conotação menos agressiva, em colored oublack people, para serem finalmente enquadrados, até com o seu consentimento, nessa categoria aparentemente inocente de African Americans.
Este o termo oficial — falso, hipócrita, de fato irreal e historicamente não fundamentado — sob o qual são atualmente identificados os negros americanos, aliás bem mais negros do que no Brasil, pois que não dispondo do mesmo “estoque” (inicial ou produzido) de mestiços e mulatos e dos “fluxos e refluxos” de outras categorias intermediárias. Compreende-se sua utilização, nos Estados Unidos, num sentido parcialmente ideológico, pois que servindo para fundamentar uma luta pela afirmação de direitos civis e, concomitantemente, pela promoção da igualdade de chances nos mercados laboral e educacional, luta sustentada tradicionalmente pela Associação Nacional para o Avanço do Povo de Cor (NAACP). Menos compreensível parece ser a introdução no Brasil, de forma consciente, de um conceito de separação, não de inclusão, que seria supostamente o objetivo maior de todos as categorias de brasileiros.
Aparentemente, porém, os negros brasileiros não desejam ser simplesmente brasileiros, mas sim esta outra condição, irreal e construída, de “afro-brasileiros”. Que tipo de conseqüência poderia ter esta atitude para a (des)construção da nação brasileira?
5. A revolução cultural em marcha: a valorização das diferenças
Transcrevo novamente, para comentar, a frase destacada em epígrafe, retirada de um dos discursos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, certamente preparada por um militante da chamada “causa negra” para apoiar as políticas de promoção de direitos das minorias e de grupos sociais desfavorecidos, adotadas conscientemente pelo governo: “Faço questão de me comprometer, igualmente, com o combate às discriminações. Adotaremos políticas afirmativas para garantir direitos iguais a todos, sem distinção de gênero, etnia, raça, condição física, crença religiosa ou opção sexual. Queremos eliminar as desigualdades, valorizando as diferenças.”
Minha opinião é a de que “garantia de direitos iguais” deve existir, em princípio, via criação de condições ou oportunidades iguais para todos, o que se dá geralmente por meio da educação (essencialmente nos dois primeiros ciclos de ensino e na vertente técnico-profissional). Políticas afirmativas são, por definição, discriminatórias em sua essência e intenção, o que acarreta o risco de criar novas formas de apartheid social ou racial, num país que deveria eliminar as desigualdades eliminando também as diferenças, por meio da miscigenação ativa, não via exaltação de valores étnicos ou raciais exclusivos (e portanto excludentes).
Antevejo um sério problema “político” em relação ao que acabo de expor, isto é, a promoção de uma política de “miscigenação ativa”, que entendo ser a única solução efetiva para os males – não só no Brasil, mas em todo mundo – da discriminação e do racismo: os militantes da “causa negra” me acusarão de tentativa de “branqueamento”, quando não do “crime de etnocídio”, ao pretender eliminar o problema via mistura racial. Eu responderia de imediato que é isso mesmo, pretendo não apenas “acabar” com a “raça negra” – mesmo não concordando com tal caracterização – mas também com a “raça branca” (e a “asiática”, e a “médio-oriental”) e outras tantas mais que podem existir neste país tão variado, e instintivamente tão integrado, como é o Brasil. A eliminação das diferenças de “raça” – essa palavra tão enganosa e deformadora, mas ainda assim tão útil do ponto de vista daqueles que se colocam do ponto de vista das diferenças, que não é o meu – é a única forma efetiva de se cortar pela raiz qualquer sentimento de rejeição em face da “alteridade”, pelo simples motivo de que não haveria mais, pelo menos idealmente, nenhum tipo de “alteridade” estritamente definida.
Creio mesmo que o Brasil encontra-se muito mais perto de realizar esse ideal da miscigenação “hegemônica” antes que qualquer outro povo do mundo. Os EUA poderão ser, talvez, e de certa forma já são, o primeiro país “multinacional” do planeta, haja vista a constante imigração e o afluxo ininterrupto dos mais diversos povos naquele país continente. Mas eles demorarão um certo tempo, se é que conseguirão de verdade chegar à condição desejável, para atingir a etapa que reputo indispensável e necessária de ser ou constituir progressivamente uma sociedade verdadeiramente “multirracial”. Acho que o Brasil encontra-se mais perto desse ideal, ainda que sua “inclusividade nacional” seja bem inferior à dos EUA. Não importa: o relevante é a atitude mental e o comportamento social subjacentes à esse ideal de miscigenação, e nisso o Brasil parece imbatível.
O único obstáculo a esse estado de “abolição de fronteiras étnicas” – uma imensa revolução no caminho de um gênero humano potencialmente “globalizado” – é representado, precisamente, pela ideologia das “diferenças”. Por que a “diferença” teria de ser um valor em si, independentemente e à parte da diversidade cultural entre povos distintos, o que é um fato da história? O perigo que vejo nesse “culto das diferenças”, em especial em se tratando de grupos étnicos, é justamente o da separação, o do apartheid.
Registre-se, aliás, que não vejo a promoção das “diferenças” como iniciativa política de qualquer outro grupo racial ou étnico no Brasil, à exceção dos próprios negros ou “afrodescendentes”. Atribuo essa especificidade “política” à história de discriminação social e mesmo de racismo aberto ou velado que reconheço ter existido e que ainda existe no Brasil. Compreendo sua existência, mas não creio, sinceramente, que ela seja boa, desejável ou até mesmo funcional do ponto de vista das políticas de promoção ativa de inclusão social, de igualdade de fato, racial e cultural, e do ponto de vista da construção de uma “nacionalidade brasileira” inclusiva e abrangente.
A ideologia afro-brasileira representa a negação de tudo o que representamos como nação e como povo. Não creio que os afrodescendentes brasileiros estarão mais bem servidos, do ponto de vista cultural, material ou mesmo espiritual, com uma ideologia grupal que exalta a diferença e promove a separação. Acredito mesmo que os militantes da causa negra não deveriam jactar-se de defender a causa de uma ideologia importada, que não tem nada a ver com a realidade brasileira e que resultaria, afinal de contas, numa construção artificial do ponto de vista da história e da psicologia social dos negros.
As discriminações devem ser efetivamente combatidas, não pela criação de novas formas de discriminação, tanto mais patéticas quanto voluntariamente adotadas, em nome de uma ideologia importada que não visa, de fato, promover a inclusão social, mas o desenvolvimento separado e combinado dos vários grupos étnicos em que se divide, até aqui, a população nacional de grandes países multi-étnicos como o Brasil e os EUA. Uma sociedade verdadeiramente integrada, como pode chegar a ser a sociedade brasileira em futuro não muito distante – se não socialmente, mas pelo menos do ponto de vista “racial” –, representa uma sociedade na qual não apenas as discriminações de fato sejam uma relíquia do passado mas também uma formação social na qual o racismo se torne uma hipótese inexistente até do ponto de vista teórico, pela impossibilidade prática de qualquer tipo de “separação racial”.
Isto é o que eu penso, de verdade. Se ouso parodiar o líder negro Martin Luther King, incansável batalhador das causas cívicas (e não da causa racial) nos EUA, eu diria, simplesmente: “eu tive um sonho…”

O Apartheid companheiro agindo na pratica: um tribunal racial de estilo nazista

Em 2004, logo após os companheiros terem iniciado suas políticas de divisão do país, tanto em termos classistas -- nós, e eles, ou seja, eles, os companheiros e os aderentes de um lado, e todo o resto da população do outro -- quanto em termos raciais -- os negros e afrodescendentes de um lado, todo o resto da população do outro -- eu escrevi um texto alertando para o início do Apartheid no Brasil:

Rumo a um novo apartheid?
Sobre a ideologia afro-brasileira

Paulo Roberto de Almeida, Sociólogo (ítalo e luso-descendente).

A ficha do trabalho é esta aqui, e o link ainda funciona: 

472. “Rumo a um novo apartheid?: sobre a ideologia afrobrasileira”, revista Espaço Acadêmico (Ano IV, nº 40, setembro 2004; link: http://www.espacoacademico.com.br/040/40pra.htm). Relação de Trabalhos nº 1322.

Pois bem, o Apartheid continuou a ser implementado e vem produzindo frutos inacreditáveis, como por exemplo esta ficha de identificação da boa identidade racial, ao estilo dos formulários  nazistas:

Acho que o Brasil enverdou pelo mau caminho, e vai ser difícil reverter...
Paulo Roberto de Almeida 
Gramado, 2/09/2016